Monteiro Lobato na Revista do Brasil, em 1920
Foto: arquivo da família do escritor
Monteiro Lobato e Santos
Derosse de Oliveira
I - Recentemente, celebrando o
centenário do nascimento de Monteiro Lobato, ocorrido a 18 de abril p.p., os jornais do País publicaram numerosos trabalhos e estudos enfocando
aspectos da sua vida e de sua obra. Estando registradas em um dos seus livros passagens curiosas aqui ocorridas, quando de suas estadas nesta
cidade, pareceu-me oportuno reunir esses episódios.
Como é sabido, Lobato correspondeu-se com Godofredo Rangel durante quarenta anos. Suas
cartas foram enfeixadas num volume precioso, A Barca de Gleyre, que é retrato de corpo inteiro de Monteiro Lobato, autêntico documento
revelador de momentos de sua vida, de suas aspirações, de sua formação literária e do seu imenso talento.
Aliás, essa correspondência atesta a presença de uma curiosa personalidade trabalhando por
longos anos para conquistar seu lugar no mundo das letras. O sonho de tornar o Brasil desenvolvido, rico e independente, com ferro e petróleo,
levou-o a sofrer a injustiça da prisão. Em relação aos seus contemporâneos, foi amigo, entusiasta, solidário, mas também duro, agressivo, mordaz e,
às vezes, enciumado com a glória ou a popularidade que cercavam determinadas figuras. Com as crianças foi sempre um coração cheio de ternura.
Lúcia, a menina do Narizinho arrebitado
Embora
indiscutível a grandeza de Lobato, ninguém poderá riscar ou apagar o registro, em suas cartas, de sentimentos menores que melhor seria jamais
tivessem existido. Mas isso não o diminui. Antes, faz ressaltar a sua sinceridade, a sua autenticidade, sua humanidade, pois as falhas desaparecem
quando confrontadas com suas qualidades positivas e a influência benéfica que exerceu sobre o seu tempo.
Assim, dentro do tema proposto, é curioso notar que Monteiro Lobato, nascido e criado no Vale do
Paraíba, vivendo a infância entre milharais e galináceos, pescando em ribeirões onde punha covos de espera e onde fisgava mandis, com a vista
acostumada ao perfil das serras, às frondes das perobas, jabuticabeiras e paus d'alho evocados em sua obra, haja sido permanentemente atraído pelo
mar. Não foram apenas momentos de contemplação estética. Foi sentimento profundo. Além de demonstrá-lo por atos, timbrou em registrá-los em sua
longa correspondência.
Escrevendo a Godofredo Rangel, confessava: "Há sempre saudades do mar, na obscura trama do
nosso imo. Já fomos filhos do mar, nos inícios da nossa evolução, quando éramos o peixe Amphioxus..." (BG - 1910, pág. 197). E com essa
afirmação revela os mergulhos que vinha dando na Origem das Espécies, de Charles Darwin, conforme ele próprio deixou escrito. E, nessa
"obscura trama do nosso imo", por certo estava registrado o estado fetal do homem, respirando através de brânquias, como os peixes, dos quais
seríamos os descendentes evoluídos.
Estrangulado no vale paraibano, com a linha sinuosa do perfil das montanhas a limitar-lhe o
horizonte, Lobato confidencia a Godofredo: "Às vezes faço esforços convulsos para me arrancar destas serras e pelo menos ir morar onde a natureza
seja mais completa, com terra, céu e mar. Falta-me aqui o mar, porque já fomos peixes - tu já foste um amphioxus, juiz! -, e o fomos por
milhões de anos, e só de muito pouco tempo somos mamíferos de terra. Estamos tão perto do mar ainda, que não dispensamos o sal. O sal é o meio de
termos algo marinho dentro de nós. O Amphioxus que há dentro de mim anda a pedir sal". (BG - 1915, pág. 279).
Viajando entre Areias e São Paulo, Lobato sentia a atração dos negócios, e ao mesmo tempo,
aspirava a uma libertação mais ampla. Definia seu estado de espírito, ainda sonhando com o mar: "Meu dilema agora é este: ficar aqui metido em
negócios (S. Paulo), ou remover-me para Ubatuba e passar um ano diante do mar, a namorá-lo, a cheirar-lhe as maresias, e comer-lhe os camarões e
ostras, a pintar marinhas, a ouvir histórias de pescador, a pescar nas pedras, a tomar banhos e ficar ao sol da praia de mãos cruzadas sobre os
olhos, como um caranguejo feliz". (BG - 1910, pág. 197).
E se essa era a paisagem marinha para os sentidos, pretendia caminhar informalmente, sem
"lenço nem documento", "de pé no chão, com chapeirões de palha, sem paletó, a comer coco verde na rua e a sentir de todos os modos o mar, o mar, o
mar - nos banhos, nas refeições, nas pescarias, nas leituras dos escritores marinheiros." (BG - 1910, pág. 197).
Como veremos em outros passos de sua correspondência com Godofredo Rangel, quando veio a
Santos, além de curtir o sol, a praia e o mar, pretendia aproveitar a oportunidade para ir ao Farol da Moela e colher elementos para dar cor local
ao conto Faroleiros, mais uma vez mergulhado de corpo e alma nas águas salgadas, na paisagem dos barcos e ilhas, fortalezas, ruínas,
gaivotas, batuíras e tesoureiros.
Não tem rebuços em confessar esse talassotropismo, pois informa a Godofredo, de maneira
pitoresca: "Passei as férias em Santos, como um anfíbio. Sinto-me salgado como um bacalhau de venda". (BG - 1922, pág. 429)
Anote-se, em abono da afirmação inicialmente feita, que ao resolver mudar-se para o Rio de
Janeiro, em 1925, entre os bairros finos que poderia ter escolhido para residir, manifesta preferência por Santa Teresa. Por quê, indagará o leitor,
se Santa Teresa é morro e não tem mar?
Ele explica: "Quero ver se moro em Santa Teresa, com vista para o mar. Oh! Abrir a janela da
manhã e exclamar 'Thalassa! Thalassa!, como espetacularmente fez o Tito aquela vez em Santos". (BG, pág. 457).
Ao reler, agora, este trecho da correspondência de Lobato, sorrio ao lembrar uma palestra
que, sob o título "Pescador em Branco e Preto", realizei no Clube de Pesca de Santos.
A palestra foi ilustrada por notável homem do rádio que, em determinado instante, lembrando
a exclamação dos soldados gregos, ao chegarem às margens do Mar Negro, comandados por Xenofonte, conforme este relata em Anábasis, deveria
repetir "Thalassa! Thalassa!" - o mar! o mar! - esperança de regresso imediato à pátria distante.
No entanto, por um desses lapsos comuns em momentos de emoção, o homem da voz de ouro lançou
ao auditório as exclamações históricas, mas inverteu as sílabas, exclamando pomposamente: "Thassala! Thassala!"
Diga-se, a bem da verdade, que poucos perceberam a mancada. Mesmo porque saber grego hoje em
dia é coisa rara. O diabo é que a inversão ocorreu em clima de emoção e fez brotar um sorriso divertido nos lábios dos que captaram o disparate.
II - O mar deve ter sido,
provavelmente, a razão de haver escolhido a cidade de Santos para nela curtir sua lua-de-mel.
Por sinal que o casamento de Lobato merece observações sobre os seus antecedentes.
Lembrando os tempos de namoro de Godofredo, afirma Lobato que ele "é o primeiro degrau para
o casamento". E continua: "A vida do celibatário numa capital justifica-se: nestas cidadinhas do interior é absurdo. A absoluta ausência do que
fazer nos força a casar. É o meio de fazer qualquer coisa. Mas para quem pensa um bocado, o tal casar o põe vacilante como Hamlet. É uma cumbuca com
dois dados dentro - unicamente a sorte nos faz pegar no branco, em vez de no preto". (BG - 1906, pág. 79).
E, como o amigo já dera o salto no escuro, Lobato confessa com sinceridade: "Rangel, quero
que me escrevas com minúcias sobre o teu novo estado, as novas esperanças e projetos - e se o casamento dá a sensação de estabilidade que um ente
depois de 20 anos começa a necessitar. Meu cansaço é esse: instabilidade, vida no ar. Acentua-se em mim o desejo de ancorar num porto. E que porto
há para o homem, senão a mulher?" (BG - 1906, pág. 80).
