"Arrancamos das entranhas do navio maldito as histórias
proibidas dos sombrios cárceres, dos calabouços de tortura de presos políticos em 64"
Reprodução da capa desse mensário publicado em setembro de 1979
Nau insensata
Texto de Carlos Mauri Alexandrino
Fotos do navio cedidas pelo Museu Naval de São Vicente
Os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés,
estalavam com os leves balanços que o banco de areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono quebrado pelas tosses doentias
dos que já escarravam sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as
portas trancadas e vencer os sombrios corredores. Já o fedor de mijo e de merda não esperava ordem para invadir tudo, fazendo arder o ar nas narinas
e gargantas.
Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo
cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas
adormecidas. Na maioria das celas, entretanto, enfrentar o colchão era menos desconfortável que ficar em pé, com água gelada pelo tornozelo.
De repente, uma patrulha abria a porta e lançava para dentro a luz de uma lanterna elétrica,
sempre secundada pelos canos ameaçadores das metralhadoras portáteis. Os homens da Polícia Marítima entravam levantando os prisioneiros e revistando
tudo, como se fosse possível esconder alguma coisa. Os escritos eram apreendidos para ser anexados aos processos ou então para abertura de novos
inquéritos: uma poesia podia significar mais algumas semanas no imundo navio-prisão.
Às seis horas soava a sirena, a ordem para que todos se levantassem. Em pouco tempo era
servido o café e um pedaço de pão. Eram colocados fora das celas que eram abertas o tempo suficiente para que o preso apanhasse a caneca, sob a mira
das metralhadoras, para que não conversasse ou lançasse qualquer olhar sobre o vizinho de infortúnio. Às onze horas, era servido o almoço, no
convés, para onde os presos eram encaminhados em fila indiana, sob mira das armas também.
A comida era uma pasta intragável de arroz e feijão-preto estragados.
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Cada um pegava sua bandeja que era enchida com uma pasta de arroz e feijão-preto, na maioria
das vezes, azeda e malcheirosa, que provocava diarréias incontroláveis e dores de estômago. Não havia talheres para todos e por isso eram obrigados
a comer com as mãos.
Alguns se recusavam a esse tratamento, exigindo o tratamento digno de um preso político:
esses simplesmente não comiam mais, contentando-se com a banana ou a laranja servida como sobremesa. O jantar era uma sopa intragável feita com os
restos do almoço, servida lá pelas 16,30 horas.
As saídas das celas eram limitadas a uma ida diária ao banheiro e aos chamados arejamentos
que não eram diários e, preferencialmente, nos dias chuvosos e frios, quando os presos eram colocados no convés para caminhar ou fazer exercícios
forçados incompatíveis com suas condições físicas. Muitos presos, em cinqüenta dias de prisão, não chegaram a sair para arejamento dez vezes, meia
hora em cada uma. Nada de conversa: era proibido.
Não havia médico a bordo - a não ser alguns encarcerados que não podiam atender ninguém - e
os poucos medicamentos foram distribuídos por um enfermeiro da Marinha que insistia em ser chamado de doutor e que reagia com violência se as crises
eram noturnas, despertando-o do sono. O que mais fazia esse "doutor" era dizer que não entendia daquela determinada doença e, quando estava de bom
humor, deixava algumas aspirinas aos sofredores.
O navio, na época em que foi usado como prisão militar
Foto publicada com a matéria
O Raul Soares já era um velho de 64 anos ao chegar a Santos, em 24 de abril de 1964,
para começar a receber os presos políticos seis dias depois. Havia sido um vigoroso transatlântico alemão antes de ser adquirido pelo Lloyd
Brasileiro, em 1925. Serviu de prisão da rebelião comunista em 1935 e na revolta dos sargentos em Brasília. Sua última missão foi ainda de
encarcerar brasileiros, fundeado em Santos. Os episódios que virão a seguir mostram, por si, o que foi o negro período:
El Moroco - Os calabouços do navio eram três, batizados, ironicamente, com
nomes de inferninhos famosos da época. El Moroco era um salão totalmente metálico, ao lado da caldeira, sem nenhuma ventilação, onde a temperatura
passava dos 50 graus, sem nenhuma iluminação. Ainda assim era o melhor. O Night and Day era uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada
pelo joelho. O Casablanca era onde eram despejadas as fezes dos presos. Eram usados para quebrar a resistência - ou o que tachavam de impertinência
- dos presos políticos. A maioria passou por essas salas. Foi onde Manoel de Almeida, ex-líder operário, contraiu a doença que o matou dois meses
atrás. Waldemar Guerra, o que mais resistiu, ficou 16 dias num deles, sem comer.
