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NAVIO RAUL SOARES: DEMOCRACIA À DERIVA
Livro escrito nos porões do navio-prisão foi destruído e lançado ao mar
"Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras", disse o coronel ao autor, jornalista
Nelson Gatto, após apreender toda a edição e lançá-la ao mar
Repórter: Francisco Aloise
Escrito em 1965, o livro Navio Presídio,
obra do jornalista Nelson Gatto (morto em 1986), um dos presos do Raul Soares, foi apreendido pelo Dops sem chegar às livrarias. A justiça
Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez – e desta por 10 a 0 –
veio a ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica,
Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar
(N. E.: segundo depoimento do filho do editor, Uri Behar, à revista
Veja São Paulo, na verdade o livro chegou à sua livraria na capital paulista, e alguns pacotes foram separados, antes que os militares chegassem
para a apreensão).
Depois, o coronel justificaria ao autor: "Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras".
"O depoimento que ora torno público, escrito em papel de embrulho num
cárcere imundo de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos, é a explicação que dou aos meus
amigos. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um documento a retratar o Brasil numa época desgraçada".
Assim começa o livro Navio Presídio, que poucos leram, ao contrário do que seu autor, o
jornalista Nélson Gatto, pretendia. Escrito em 65, foi apreendido pelo Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) sem chegar às livrarias. A
Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez – e desta por 10
a 0 – veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da
Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar. Poucos exemplares foram
salvos.
Depois o coronel justificaria ao autor: "Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras". Gatto,
que havia passado 43 dias no navio-presídio, voltou a ser preso em 67, para responder sobre o livro, conforme prometera o então capitão dos portos,
Júlio de Sá Bierrembach.
O texto é do jornalista Carlos Mauri Alexandrino, um dos poucos a ter um exemplar do livro escrito
por Nelson Gatto, que ele diz guardar em sua estante como um valoroso troféu, e foi publicado no Jornal Preto no Branco,
da Cooperativa dos Jornalistas de Santos, em 1979. Mauri também é coautor do livro Sombras Sobre Santos, que retrata a situação dos presos no
navio Raul Soares.
Ele menciona que os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés, estalavam com os
leves balanços que o banco de areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono, quebrado pelas tosses doentias dos que já escarravam
sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as portas trancadas e
vencer os sombrios corredores.
Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo cansaço,
eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas adormecidas. Na
maioria das celas, entretanto, enfrentar o colchão era menos desconfortável que ficar em pé, com água gelada pelo tornozelo.
De repente, uma patrulha abria a porta e lançava para dentro a luz de uma lanterna elétrica, sempre
secundada pelos canos ameaçadores das metralhadoras portáteis. Os homens da Polícia Marítima entravam levantando os prisioneiros revistando tudo,
como se fosse possível esconder alguma coisa. Os escritos eram apreendidos para ser anexados aos processos ou então para abertura de novos
inquéritos: uma poesia podia significar mais algumas semanas no imundo navio-prisão.
Às seis horas soava a sirena, a ordem para que todos se levantassem. Em pouco tempo era servido o
café e um pedaço de pão. Eram colocados fora das celas, que eram abertas o tempo suficiente para que o preso apanhasse a caneca, sob a mira das
metralhadoras, para que não conversasse ou lançasse qualquer olhar sobre o vizinho de infortúnio. Às onze horas, era servido o almoço, no convés,
para onde os presos eram encaminhados em fila indiana, sob mira das armas também.
Navio Raul Soares permaneceu por 6 meses no porto de Santos, onde serviu de presídio
flutuante para presos políticos e sindicalistas
Foto: reprodução, publicada com a matéria
A comida – Cada um pegava sua bandeja, que era enchida com uma pasta de arroz e feijão
preto, na maioria das vezes azeda e malcheirosa, que provocava diarreias incontroláveis e dores de estômago. Não havia talheres para todos e por
isso eram obrigados a comer com as mãos.
Alguns se recusavam a esse tratamento, exigindo o tratamento digno de um preso político: esses
simplesmente não comiam mais, contentando-se com a banana ou a laranja servida como sobremesa. O jantar era uma sopa intragável feita com os restos
do almoço, servida lá pelas 16h30 horas.
As saídas das celas eram limitadas a uma ida diária ao banheiro e aos chamados arejamentos que não
eram diários e, preferencialmente, nos dias chuvosos e fios, quando os presos eram colocados no convés para caminhar ou fazer exercícios forçados
incompatíveis com suas condições físicas. Muitos presos, em cinquenta dias de prisão, não chegaram a sair para arejamento dez vezes, meia hora em
cada uma. Nada de conversa: era proibido.
Operação resfriamento – Os presos do Exército, sob ordens do tenente-coronel Sebastião
Alvim, eram submetidos a longos períodos de permanência dentro de uma geladeira. O nipônico Tomochi Sumida, absolutamente enfraquecido pelos maus
tratos, era internado na geladeira todas as sextas-feiras: de duas em duas horas, soldados armados de metralhadoras abriam a porta para que entrasse
ar e voltavam a fechá-la.
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"Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo
cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas
adormecidas. Na maioria das celas, entretanto, enfrentar o colchão era menos desconfortável que ficar em pé, com água gelada pelo tornozelo" |
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"Jamais esquecerei a solidariedade humana encontrada entre os homens recolhidos no navio Raul Soares.
Doces, frutas, bolachas, enviados das outras celas através dos guardas, evitaram que eu caísse de fraqueza. Os presos Osmar Campos Colegã, Domingos
Garcia, Ovídio Ferreira Dias, Ascendino Vieira, Thomaz Maack, Hildebrando Pereira, Bernardo Boris, sempre que podiam, enviavam alguma coisa de comer
para o meu xadrez. Jonas Sobrinho, funcionário da Petrobrás e ocupante de um cubículo no meu corredor, sabedor que eu não tinha com que me cobrir
durante a noite, enviou por um guarda uma camisa de lã que me foi de grande valia enquanto estive preso". (Jornalista Nelson Gatto, em seu livro
Navio presídio).
Capa do livro de Nelson Gatto, Navio Presídio - Outra Face da "Revolução"
Foto: reprodução, publicada com a matéria
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