Pedrinho lembra seu autor quando criança
Aliás,
Lobato sempre desferira anteriormente as mais venenosas farpas contra o casamento e contra o noivo, que se preparava para a mudança de estado civil.
Escreveu-lhe precisamente a 27/08/1905, com ironia indisfarçável: "És todo noivinha e te preparas para no altar de Vênus transformar a noivinha em
mulher. Vais renunciar ao Demônio e às suas pompas em troca de uns tantos dias de carnal novidade e 40 anos de bocejo a dois, cueiros amoniacais,
diarréias verdes, choradeiras, taponas... Renunciar ao Demônio, quando o Demônio é a única delícia reconciliadora do homem com o mundo..." (BG -
1905, pág. 68).
A verdade é que Lobato temia perder o parceiro de correspondência literária e, enciumado,
acrimoniosamente descarregava seu temor contra o amigo e o casamento. Essa correspondência é notável, pela sinceridade com que Lobato, entre outras
confissões, registra seu ânimo possessivo em relação a Godofredo, o companheiro do Minarete e confidente de sonhos e frustrações: "É que o hábito de
escrever-nos desdobrou-te em dois Rangéis: o de carne, professor, marido e lá sei que mais; e o Rangel epistológrafo. Esse é que é o meu.
Deste é que conheço as idéias e manhas. Que fique com dona Bárbara o primeiro. Eu só quero o segundo. Este é o Rangel de longe - e bem sabes como o
longe embeleza as coisas, faz a montanha, que é verde, parecer-nos azul; e torna também azul um céu incolor. O meu Rangel e o de Bárbara! O dela é o
marido, o professor, o gastrônomo, o dono-de-casa, o filho, o cidadão certamente muito igual a todos os outros maridos e professores e donos-de-casa
etc... O meu é uma coisa que só eu sei, porque só a mim se revela". (BG - 1906, pág. 82).
Comparando a esposa com a noiva, demorando-se na análise desse estado de exaltação romântica
característica do noivado, Lobato transmitia a Rangel os seus temores, quanto às conseqüências do casamento: "A noiva é uma. Não tem fisiologia. E a
mulher emergente da noiva tem-na terrível. O que atrai numa é a secreta e misteriosa virgindade, um seio que apenas transparece no boleado do
casaquinho, e mais tarde transparece no úbere. O que atrai são os aromas capitosos da sugestão, o olhar cheio de promessas embriagadoras, é o
coquetismo já do tempo de Eva e julga ser natureza. A noiva é o vinho; a esposa é o vinaigre. É a mesma criatura, mas sem os mistérios, as
eletricidades, sem o odor di femina, sem os encantos do olhar, com tudo transformado em ranço e cinzas. As ultramaravilhosas qualidades da
noivinha cessam de existir porque são armadilhas para pegar o tico-tico, e pegado o tico-tico, para que mais armadilhas? Agarrado o macho, que
importa à mulher a conservação daqueles encantos? Em vez deles, em vez de miragens, ela dá ao esposo realidades: filhos, seios pendurados, ventre
bambeado, talhe achamboado, sensualidade amortecida. E o bestalhão assombra-se... Pois foi então aquela, a criatura que o embeveceu de amor? Que o
fez casar aos 20 anos? Que o fez deixar-se arrear e montar?" (BG - 1905, pág. 69).
"Que tombo o marido cai... Vê de noite a mulher de camisola e touca, aquele ser que ele só
via enleado em gazes e cassas afeiçoadas pela moda de Paris. E aquela mesma que corava de lhe mostrar o tornozelo, ele a vê abrir um certo móvel,
tirar certo vaso e sentar-se em cima com certo ruído... E de manhã, quando acorda ao lado da diva, sente a realidade do odor di femina. E
nota que aquele hálito que antigamente rescendia a rosas da Pérsia, cheira a estômago azedo". (BG - 1905, pág. 69/70).
Era o que Lobato dizia a Godofredo, nos idos de 1905. Mas não há nada como um dia depois do
outro. Eis senão quando ele, contrariando todas as suas teorias a respeito do casamento, enamora-se de Purezinha. De Taubaté, comunica ao amigo:
"Estou noivo", acrescentando em carta seguinte: "Estou noivo já de um mês e boiando em plena lua-de-mel de noivado". (BG - 1907, pág. 110).
Reconhecendo que fora flechado pelo arqueiro divino, procura canhestramente justificar sua
nova postura ante o matrimônio, dizendo: "O casamento é e não é o que dizemos. O casamento é o nosso serviço militar. Foste chamado, e estás a fazer
o serviço. Fui chamado, tenho de servir, e está acabada a história. E depois, Rangel, isso de enfrentar o perigo, de procurá-lo, de arrostá-lo, não
deixa de ter certa grandeza. Não procede de outro modo o capitão que ataca o reduto poderoso. Está lá dentro o desconhecido. A vitória ou a derrota,
a felicidade ou a vergonha". (BG - 19078, pág. 113).
Essa é uma explicação um tanto forçada, que mal disfarça sua capitulação incondicional aos
encantos da noiva. O casamento para ele não era "desconhecido". Aquela descrição caricatural do casamento, com a noiva se deformando, adquirindo
úberes, ventre bambeado, sensualidade amortecida, e aquelas cenas íntimas e nada românticas de uso de vaso noturno, quando os dormitórios não eram
suítes, tudo isso não passava de atitude ou postura de um jovem inquieto, imaginando a intimidade prosaica quebrando o encanto e matando o
amor.
E continuou procurando enganar-se a si próprio: "Por que o homem bebe, sabendo que o álcool
é um veneno? Por que se casa, sabendo que o casamento pode ser veneno? Porque o homem é fundamentalmente aventureiro e gosta de agir aos supetões,
sempre de encontro à experiência e ao bom senso".
E não hesita em lançar mão de paradoxo para encobrir sua rendição: "O nosso grande cavalo de
batalha contra o casamento é o sacrifício da nossa liberdade, mas para que nos serve a liberdade senão para perdê-la nos momentos oportunos? Sem
perdermos a liberdade total ou parcialmente, como sabermos que tal coisa existe? Só quem está asfixiado apreende que o ar existe. E há ainda o
seguinte: a liberdade torna-se às vezes um trambolho, um tal peso às costas, que o desfazer-se dela nos produz uma imensa sensação de alívio. Nada
cansa mais do que ser livre, e isso explica as ditaduras. Os povos cansam-se da liberdade e pedem um ditador, que a trucide, e os indivíduos
casam-se". (BG - 1907, pág. 114).
Num último e desesperançado gesto, dá a questão por terminada, renega o que escrevera antes
e resolve dar o salto no escuro com a lacônica conclusão: "Caso-me e pronto". (BG - 1907, pág. 113).
E depois, como desprezar o casamento, se ele oferece uma série de desculpas a qualquer
marido... "Eu iria em dezembro ao Japão, se não fosse casado... Mentira! Ele não iria ao Japão nunca, mas hoje tem uma bela justificativa. A
condicional acoberta maravilhosamente todas as fraquezas, dubiedades, incapacidades e inaptidões dum homem..." (ib).
Não sei até onde e quando os povos decidem abdicar da sua liberdade, por tédio, por fadiga,
por espírito de aventura ou comodismo. Talvez porque o cidadão comum entenda que é trabalhoso pensar e decidir, sendo mais cômodo deixar que alguém
pense e decida por ele.
No caso dos indivíduos, Lobato reconhece que o casamento resulta de imperativo da natureza
que, em benefício da conservação da espécie, domina cada homem e o encaminha para o matrimônio. As duas metades procuram-se para completar-se. E
seguirão juntas pela vida, mesmo porque, segundo o cantador nordestino, "a gente andando de dois/encurta mais os camim".
A verdade é que, segundo o próprio Lobato, o casamento não se explica. É como o sarampo.
Vem, pega e pronto!
III - Nesse movimento pendular
pró e contra o casamento, Monteiro lobato decidiu-se a favor dele e comunicou a Godofredo que ia casar-se a 1º de janeiro de 1908, pretendendo
passar um mês de lua-de-mel em Taubaté, Santos ou Rio de Janeiro. (BG - 1907, pág. 126).