Os calabouços eram os cubículos onde se jogavam as fezes dos presos políticos.
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Libertados-presos - O Juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Ferreira
Granda, concedeu habeas-corpus para 16 presos que deixaram o navio por volta das 21 horas de um determinado dia. Foram colocados na sala do
então capitão dos Portos, Júlio de Sá Bierrenbach, de quem ouviram a pergunta se alguém tinha queixas contra o tratamento recebido.
Não houve nenhuma resposta, pois a vontade de ir para casa era muito grande. O capitão
chamou a imprensa, mandou que os fotografassem e saíssem. Em seguida tornou para os presos: "Quero comunicar que vocês estão soltos e que agora, que
estão em liberdade, estou dando nova voz de prisão, pois se saíram do processo da Aeronáutica, ainda não enfrentaram o da Marinha. Estou abrindo
novo inquérito". E deu ordem para que os soldados os conduzissem de volta ao navio. Muitos choraram de tristeza e ódio.
O pequeno japonês era fechado na geladeira todas as sextas-feiras.
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Operação resfriamento - Os presos do Exército, sob ordens do tenente-coronel
Sebastião Alvim, eram submetidos a longos períodos de permanência dentro de uma geladeira. O nipônico Tomochi Sumida, absolutamente enfraquecido
pelos maus tratos, era internado na geladeira todas as sextas-feiras: de duas em duas horas soldados armados de metralhadoras abriam a porta para
que entrasse ar e voltavam a fechá-la.
Grupo de prisioneiros no Raul Soares
Foto publicada com a matéria
Sem banheiro - A conversa entre os prisioneiros era proibida e nas poucas
vezes em que foi possível a montagem de um sistema qualquer de comunicação, sua descoberta foi punida com a proibição dos arejamentos e das idas ao
imundo banheiro coletivo, sendo obrigados os presos a fazer suas necessidades no chão da própria cela.
Jornalistas sabujos - Certa vez foram levados a bordo dois jornalistas de
Santos, com a missão de descreverem em A Gazeta as "ótimas condições carcerárias". Ambos procuraram elogiar os militares durante a visita e
no jornal do dia seguinte estava anotada a única queixa: faltavam facas para cortar os bifes. Ambos ainda estão na ativa.
Propostas - O capitão Francisco Renato de Melo, da Aeronáutica, prendia
sargentos e posteriormente fazia propostas desonestas às suas esposas. Assim aconteceu com o sargento Nilton Alencar, o suboficial Aving e muitos
outros militares presos.
A embarcação "maldita"
Foto publicada com a matéria
Roubar bananas - Os descuidados caiçaras que passavam com suas canoas perto do
navio eram presos e submetidos a interrogatórios que nunca provaram coisa alguma contra ninguém. Enquanto eram interrogados, suas cargas, geralmente
bananas ou peixes, eram subtraídas pelos soldados.
Baratas, pulgas e percevejos infestavam as celas imundas e úmidas.
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Desconfiança total - Quando a Marinha descobriu que os policiais marítimos
haviam dado algumas facilidades aos prisioneiros por dinheiro e que haviam feito algumas fotos a bordo, os fuzileiros navais foram proibidos de
conversar com os membros da outra força. Foram armadas metralhadoras potentes em pontos estratégicos: a Polícia Marítima vigiava os presos e a
Marinha vigiava a Marítima.
Se vinha ordem de soltura, os presos eram indiciados em novos inquéritos.
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Sem Lei - Os habeas corpus jamais foram respeitados e mesmo as ordens
de soltura não eram atendidas. Todos os militares comentavam abertamente - e especialmente o tenente da Polícia Marítima, Ariovaldo Pereira dos
Santos, o mais violento dos carcereiros -, que qualquer ordem de soltura seria contornada com a abertura de novo inquérito. Assim ocorreu com grande
número de presos, entre eles Sérgio Martins, Argeu Anacleto da Silva, José Ribeiro, Neves Guerra, Nelson Frutuoso Amado.
Capa do livro de Nelson Gatto
Foto publicada com a matéria
O jornalista foi calado
"O depoimento que ora torno público, escrito em papel de
embrulho num cárcere imundo de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos, é a explicação que dou
aos meus amigos. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um documento a retratar o Brasil numa época desgraçada."