Não se sabe por quê Lobato não se casou nesse dia. Em 3 de fevereiro comunica,
incidentemente, a Godofredo que está a 50 dias do casamento. Mas silenciou sobre a razão pela qual não o realizou na data anteriormente marcada,
como anunciara. Talvez haja sido recuo, ou, talvez, porque quem marca a data do casamento é a noiva. Ela é quem sabe das coisas...
O certo é que a 25 de fevereiro - três dias antes -, Lobato comunica a Rangel: "A 28 me
caso. Depois, não sei para onde vamos, talvez Santos, São Vicente, - um mar qualquer - e de lá te escreverei... (BG, 1908, pág. 135). Esse
dia 28 era o do mês de março, à vista da carta de 3/2/1908. (N.E.: notada a divergência no texto de Derrosse: ou a
carta era de 25/3, ou teria sido escrita 33 e não 3 dias antes).
Donde se conclui que, mais uma vez, o amphioxus exigia o mar, o sal e o sol das
praias...
No dia marcado, Lobato casou-se, renunciando a Satanás e às suas pompas e veio "lua-de-melar"
à beira do oceano, em Santos, no José Menino. Em A Barca de Gleyre não informou a rua, a residência ou o hotel.
Mas havia, no longínquo mês de março de 1908, um destino cego guiando os
passos despreocupados de dois jovens em lua-de-mel. Ele mesmo descreveu o episódio:
Dona Benta e suas histórias
"Lá
um belo dia, às 3 da tarde, quando tomávamos banho e brincávamos nas ondas como dois peixes nupciais, eis que pisamos num molusco venenosíssimo.
Senti aquela moleza. Logo depois sobreveio um queimor na pele da sola; e veio uma comichão contínua e por fim rebentou a infecção purulenta e
dolorosa. E isso em nossos quatro pés, os dois meus e os dois de Purezinha". (BG - 1908, pág. 135).
Esse "molusco venenosíssimo" deve ter sido uma medusa, celenterado gelatinoso, aquela coisa
mole e viscosa que os caiçaras chamam de água viva, e é também conhecida como alforreca ou cansanção. As conseqüências do
contato daquele cogumelo cáustico com o corpo humano são as por ele descritas: queimor, infecção e bolhas na parte afetada.
Depois desse incidente, "tocaram os dois para São Paulo e foram para a cama", nas exatas
palavras de Lobato. Não porque estavam em lua-de-mel, mas porque tiveram de curtir um mês de medicinas e de pés em posição horizontal, incapazes de
um passo, os dois a gemerem e maldizerem o mar com todos os seus moluscos". (BG - 1908, pág. 135).
O fato em si não mereceria maiores considerações, não fora a fantasia maliciosa divagando
acerca dos jovens recém-casados obrigatoriamente retidos num leito, lado a lado, durante trinta dias consecutivos...
O que causa perplexidade é que, durante esse mês de reclusão e imobilidade forçadas, Lobato,
ao lado de Purezinha, ainda pôde ler e reler a Relíquia, de Eça de Queiroz. E comenta: "Que livro!" Deleitou-se com Fialho de Almeida (Lisboa
Galante, País das Uvas). Que charanga!" Leu também alguma coisa de Heine. "Que liberdade! Não atende a nada, não tem escola, nem método, nem
freio nenhum. Libérrimo e lindo!", Atta Troll, Germânica, Mar do Norte. Diz ainda que vai traduzir uns pedaços. E o
Intermezzo? O livro de Lázaro, "ático, sutil, novo, original, prime-saut, mais grego que francês, mais francês que alemão". Também
releu a Campanha Alegre, parte do Eça nas Farpas. E comenta: "É pura troça, que lógica bem humorada".
Com a leitura de dezenas de volumes na cama, anotando-os, fazendo planos de traduções sobre
alguns deles, durante todo o mês, não me furto a uma pergunta indiscreta: "Que sobrou de sua atenção para Purezinha?".
IV - Depois desse episódio
desastrado que perturbou a alegria dos dois peixes nupciais, a correspondência de Lobato registra a presença do casal em Santos somente sete anos
depois. Precisamente a 3 de junho de 1915 participa a Godofredo Rangel: "Quarta sigo para São Paulo e sexta para Santos. Escreve para Ponta da
Praia, 55".
Àquele tempo, não havia sido nominada a via pública que, junto ao mar, vai do
Boqueirão à Ponta da Praia. Tudo era um imenso jundu coberto de cipoal verde,
ribeirões desaguando no mar e chácaras acolhedoras onde vinham "passar o fim de semana na barra" as grandes figuras do
comércio, da política e da administração pública da Cidade.
Santos já recebera, em 1910, a contribuição da inteligência e operosidade
de Saturnino de Brito, que elaborou projeto sanitário com a rede de canais saneadores e amplas avenidas, cujo traçado até
hoje perdura. Assim, o projeto sanitário foi, também, de urbanização.
Emília, uma boneca de pano egocêntrica
Seria
curioso identificar a casa que abrigou Monteiro Lobato no longínquo ano de 1915 e que, segundo sua carta, tinha o número 55, da Ponta da Praia.
Para localizá-la tive de socorrer-me da memória viva de Santos, que é Amaury Veridiano Laranja.
Ele informou-me, com segurança, que essa residência era a de Heitor de Morais, cunhado de Monteiro Lobato. A casa ficava de frente para o mar, na
atual Avenida Bartolomeu de Gusmão, proximidade à esquina dessa avenida com a Rua Osvaldo Cócrane. Mais tarde, ela passou à propriedade do dr.
Eduardo Vítor de Lamare, político, provedor da Santa Casa, advogado nesta Comarca e que exerceu altos cargos como consultor jurídico de várias
entidades santistas. Conheci Eduardo De Lamare e a casa, quando ele ali residia, nos anos quarenta. Cercada de frondosos chapéus-de-sol, suas
paredes externas eram cor-de-rosa. Eu a chamava de "a casa rosada", aludindo ao palácio presidencial em Buenos Aires. Depois, construíram ao seu
lado o Edifício Conde do Mar e hoje, no lugar da casa que hospedou Monteiro Lobato está o Condomínio Edifício Gaivota, que ainda tem o nº 55.
Dessa vez, a estada de Monteiro Lobato em Santos foi longa. Partiu da fazenda a 3 de junho e
até 15 de julho ainda se encontrava junto ao mar, cujo marulhar entrava pelas janelas abertas da casa... Vindo para Santos, prometera a si próprio
não escrever a ninguém. Nem ao Papa. Felizmente não cumpriu a promessa, pois as cartas que remeteu a Godofredo Rangel oferecem muitas curiosidades
acerca de Santos daquele tempo.
Foi uma estada repleta de excursões. Ainda hoje poderia ser percorrido o mesmo itinerário de
Lobato, em julho de 915, por alguém com a mesma curiosidade e inquietação. Mas, provavelmente, poucos fariam a sua narração com tanta graça.
Santos de 1915, no Boqueirão, tinha um centro de diversões que marcou época na Cidade. Era o
Miramar, que atraía a nata santista mercê de inúmeros entretenimentos. Nos muros externos havia pintado o seguinte
slogan: "Venha ao Miramar ainda mesmo que chova. Nem inverno, nem verão, eterna primavera". E a Cidade inteira se fazia presente, freqüentando o
ringue de patinação, sala de espetáculos teatrais, de cinema, salão de conferências, mesas de jogo. O centro de diversões desapareceu na vertigem da
especulação imobiliária, como também foi arrasado o Parque Indígena de Júlio Conceição, fronteiro ao Miramar.
Não é possível falar em Júlio Conceição sem lembrar a sua coleção de orquídeas, uma das
maiores, senão a maior coleção particular do mundo, e a batalha judiciária que travou para fazer cumprir o testamento de João Otávio, que deixou
vastíssimo patrimônio imobiliário para a Santa Casa de Misericórdia, inclusive o prédio da Escola D. Escolástica Rosa, assim batizado em homenagem à
sua mãe... E pensar que recentemente alguém pretendeu mudar o nome do estabelecimento de ensino, esquecendo que tudo aquilo hoje existe e pertence à
comunidade, pela vontade generosa de um cidadão dedicado a Santos e que, por amor e gratidão, quis perpetuar a memória de sua velha mãe...
Em 1915, no Miramar havia jogo aberto, roleta, campista, bacará...Ninguém achava imoral, nem
ilegal, a diversão. O Estado ainda não tinha chamado a si a prática oficial de outras modalidades de jogo, como a loteca e a Loto, eliminando a
concorrência dos banqueiros particulares que mantinham seus cassinos.
Segundo ele próprio informa, Lobato andava arredio do jogo há três anos. Em Santos, desanda
a tentar a sorte na roleta. E confessa a Rangel: "Há uma semana que jogo todas as noites e ganho". (BGH - pág. 283).
Ainda sob o efeito dessa agradável ressaca, escreveu página curiosa a respeito do jogo. Ele
indaga de Godofredo Rangel: "Sabes o que é a roleta, Juiz? Durante a ação, uma luta tenaz entre o Homem e a Sorte. Depois, uma alegre ou melancólica
ressaca, em que relembramos os lances bons ou maus, as coincidências e mil coisinhas que só os jogadores entendem. Como no xadrez. Explique você a
um leigo a beleza dum cavalo que come a dama e dá xeque - e o leigo não vê beleza nenhuma. Mas no xadrez temos como adversário a ciência do parceiro
e na roleta o adversário é o destino. A deusa sorte rodeia a mesa do pano verde (há que ser verde, como as venezianas que se prezam) e ora se
reclina sobre o ombro de um jogador, ora sobre o de outro, e aqueles momentâneos beneficiados pelo reclínio ganham - e é l'ebrezza.
"Ontem perdi sistematicamente durante uma hora. Parei. Deixei transcorrer dez bolas nas
quais os meus palpites não deram. Na décima primeira rebentou um deles. É hora! disse comigo e voltei a jogar. Senti no ombro a pressão dum
seio - era a deusa que dera a volta e parara atrás de mim. Joguei forte no 17. Deu. Parei um instante, sondando. Nova pressão no ombro. Joguei forte
no zero. Deu. Repeti o jogo. Deu. Carreguei no double zero. Deu. Arregalamento de olhos da assistência. Eram as melhores boladas da noite e,
em seco, o que é raro. Creio que vem dessa noitada o meu estado d'alma de hoje - uma ressaca feliz". (BG, pág. 283).
Nessa atmosfera de ebrezza, ele começa a analisar a condenação que a moral correntia
decretou contra a trindade "Bebida, Mulher e Jogo". "Dizem os teólogos que é a trindade do Diabo, mas a Ciência mostra que o verdadeiro nome do
Diabo é o homo sapiens" (ib).
Através das cartas escritas em Santos, ficamos sabendo que em julho de 1915 Cornélio Pires
andava fazendo conferências pagas, em Santos. A irreverência de Lobato anotava: "... Cornélio Pires anda convencido de ter descoberto o caboclo,
como o Nogueira se convenceu de ser o descobridor da Pátria. O caboclo de Cornélio e uma bonita estilização - sentimental, poética, ultrarromântica,
fulgurante de piadas, e rendosa. O Cornélio vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com as exibições que faz do seu caboclo. Dá caboclo em
conferência a cinco mil réis a cadeira e o público mija de tanto rir. E anda ele agora por aqui, Santos, a dar caboclo no Miramar e no
Guarani", referindo-se aos dois teatros hoje desaparecidos. Um, pela picareta da especulação imobiliária. Outro, pelo
desamor às coisas de Santos.
Lobato escreve a Godofredo, mas está se impregnando de sol e de mar. Grande devorador de
livros, demora-se a percorrer as coleções de seu hospedador. E confessa a Rangel: "O Heitor de Morais, meu cunhado, tem uma esplêndida biblioteca
que seria o meu encanto... longe do mar. Porque quando caio no mar, sou só mar, mar, mar". (BG - pág. 286).
Inquieto e curioso, no dia 2 de julho vai a Itanhaém, onde passa o dia, juntamente com a
família. "Fomos de auto, beirando a fímbria das ondas. Encontramos vários pingüins arremessados por algum temporal. Havia um vivo, que levei para
casa. Morreu, coitadinho, no dia seguinte".
Dias depois, vai a Bertioga. Não informa o meio de transporte. Se de lancha, pelo canal, ou
de automóvel pela Praia do Guarujá e caminho que hoje liga a Praia do Pernambuco à do Perequê. Visitou o Forte
de Bertioga, que ele descreve como sendo um "velho fortim escalavrado do tempo de Tomé de Souza. As primeiras ruínas que vi em minha vida. Mas nada
sugerem aquelas ruínas do convento de Itanhaém e estas de Bertioga. Que havia ali, antigamente? Frades por dentro e índios por fora. Mato e índios.
Ruínas são as da Europa, da Escócia. Aqueles castelos cheios de dramas e até com fantasmas. As nossas ruínas são muito recentes. Os frades são os
mesmos de hoje, os jesuítas de batina; e os índios são os caboclos de agora. Não sinto grandeza nenhuma, nem tragédia".
Nessa mesma carta, Lobato narra incidente que teve num bonde da
City. Fora a S. Vicente e ali, como acontecera na viagem a Itanhaém, encontrou outro pingüim
de asinha machucada. Resolveu levá-lo para casa e o trazia no colo. "O condutor, um português bem merecedor de que Cunhambebe o houvesse comido,
implicou. 'O regulamento purive conduzir aves nos bondes'. Eu quis discutir, calmamente. 'Ave tem penas, meu senhor, e onde estão as penas
deste vivente?' aleguei. Ele teimou que era ave. Eu jurei que pingüim era filhote de foca, segundo a opinião de todos os zoólogos ou exploradores ao
tipo de Amundsen etc.... Uma coisa muito comprida. Minha idéia era manter a discussão até que me aproximasse da casa do Heitor. Mas o raio do
mondrongo teve uma idéia luminosa. Fazer parar o bonde. 'Com ave o bonde nan segue!' Eu ainda fiz chicana: 'E se o Ruy estivesse aqui? Seguia
ou não o bonde?' 'Que Ruy?' perguntou o alarve. 'Ruy, a águia de Haia'. Ele desconfiou que eu estava a mangaire e foi a um telefone falar à
Companhia para pedir pruvidências".
O fato é que o bate-boca continuou, Lobato no bonde, e finalmente, para não atrasar a viagem
com passageiros que nada tinham com ave, filhote de foca, ou águias de Haia, Lobato saltou, insultando o cobrador lusitanamente.
Chegado à casa do Heitor de Morais, exibiu o pingüim e o soltou no mar. "Com que gosto se
meteu a nado! Quando vinha uma onda, enristava o bico e furava-a. E lá foi nadando e sumiu-se ao longe". Comentou: "Talvez tenha sido o único
pingüim do mundo que jamais andou de bonde". (BG - págs. 287/288).
Divertir-se com coisas inéditas como essa, que ele próprio criava em suas andanças, era
freqüente em Lobato. O caso do único pingüim que no mundo jamais viajou de bonde é característico da sua inteligência.
Há outro episódio que ele contou em carta. Estava em Nova Iorque, como adido comercial.
Recebeu carta de Rangel. Comparando o progresso da cidade americana com o ambiente da roça de Minas Gerais, responde: "Sabes onde li tua carta? No
trem de Corona, que é o que me traz para casa - trem subterrâneo. Aí em Minas, só as minhocas andam no fundo da terra: aqui, todos nós, dentro de
trens. Conta isso ao Chico Sales. Tomo esse trem numa caverna de Ali Babá, maravilhosa, chamada Grand Central, lá no fundo da terra, e o trem me
leva pelo túnel que passa debaixo do Rio Hudson. Eu estava passando sob o Rio Hudson, quando cheguei no pedacinho em que falavas no jatobá. Parei e
pensei comigo: 'A cidadinha de Passos, um jatobá, Rangel olhando para o jatobá, e eu no fundo da terra, num trem elétrico sob o Hudson, vendo o
Rangel de olhos fíxos no jatobá'. E repeti alto essa palavra Jatobá, pela primeira vez soada naquele túnel. Um americano ao meu lado,
olhou..." (BG - pág. 476). E, ante essa palavra estranha partida dos lábios daquele homem miudinho, de sobrancelhas espessas como duas asas de
graúna, o americano deve ter pensado que no trem havia um sujeito não muito certo da bola...