Assim começa o livro Navio Presídio que poucos leram, ao contrário do que seu autor,
o jornalista Nélson Gatto, pretendia. Escrito em 65, foi apreendido pelo Dops (N.E.: Delegacia de Ordem Política e
Social) sem chegar às livrarias. A Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela
Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez - e desta por 10 a 0 - veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão
Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica,
apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar. Somente um exemplar escapou.
Depois o coronel justificaria ao autor: "Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras".
Gatto, que havia passado 43 dias no navio-presídio, voltou a ser preso em 67, para responder sobre o livro, conforme prometera o então capitão dos
portos, Júlio de Sá Bierrembach. Em 1968, novamente preso:
- Era véspera de 1º de maio - conta o jornalista - e corriam boatos de que haveria
manifestações. Então fui encarcerado pelo II Exército. Durante o discurso, o governador Abreu Sodré foi apedrejado em praça pública e o Serviço
Secreto da Aeronáutica me identificou como o líder do apedrejamento, o que A Gazeta noticiou em manchete. E eu na cadeia o tempo todo. Foi
uma desmoralização geral.
- Em 1970 fui acusado de ter articulado, ou participado, ou sei lá o que imaginaram, no
seqüestro do cônsul japonês. Aí fui para a Operação Bandeirantes, na rua Tutóia (N.E.:Oban, órgão da repressão nessa
rua da capital paulista), onde passei onze dias. O que aconteceu ali faz o episódio do Raul Soares parecer um
passeio. Numa ocasião me deixaram horas na beira da represa Billings, totalmente nu e com uma pedra amarrada no pescoço. Depois me levaram para um
matagal e mandaram que eu corresse. Fiquei parado como uma estátua apesar dos tiros que dispararam próximos a meu corpo, e isso, sem dúvida, me
salvou a vida.
- Queriam que eu confessasse que estava envolvido no seqüestro, o que era um absurdo total.
Me colocaram dois dias numa pequena cela, totalmente escura, com um rato enorme e faminto. Se eu me sentava, o rato atacava e mordia. E naquela
escuridão eu não conseguia matá-lo. Fiquei o tempo todo em pé, procurando chutá-lo. Além disso, tomei choques e fui espancado. Vi numa cela coletiva
um grã-fino de São Paulo, Paulo Henrique Sawaia, tentar achacar o Tomas Farcas, dono da Fotótica, que também estava preso. Ele disse a Farcas que
tudo se resolveria se desse dinheiro para a repressão política. Ele recusou e, nos dias seguintes, prenderam-lhe um filho e a filha.
- Fiquei 343 dias preso como suspeito e quando seqüestraram o cônsul suíço no Rio, fui
incluído na lista. Enviaram-me para o Rio, mas me recusei a deixar o país. Aí, tentaram me usar para fazer propaganda e fizeram com que gravasse um
depoimento para a televisão, de 40 minutos, nos quais não fiz um elogio sequer à revolução. O depoimento acabou saindo todo cortado, reduzido a oito
minutos, porcamente montado. Queriam que eu condenasse o seqüestro e afirmasse que estava sendo bem tratado. O que falei foram das torturas, o que
não servia a seus propósitos.
- Foi tudo coisa de um promotor da Justiça Militar, Durval Aírton de Moura Araújo, que
queria me pegar de qualquer maneira. Era tão desequilibrado que atualmente é procurador, de modo que não participe de mais nada. Ele chegou a me
acusar de distribuir armas a manifestantes em Santo André, no dia da morte do Assis Chateaubriand (N.E.: fundador do
grupo jornalístico Diários Associados). Acontece que durante a manifestação eu estava ao lado do delegado
Alcides Cingilo, do Dops. Assim mesmo, a denúncia daquele desequilibrado foi publicada em página inteira do Estadão.
Nelson Gatto era jornalista dos Diários Associados e, antes da revolução, foi
transformado em chefe do Departamento de Repressão ao Contrabando em S.P., posição a que foi chamado pelo II Exército, pela experiência demonstrada
nas grandes reportagens que fez denunciando gangs contrabandistas, "os bandidos de casaca", como costuma dizer. Quando foi dado o golpe
militar, conseguiu fugir disfarçado de padre, e se entregou posteriormente. Como jornalista, foi correspondente de guerra durante a invasão de Goa,
na guerra do Congo, e na luta de libertação da Argélia, sobre os quais também escreveu livros. Hoje, anistiado, pretende voltar ao jornalismo, do
qual foi afastado por ordem militar. O repórter escreverá novamente. |