V - As escursões de Lobato não
surgiam ao acaso. Eram programadas, como se vê de sua carta de 3/7/1915, quando informa que não lhe dão repouso o mar, a roleta e as aquarelas, e
que depois de visitar Itanhaém o próximo passeio seria Bertioga e depois iria a um farol. A 15 do mesmo mês, afirma que pretendia especificamente
"visitar o Farol da Moela, para captar impressões e refazer um velho conto de faroleiros que fiz em Areias". (BG, página 288).
Farol da Moela, na Lage de Santos, que Lobato não visitou
Foto: Decom/Prefeitura Municipal de Santos
Cabe
informar que, em junho de 1909 - seis anos antes - tivera Lobato, em Areias, a idéia de escrever o conto que estava a exigir, em 1915, a excursão ao
Farol da Moela. Ele escreveu a Rangel em 1909, dizendo: "Ando com uma idéia a me perseguir como certas moscas em dia de calor. Espanto-a e ela
volta. Um conto. Um farol com dois faroleiros. O mar sempre a bater nas pedras do enrocamento da torre. A vida solitária dos faroleiros, o
isolamento. As aves noturnas que se deixam cegar pela luz dos holofotes e se espedaçam contra os vidros. O objetivo é pintar o mar e as sensações de
faroleiros isolados, mas, para justificar a pintura, ponho um drama qualquer - um mata o outro, algo assim. Faz uma semana que a idéia me está
germinando lá num canteiro da cabeça, qual piolho interno". (BG, página 157).
O conto escrito em 1909, na cidade de Areias, foi de então por diante aperfeiçoado, mercê de
trabalho persistente, não só de estilo, como também de informações colhidas. É o biógrafo Edgard Cavalheiro quem mais tarde informa: "...o caso de
Os faroleiros, trabalho aliás dos mais antigos, e dos que mais sofreram revisões. Este conto foi escrito em primeira versão no ano de 1909,
em Areias. O tema, no entanto, o perseguia desde 1905, quando lera no Jornal de Taubaté uma notícia sobre certa tragédia ocorrida no farol de
Strafford, em Long Island, nos Estados Unidos. A solidão areiense era propícia ao contista. A vida solitária dos faroleiros, o isolamento... eram
estados de espírito que bem compreendia. Desce às minúcias mais extremas para compô-la. Não só visita um farol, como bombardeia com cartas o
cunhado Heitor de Morais, então residindo em Santos, a fim de obter dados que dessem maior verossimilhança à narrativa. A quem, pergunta ele,
incumbe o Governo dos faróis? Ao capitão do Porto?" (Monteiro Lobato, Vida e Obra, E. Cavalheiro, I - página 178).
O mesmo autor transcreve a notícia que teria feito nascer em Lobato a idéia de escrever o
conto: "Nos princípios deste mês, estavam de serviço os faroleiros chamados Huls e Caster. Este endoideceu de repente, Huls quis fazer sinais à
terra, mas o doido, armado de uma navalha de barba, não o deixou, travando-se entre os dois um duelo terrível: Caster queria por força apagar o
farol e matar o seu companheiro; este não só defendia a sua vida, mas também as dos navegantes, conservando sempre aceso o farol. Huls não podia
comunicar-se com a terra e teve que repelir mais de 20 arremetidas do doido, que se servia de facas, de martelos, de navalhas para o ferir" (Tragédia
num Farol, em Jornal de Taubaté, de 5/10/1905) (E. Cavalheiro, ib., página 183).
Assim, as duas referências à visita que pretendia fazer a um farol - mais precisamente ao
Farol da Moela - , no sentido de colher impressões para refazer esse trabalho (BG - páginas 286 e 288) levam o leitor menos avisado a admitir que
Lobato pretendia colher in loco pormenores da paisagem que lhe houvessem escapado na composição do conto, ou talvez certificar-se da sua
capacidade de criar o cenário que ele, àquela oportunidade, ia conferir com os próprios olhos.
Essas duas afirmações de Lobato ligadas ao conto Faroleiros levaram Edgard Cavalheiro
a afirmar em seu livro que Lobato visitara um farol.
Não obstante essas afirmações de Lobato, nas duas oportunidades já citadas, a verdade é que
ele não visitou o Farol da Moela e nenhum outro, com aquela finalidade.
Ele próprio, na seqüência de suas cartas a Godofredo Rangel, especificamente acerca do conto
Faroleiros, afirmou: "A história dos faroleiros é fantasia. De farol nunca vi senão a luzinha distante. Tem para mim esse demérito de ser
todo imaginado, sem vinco de impressão pessoal e por isso mesmo procurei dar-lhe o tom da coisa vista e vivida. E engana, parece-me". (BG, carta de
4/5/1916, pág. 313). Eis, portanto, um fato que se esclarece através do próprio Lobato com relação à sua estada em Santos e que dava impressão de
que o escritor, depois de 10 anos, encontrara aqui oportunidade para dar ao seu conto cores realistas, obtidas através da observação direta. Tudo
não passou de projeto. Lobato ficou, mesmo, no reino da sua fantasia, aliás fecunda e brilhante. Ele próprio reconhece que saiu a coisa tão perfeita
que "enganou".
A última carta de Lobato remetida de Santos é de 15/7 e a 1º de agosto já se encontra em S.
Paulo.
Passados nove anos, vem nova referência à terra santista em sua correspondência em A
Barca de Gleyre, quando informa que a revolução de 1924, de que foi cabeça Isidoro Lopes, estava terminada. "Eu nada assisti. Estava de férias
no Rio. Deixei o meu povinho em Santos, lá com o Heitor, e fui por mar. De volta ao Rio, uma semana depois, também por mar, fiquei preso em Santos,
até a evacuação de S. Paulo pelas forças de Isidoro. Que horror! Reentrei com a minha gente em S. Paulo, no mesmo dia da evacuação, à tarde. Fios
telefônicos por terra, casas em ruínas, paredes cravejadas de balas. Um burro morto na várzea do Carmo. Aspectos das cidades belgas e francesas
depois da saída dos alemães. Mas a vitalidade de S. Paulo é muito grande. Reparará tudo com rapidez. Quando vim de Santos e entrei na cidade
deserta, já havia homens remendando fachadas. A guerra havia terminado pela manhã e a reconstrução já estava em andamento. A situação agora é de
expectativa. Tudo no ar ainda. Que vontade de emigrar para não sei onde! Nem mais em S. Paulo, a terra clássica da paz, existe paz hoje! Revolução
em S. Paulo! Bombardeio de S. Paulo! Quem jamais admitiu semelhante absurdo?" (BG - pág. 446/447).
Nessa ocasião, Santos foi apenas lugar de passagem. Para ir ao Rio, por mar, tinha de tomar
o navio no Porto. E nele desembarcou, ao regressar. Nada mais.
Monteiro Lobato observou bem. Mal cessado o bombardeio, reiniciou-se a maratona do
progresso. A cidade pacífica daquele ano de 1924 foi transformada na gigantesca metrópole, que veria muitas outras revoluções, cruentas e
incruentas, mas todas com muitas desgraças caindo sobre o povo inocente, que jamais foi o beneficiário delas... A terra clássica da paz tem hoje
vida perturbada por assaltos praticados contra o patrimônio individual e coletivo, com sangue manchando o asfalto das ruas, o chão das favelas e as
folhas de jornais, vivendo clima de insegurança que transformou a massa humana em manada de bichos assustados e vingativos...
VI - Monteiro Lobato trabalhou
e muito para tornar-se escritor. Barca de Gleyre descreve o itinerário dessa inteligência inquieta, absorvendo quanta informação lhe chegava
através das toneladas de livros que leu, anotou, criticou e traduziu. Por essas cartas escritas durante 40 anos, sabe-se também como foi
aperfeiçoando seu instrumento de trabalho.
O intelectual Visconde de Sabugosa, que encontrou petróleo no Brasil
Lobato
não foi jornalista, na acepção de homem vivendo do ofício de escrever para jornais, que foram tão-somente o meio de que se utilizou para fazer
notada a presença do escritor que ele efetivamente era. A reclamação de Lobato, que hoje teria sido inserida na seção de Queixas e Reclamações
ou em outra sob a epígrafe de O leitor escreve, foi julgada tão importante pelo conteúdo e pelo estilo contundente, que O Estado de São
Paulo resolveu publicá-la como artigo assinado. Começou desse fato a caminhada para a fama.
A verdade é que Lobato não tinha muita simpatia para com os jornais, que considerava
"infames massacradores da língua, porque", continua ele, "a cachamorra que achata todas as palavras da língua é sempre o jornalismo" (BG, pága. 16 e
166) "perpetrado pela ralé da incompetência". (Ib. página 284).
No entanto, foi através de colaborações para numerosos jornais e revistas que pôde exercitar
seu instrumento de expressão. Edgard Cavalheiro (Ib. pág. 130) relaciona-os. Certo é que, além de buscar oportunidade e veículo para expor idéias,
também conquistava o espaço a que tinha direito, como escritor.
Seu biógrafo anota que, quando em Areias, Lobato colaborou em A Tribuna de Santos,
com certa regularidade, e nesse jornal, entre artigos sobre o momento político (Hermismo, Azoteida etc.) estampa o conto Bocatorta.
(Ib).
Assim, também na imprensa santista, encontramos as marcas de Monteiro Lobato merecendo seja
posto em relevo como isso aconteceu. É ainda na sua correspondência que encontramos referência ao fato. Essa colaboração não aconteceu de maneira
espontânea como se poderia supor. O escritor deixa entrever tal coisa, ao comunicar a Godofredo Rangel, em 4/8/1908, que o amigo Tito assumira "a
redação de A Tribuna de Santos, com 700 por mês. Promete pagar a minha colaboração. Havemos todos de mamar na vaca". (BG - pág. 140).
A maneira pela qual narrou o fato demonstra que o pagamento pelas colaborações em
jornais não era regra. Tito iria oferecer-lhe oportunidade de tirar proveito da presença de um amigo na redação de A Tribuna. Nada mais justo
que se pagar o trabalho intelectual. Mas era Tito, na redação de A Tribuna, quem ia possibilitar tal coisa.
Em 1º de junho de 1909, registra: "Tenho mandado uns artigos para A Tribuna de
Santos..." e esclarece: "Faço coisas para A Tribuna quando quero. Do contrário, sentir-me-ia escravo no eito". (BG - pág. 162).
Em face da comunicação de Lobato, quando Tito assumiu a redação de A Tribuna, parece
um pouco contraditório o seguinte passo, que é encontrado em carta datada de Areias, 7/7/1909: "Donde recebi convite foi de A Tribuna de
Santos, jornal cor-de-rosa que o Waldomiro Silveira dirige e já mandei como pano de amostra uma coisa cruel contra o Hermes. Prometem pagar a
colaboração logo que concluam lá umas reformas. É preciso que a literatura renda ao menos para o papel, a tinta e os selos. A primeira coisa paga
que escrevi foram uns artigos sobre o Paraná, coisa de outiva". (BG, pág. 165).
Ao que tudo indica, Tito prometera pagar e, ao mesmo tempo, pedira-lhe que enviasse
colaboração. Ele a enviou, quando lhe deu na veneta. Mandou artigos, mas sem convite oficial para colaboração remunerada, o que ocorreu mais tarde,
sendo o fato registrado na carta de 7 de julho. A afirmação de que a primeira remuneração por trabalho intelectual acontecera com os artigos sobre o
Paraná confirma que toda a sua atividade literária, além de exercício intelectual, tinha o objetivo de marcar sua presença e ganhar espaço no mundo
cultural de São Paulo.
O que intriga é afirmar Lobato que A Tribuna era jornal cor-de-rosa. A
expressão poderia fazer supor hoje que seria um jornal com disfarçada coloração vermelha... (N.E.: a cor
vermelha é atribuída aos partidos políticos esquerdistas, especialmente os comunistas) Mas àquela época, não se
utilizava essa maneira de dizer as coisas. Seria, então, A Tribuna - para Lobato - um jornal água com açúcar, sem a contundência que
exigia o seu temperamento combativo? Não encontrei explicação nas cartas para aquelas palavras. Nem na biografia de E. Cavalheiro.
Mas o esclarecimento veio com a pesquisa que fiz nos jornais da época. Em 1909, A Tribuna
era editada em papel cor-de-rosa. Daí, a observação de Lobato que, solta nas cartas, sem maiores informações, leva o leitor a imaginar coisas...
A 3 de agosto do mesmo 1909, confirmou a colaboração com estas palavras textuais: "Estou
escrevendo em A Tribuna, de Santos, jornal cor-de-rosa, a 10 mil réis o artigo. Mandei para lá hoje o Bocatorta". (BG - pág.
169). Parece que Lobato, na sua intensa atividade literária, escrevendo contos, colaborando para jornais e revistas, esquecia-se de já haver dado
essas informações a Godofredo. Esclarecendo o volume da colaboração, acrescentou: "O meu negócio com A Tribuna é pequeno: cinco artigos por
mês" (BG - pág. 172), e para dar a Godofredo o teor do seu trabalho mandou-lhe o artigo publicado em A Tribuna: "Andei metendo o nariz na
questão das candidaturas presidenciais, como verás no artigo incluso, de A Tribuna. Repugna-me esse militarismo que certos jornais do Rio
defendem... Mas não falemos nisto". (BG - pág. 182).
O registro dá notícia do posicionamento de Lobato relativamente à atitude de certos jornais
do Rio exaltando o militarismo da candidatura Hermes. Que diria ele, então, se estivesse vivo, do que aconteceu no Brasil, no final dos anos 60 e na
década de 70, quando o militarismo não foi apenas assunto de jornal?
VII - Em numerosos jornais e
revistas da época, Lobato marcava sua presença. Não é de estranhar que, ao surgir convite para participar do lançamento de uma revista, diga a
Rangel: "O Pinheiro me escreve e proporciona-te um cartão de ingresso nas letras paulistas. São Paulo já é alguma coisa, e vale a pena entrar no
palco por essa porta. E iremos juntos. Eu atirei-me". (BG - 23/1/1915, pág. 259). Demonstrando quanto estava interessado em conseguir espaço para
ambos, acentua: "Se te convidar, entra. Precisamos de portas, Rangel".
A Tribuna era uma delas. Ia poder, também, tirar proveito material da atividade
literária, ainda que fosse para pagar o papel, tinta e selos do correio.
Compreende-se, portanto, que ao assentar com A Tribuna a remuneração de 10$000 por
trabalho, haja comunicado euforicamente a Godofredo, em 15 de setembro de 1909: "Já encetei a série de artigos para a A Tribuna e já fiz jus
a 40$000. Com isso pago dois meses de aluguel da casa. Pagar a casa com escritos, que maravilha, hein?" (BG, 15/9/1909, pág. 176).
Tia Nastácia, a cozinheira do Sitio do Pica-pau Amarelo
Além
da retribuição material, que provocou expressões tão curiosas, note-se que Lobato ia aparecer, àquela época, ao lado de Waldomiro Silveira, que
posteriormente seria apresentado em livro pela editora do escritor taubateano. O exame dos jornais da época que eram impressos em papel
cor-de-rosa oferece uma curiosidade: na edição de 31/8/1909, sem qualquer relevo especial, encontra-se o soneto Velho Tema, de Vicente de
Carvalho, poema que é o primeiro do livro que mais tarde seria publicado sob o título Poemas e Canções.
Outro fato curioso encontra-se na edição de 4 de outubro do mesmo ano, onde, sob o título Musa
em Família, estão publicadas na primeira página cinco poesias do clã dos Silveira, a saber, Waldomiro, Agenor, Brenno, João e João Silveira
Júnior.
Era o tempo da Santos provinciana, publicando poesias na primeira página do seu jornal
oficial, nela ganhando manchete "Prisão de uma ébria", que hoje nem mereceria destaque na coluna dos fatos policiais (edição de 22/10/1909). É bom
lembrar, também, que já àquele tempo a polícia dissolvia assembléias de operários como aconteceu na Praça Teles, na sede da Federação Operária, onde
padeiros discutiam a decretação de greve. O delegado de polícia, dr. Bias Bueno, que hoje é nome de rua, "por julgar sediciosa a reunião", entrou na
sede da Federação e dissolveu a reunião, sob pretexto de que os operários reagiram com violência. Houve tempo quente, cadeiras arrebentadas e
pancadaria grossa. A Justiça tomou conhecimento do fato e em ação penal própria foram envolvidos quase uma centena de trabalhadores. Como se vê,
operário, greve e polícia estão desafinados desde priscas eras...
Sabe-se, também, pela correspondência de Lobato, que no dia 29 de janeiro de 1915 ocorreu na
Cidade um caso extraordinário: "Derreteu-se o asfalto das ruas e correu para o mar como um rio de lava negra". (BG, pág. 261).
Nos idos de 1904 houve também viagem de Lobato a Santos e São Vicente em companhia de Lino
Vieira. Acontece que Rangel, em 1903, publicara no jornal O Combatente um longo itinerário da viagem que fez, de São Paulo a Guarujá,
trabalho que Lobato considerava um primor de descritivo digno de ombrear-se com as páginas de viagem dos mais notáveis escritores. Godofredo
excursionou com 7$000 no bolso, dinheiro que dava apenas para uma passagem de 2ª classe no trem da S.P.R. (hoje Santos-Jundiaí) e para comer alguma
coisa no caminho. Trouxe como bagagem um cobertor e escova de dentes. Alimentou-se de sardinhas, café, média, pão e bananas.
Estando aqui, em 1904, quis Lobato conferir os pormenores descritos por Godofredo, refazendo
o itinerário, segundo se comprova por este trecho de sua carta: "Muito nos lembramos de você lá em Santos e verificamos o bom descritivo da tua
viagem a Guarujá. Os buracos de caranguejos na lama preta do mangue, o homem do escarro no trem, a barca. O meu plano era ir a Guarujá a pé, como
fizeste, mas o Lino e o Sancho Pança que há em mim não concordaram". (BG, pág. 39).
Poderia Monteiro Lobato ter realizado obra que o ligaria mais a Santos se tivesse
concretizado o projeto que anunciou em carta de 13/5/1923: "Estou com idéia dum romance histórico, Titila. Tenho de estudar o primeiro
império para romancear historicamente a famosa marquesa do Pedro I. É o nosso único romance histórico capaz de interessar
vivamente o público. A Titila titilava. Prendeu aquele garanhão durante oito anos". (BG, pág. 438).
Que pena o projeto haja gorado! Já imaginaram o que seria a evocação do romance de Domitila
e D. Pedro através da pena maliciosa e mordaz de Monteiro Lobato, analisando o gênio insofrido do imperador, a oposição dos Andradas, o pano de
fundo da política do Primeiro Império, descrevendo as recepções da concubina, os encontros íntimos dos amantes, a intermediação do Gomes da Silva -
o Chalaça -, a vingança de D. Pedro dando à amante título de nobreza ligado a Santos, berço de seus adversários...
Na carta, já se antevê a malícia em que molharia a pena para escrever a história, quando
equivocamente disse que "a Titila titilava..." Não foi Lobato, mas Paulo Setúbal que, mais tarde, aproveitou esse romance perdido na história
e nascido com a decretação da nossa independência, em 1822.
Dada a sua maneira de ser desabrida e independente, causa espécie que Lobato permitisse
censura em seus artigos. É o que confessa em sua carta de 7 de fevereiro de 1916: "O Estado é cauteloso. Poda-me os pedaços mais atrevidos e
portanto melhores. Baixa o tom das minhas violências. Em compensação, vingo-me em O Queixoso, revista quinzenal de pau no lombo. Lá
não me cortam coisa nenhuma. É tudo à Camilo, quando brigava". (BG, pág. 301).
Verifica-se, portanto, que já àquela época havia uma censura. Não das autoridades, mas
do jornal em relação ao escritor. O que estranha é que Lobato a aceitasse. Mas era o ano de 1916 e o escritor andava muito interessado em ganhar
espaço e abrtir portas. São Paulo era o palco ideal para agitar suas idéias. Era campo de muitos alqueires para o galope das suas ambições. Para
esse fim, O Estado era de capital importância.
O mundo oficial também não o poupou. Muito mais tarde, em 1937, em virtude de afirmações que
fizera o Visconde de Sabugosa a respeito de haver petróleo no Brasil - fato negado pelos técnicos do Estado Novo -, o livro O Poço do Visconde
é posto no Index. O mesmo ocorreu em Portugal e suas colônias. Aí proibida foi a obra de Lobato porque este admitia a hipótese de o Brasil ter sido
descoberto por acaso. Mas também pode ter sido porque registrara em sua História do Mundo para Crianças o episódio ocorrido em Calicut, com
Vasco da Gama. Ele não deixou por menos, ao vencer os árabes. Cortou 1.600 orelhas aos marinheiros maometanos, por seu rei e por sua fé.
O pior foi a queima de livros realizada no Colégio Externato Sacré Coeur, no Rio de Janeiro,
em 1942. Uma freira solicitou às alunas que tivessem livros de Monteiro Lobato, que os trouxessem ao colégio para fim não claramente especificado.
Uma vez trazidos, foram queimados, como hoje se queima maconha, a erva maldita, ou como outrora aconteceu com Joana D'Arc, posteriormente
canonizada... (Monteiro Lobato - Edgard Cavalheiro, págs. 166/77).
Emília e o Visconde de Sabugosa, em ilustração de 1947 de J.U. Campos
VIII - Afora Heitor de Morais,
seu cunhado, possuidor de vasta biblioteca que faria o encanto de Lobato - longe de Santos -, não encontrei notícia de alguém mais com quem
houvesse privado, conversando, debatendo, esgrimindo como era de seu feitio, no campo da literatura e da política.
Em 1916, confessa a Rangel: "Esteve a pique de realizar-se a minha mudança para Santos, a
advogar com o Heitor Morais, meu cunhado. Mas deu-me de repente tal nojo da civilização com seus cartórios, seus autos e oficiais de justiça, suas
traficâncias e traquibérnias e pulhices, que voei para cá (para a fazenda), como quem voa para uma Canaã. Antes os meus urupês daqui, de pés no
chão, do que os urupês encolarinhados e de sapatos de verniz das cidades. Mal por mal, os daqui são meus inferiores socialmente, toco-os quando é
mister, e como tocar da vida da gente os urupês da Cidade que se nos agregam?" (BG, pág. 330).
Não veio morar em Santos, porque não se afinava com a advocacia. Mas é certo, também, que
mais tarde, já no fim da vida, ao restabelecer-se de espasmo vascular, Adolfo Jagle, que sabia de sua paixão pelo mar, sugeriu-lhe fosse descansar
em alguma praia. Ele, incisivo, cortou com o seguinte argumento: "Se formos a Santos não terei com quem conversar. E morrerei de tédio. Prefiro
então S. Paulo" (E. Cavalheiro, ib., pág. 249).
Todavia não tendo vindo fixar-se em Santos, nem por isso perdeu contato com a Cidade, pois
em 1917, quando enveredava pelo caminho de editor, resolveu publicar Waldomiro Silveira, que já em 1909 era diretor de A Tribuna, e Agenor
Silveira. E isso foi acertado, uma vez que Waldomiro Silveira firmar-se-ia no mundo das letras como um dos pilares do conto regionalista.
É caso de se conjecturar: se tivesse para cá se mudado, envolvendo-se em processos cíveis e
criminais, Lobato teria construído a saga que foi a sua vida, indo para os Estados Unidos, lutando pela siderurgia e pelo petróleo e, sobretudo,
criando as personagens todas do Sítio do Pica-pau Amarelo?
À época em que iniciava colaboração para A Tribuna, surgiu polêmica entre Vicente de
Carvalho e outro cidadão, a propósito da fundação de uma academia de letras em S. Paulo. E Lobato, que com ela se divertia, indagou de Rangel: "Tens
acompanhado a polêmica pour rire do Vicente de Carvalho com outro Carvalho muito pouco Vicente? J.J. Carvalho é médico e secretário numa
Academia Paulista de Letras que anda tentando existir. Esse J.J. foi o parteiro dessa academia, a qual veio (na plataforma inaugural) como uma
protestação contra o mau hábito da Academia Brasileira de Letras (que ele chama de Academia do Rio) de não recolher em seu seio os J.J. estaduais.
As academias hão de ser de 40, como as venezianas hão de ser verdes. Vicente ri-se do homem e o homem bate o pé e arreganha para o Vicente.
"Olhos encantados, olhos cor do mar
Olhos pensativos que fazeis sonhar..."
"Como é linda Rosa, Rosa de Amor.. do sublime Maneta. Vilalva, se estivesse vivo,
diria que o Vicente se fez Maneta para nem nesse ponto ficar abaixo de Camões, que era caolho...". (BG, pág. 173/190)
Vê-se que, embora admirando a poesia inspirada de Vicente de Carvalho, Lobato não deixava de
atirar-lhe farpa que o atingia em seu defeito físico.
E não foi apenas essa vez. Em 1917, quando discorria acerca dos nomes que se projetavam na
Literatura, elogiou Guilherme de Almeida, cujo livro de sonetos Nós acabava de aparecer. Depois de reconhecer que em S. Paulo, de par com
Guilherme de Almeida, havia outro nome respeitável, usa de expressão que mais uma vez atinge o poeta santista em algo de que não tinha culpa. "São
os dois de S. Paulo: Vicente de Carvalho, glória legítima, mas já sem uma asa, e Guilherme, uma linda manhã". (BG, pág. 354).
Esse homem que não poupava elogios às figuras de sua admiração - Ricardo Gonçalves,
Godofredo Rangel, Camilho, Ruy, Machado de Assis e outros - procurava ficar distante das rodas onde se badalavam as glórias literárias.
Quando da estada de Graça Aranha em S. Paulo, um amigo de Lobato telefonou-lhe dois dias
seguidos: "Primeiro dia: O Graça Aranha está em S. Paulo e quer conhecê-lo. Fiquei ciente e agradeci. Segundo dia: O Graça Aranha quer
conhecê-lo. Venha cá. Respondi: Não posso. Muito serviço. Se de fato ele quer me conhecer, que venha procurar-me aqui."
Lobato não foi. Garaça Aranha veio até ele.
Bilac em S. Paulo foi cercado pela legião de seus admiradores. Afinal, era nome nacional.
Lobato manteve-se longe desses encontros. E comenta em carta a Rangel: "Bilac perguntou a Heitor de Morais por que motivo eu lhe fugia (isto é,
porque o não incensava) e achou-me esquisito. Acostumou-se o grande poeta ao coro perpétuo de Ohs! da rodinha do Estado. Os literatos
célebres lembram-me os políticos que jamais caem, como o Rodrigues Alves. Estes espantam-se com uma oposiçãozinha; aqueles que não admitem essa
coisa linda que é uma pequenina animadversão (N.E.: = censura) gratuita. Porque têm um
nome do tamanho dum bonde amarelo e moram no andor da apoteose, acham inadmissível que um ignaro anônimo tenha a preguiça do rapapé e por higiene
fuja ao beija-mão". (BG, pág. 354).
Essas rodas não faziam bem a Lobato. Deslocar-se da Fazenda para São Paulo com o fim de
encontrá-los era-lhe penoso. A vaidade desses imortais fazia-lhe mal. Por isso, extravasou a Rangel, em 1916: "Ah, que gente! Que perus recheados
com farofa... Enfarei-me deles em S. Paulo. O maioral da taba é Vicente de Carvalho, poeta dos maiores da língua, mas que pena ser também peru
recheado! Seus amigos formam-lhe uma corte luizesca; Vicente não solta um simples borborigma sem que eles, em redor, não arregalem os olhos e
murmurem em êxtase: "Não é arroto, é Camões!" (BG, pág. 307).
Como se vê, o grande poeta santista recebeu, nas cartas endereçadas a Godofredo Rangel,
repetidas alfinetadas que o feitio sarcástico de Lobato não lhe poupou, embora reconhecesse a glória legítima do autor de Fugindo do Cativeiro.
IX - Não respiguei muito,
porquanto as estadas de Lobato em Santos foram poucas. Excetuando Amaury Veridiano Laranja, que me deu a informação referida no
capítulo IV, não contatei ninguém que me fornecesse dados sobre seus passos, tertúlias, discussões, nos idos de 1903 a 1915. O adulto que viveu
nessa época e pôde aqui conhecer Lobato deve, provavelmente, ter passado desta para melhor. Em sua correspondência na Barca de Gleyre foi o
que pude encontrar. Aliás, não deve ter deixado aqui muitas relações, pois quando lhe foi sugerido que tomasse férias par recuperar forças junto ao
mar, após enfermidade, respondeu que não lhe aprazia vir para Santos. Não teria com quem conversar e morreria de tédio.
Monteiro Lobato, uma figura tornada perene
Foto: A Tribuna, 13/12/1982
Esse
homem combativo, que construiu sua cultura à força de muito estudo, impôs ao Brasil a força do seu talento. Marcou sua presença nas letras, seja
como contista, seja como iniciador da literatura infantil em nossa terra. Com larga visão do progresso das nações modernas, lutou pela implantação
da siderurgia e foi pioneiro na abordagem da pesquisa do petróleo. Discutiu, fundou empresas, lutou contra interesses estrangeiros e contra a
burrice e má vontade dos nossos governantes. Ganhou o prêmio que a Pátria reserva aos que a amam de verdade, sem buscarem nas suas campanhas
dividendos eleitorais ou vantagens pecuniárias: foi para a cadeia. Porque essa ingratidão o feriu profundamente, afirmava que Getúlio era o
imperdoável.
Mas se o mundo oficial castigou-o por amar muito ao Brasil e lutar por seu desenvolvimento, teve a
consagração que só merecem os que ficaram no coração do povo: virou samba enredo. O mundo que a sua fantasia criou e a sua vida dedicada ao
Brasil foram celebrados pela Escola de Samba da Estação Primeira de Mangueira, num samba que a multidão cantou e vem cantando até hoje.
Em vez de buscar o poder político e os aplausos mentirosos que acompanham os passos dos
figurões que detêm, transitoriamente, altos cargos, Lobato plantou beleza no coração das crianças, amor às nossas coisas, ternura, carinho, amizade,
deu asas à sua imaginação, criando para elas um universo mágico.
O mundo ficou mais lindo, quando vieram povoá-lo uma boneca de pano muito feia, chamada
Emília, o Visconde de Sabugosa, a tia Anastácia e todas as personagens do Mundo Encantado de Monteiro Lobato.
Monteiro Lobato em 1915, em primeiro plano,
sentado sobre o joelho do escritor Oswald de Andrade, em São Paulo
Foto: Museu Monteiro Lobato
O nome do peixe santista
Defensor da cultura brasileira, Monteiro Lobato criticava, por exemplo, o
batismo em francês dos pratos culinários servidos em território nacional. A respeito, registra a revista Bonifácio (número 5, de outubro a
dezembro de 2004, publicada pelo Instituto José Bonifácio, Brasília/DF):
Em Curioso caso de materialização, compilado em Idéias de Jeca Tatu, convoca
literariamente o escritor português Camilo Castelo Branco para questionar o Trianon, situado num belvedere na Avenida Paulista, onde seria erguido o
Museu de Arte de São Paulo (MASP):
"Batizar uma casa de pasto, cá na América, com o nome dum antigo castelo francês, sabe-me a disparate", alfinetou o escritor luso, pela pena de
Lobato, e sugeriu que o nome deveria ser A comedoria paulistana, ou Aos bebes da Avenida, ou À grossa pagodeira, combinando com
as funções do negócio. E acrescentava que, outrora, juntavam-se às refeições somente um qualificativo que só dizia respeito ao seu valor culinário
ou nutriente - jantar suculento. "Mas este jantar chique sabe-me a laranja sutil, a pão elegante, a ananás janota, a
feijoada distinta de maneiras, a batata grácil e quejandas asnidades".
"É a elegância, mestre, é o requinte!", retruca Lobato na voz do interlocutor, explicando que "Creme Princesse não passa de uma gemada
qualquer e que Suprême de Turbot é uma papa de cação de Santos".
Reprodução da primeira página de Narizinho Arrebitado, revista pelo autor, Monteiro
Lobato
Foto: Arquivo da Família Monteiro Lobato
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