Imagem: reprodução da página com a matéria
NAVIO RAUL SOARES: DEMOCRACIA À DERIVA
"Para mim foi mais fácil refazer a vida", diz médico preso no navio-prisão
O cientista médico Thomas Maack, preso no navio Raul Soares, elogia, de Nova
Iorque, a série de reportagens Democracia à Deriva, que foi iniciada através de sua entrevista, no último domingo, no Diário do Litoral.
E diz que, para ele, foi mais fácil refazer a vida, destruída pela ditadura militar, do que para trabalhadores do Porto de Santos
Repórter: Francisco Aloise
De Nova Iorque, Estados Unidos, o
cientista médico Thomas Maack, um dos personagens do navio-prisão Raul Soares, cuja entrevista abriu a série de reportagens denominada "Democracia
à Deriva", parabeniza o Diário do Litoral pela iniciativa e faz novos relatos sobre contatos mantidos com alguns dos presos. "Gostei
particularmente da entrevista com Alceu Anacleto da Silva, aprendi muito", diz o médico, especialista em pesquisas, e professor emérito da
Universidade Cornell, de Nova Iorque.
Thomas Maack esclarece que, para ele, foi mais fácil refazer a vida, ao contrário dos operários do
Porto de Santos. "O fato de eu ter um diploma de médico, trabalhos de pesquisa publicados e mesmo condições financeiras de poder sair do país, foi
infinitamente mais fácil refazer a minha vida profissional do que para um operário do porto, preso pela ditadura e depois despedido do trabalho".
Em relação aos colegas brasileiros, ele diz que seu sucesso causou admiração e não inveja, uma vez
que, perseguido e preso, teve que fugir do Brasil, e acabou num país (Estados Unidos), onde existe unanimidade entre a categoria, de que é mais
fácil fazer uma vida profissional de médico-cientista nos Estados Unidos do que no Brasil, e isto não tem nada a ver com inveja", explica o
cientista, que conclui: "mas sim, com admiração pelo sucesso alcançado".
Supervisão da Marinha – O cientista médico diz que o navio era supervisionado pela Marinha,
e que nele havia cerca de 150 presos políticos, entre militares, jornalistas, estudantes e pessoas de várias áreas da sociedade, que deveriam ser
acompanhados por um médico da Marinha. "Quando eu atendia, vendo que os presos estavam debilitados, informava aos oficiais a urgência da
transferência para os hospitais e eles sempre acatavam, porque temiam que houvesse morte entre os prisioneiros, seguida de uma rebelião".
Ele informou ao DL se lembrar do estudante Tomoshi Sumida, conhecido personagem do navio,
relatado nos fatos contados pelos presos por sua bravura e pela tortura que sofria constantemente, sendo trancado na geladeira por muito tempo
durante as semanas. "Ele era um dos que estavam com a saúde bastante debilitada, pois constantemente era trancado nos chamados quarto quente e
quarto frio. Mandei recado de que deveria ser examinado por um médico, que no caso seria eu mesmo, pois, com certeza, daria um jeito de avaliá-lo
para diagnosticar que sua saúde não suportaria mais esse tipo de tratamento desumano. Só que ele era corajoso e resolveu mostrar aos militares que
as punições não o iriam derrubar. É claro que essa não era a melhor decisão, mas eu tive que respeitar".
Um outro personagem, em destaque nos relatos sobre o navio, foi Zeca da Marinha, mas Thomas Maack
não se lembra dele pelo nome ou apelido. Se lembra apenas que um dia foi procurado em sua cela por um soldado da Polícia Marítima e por um oficial
da Marinha, que informaram que tinham um prisioneiro com alto grau de agitação mental.
O oficial achava que o homem estava fingindo ser louco. O cientista o examinou e ficou convicto de
que nada havia de encenação no comportamento do preso. "Ele não falava. Tinha o olhar perdido, e, em sua agitação, andava de um lado para o outro.
Quando se cansava, ficava sentado com as mãos na cabeça. Depois desse período, foram buscá-lo e o encaminharam não sei para onde, pois não fui
informado".
|
"Quando eu atendia, vendo que os presos estavam debilitados, informava aos oficiais a
urgência da transferência para os hospitais e eles sempre acatavam, porque temiam que houvesse morte entre os prisioneiros seguida de uma
rebelião" |
|
Livro relata o drama da família de jornalista após prisão de seu pai
A jornalista e professora universitária Lídia Maria de Mello, autora do livro Raul Soares,
Um Navio Tatuado em Nós, onde conta o drama de sua família após a prisão do pai, Iradil Santos Mello, escreveu sobre o navio Raul Soares
para o Diário do Litoral, a pedido da Editoria Sindical, na edição de 24 de abril. Ela diz que "ainda hoje não se sabe quantos homens
estiveram presos no Raul Soares, de abril a outubro de 1964. Não existem listas oficiais. Se um dia elas foram elaboradas, jamais apareceram.
As informações que entraram para a história foram relatadas pelos próprios prisioneiros ou familiares".
As prisões eram revezadas. Alguns ficaram dias, outros, semanas. Houve quem permanecesse trancafiado por meses. Os
prisioneiros não eram somente da região. Havia gente de toda parte do País. Relatos confirmam essa informação.
"Meu pai, Iradil Santos Mello, foi um dos presos do Raul Soares. Era portuário e membro da diretoria do
Sindicato dos Operários Portuários. A primeira detenção ocorreu na cadeia do Dops e durou cerca de uma semana, a partir de 1º de abril de 1964. Em
18 de agosto, foi levado para o navio, porque se recusou a delatar um companheiro, Antoninho Rodrigues. Os inquisidores insistiam para que ele
confirmasse que Rodrigues era comunista. Já contei essa história em meu livro Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós, lançado em 1995, apesar
de escrito dez anos antes", menciona Lídia.
"Não foi apenas a meu pai que a prisão atingiu. Toda a família ficou emocionalmente aprisionada e ameaçada em sua
subsistência. Somente a coragem de minha mãe, Mercedes Gomes de Sá, nos livrou de passar maiores privações. Com 26 anos de idade e três filhas
pequenas, ela assumiu as responsabilidades da casa e nos protegeu".
Visita ao pai no navio – Ela diz que por mais que ainda hoje o capitão dos portos da época, Júlio de Sá
Bierrenbach, afirme que os presos que ficaram sob sua responsabilidade eram bem tratados, "posso garantir o contrário. Durante a visita, precisei ir
ao banheiro. A lembrança do que vi ainda me embrulha o estômago. Não havia água na descarga e nem sinal de que o vaso sanitário um dia fora branco.
O policial que nos escoltou (a mim e uma tia que me acompanhava) ficou envergonhado. Tentou minimizar a sujeira forrando o vaso com papel
higiênico".
Se comparada a atrocidades cometidas durante todos os 21 anos do regime militar, essa situação pode ser
considerada amena. Mas dor, humilhação e violações são coisas que não se medem. Também não há como dimensionar suas consequências. Quem sente é que
sabe.
"O capitão dos portos esforçava-se, e ainda se esforça aos 95 anos, para provar que os presos recebiam tratamento
de primeira. No entanto, notícias veiculadas nos jornais da época mostram, apesar da perceptível intenção de agradar ao regime, que os direitos
civis eram desrespeitados", escreveu a jornalista, que em 2003 conseguiu, por e-mail, uma entrevista com o médico Thomas Maack, resgatando
parte da história, da qual seu pai fez parte, sendo uma das vítimas da ditadura militar no Brasil.
Thomas Maack, cientista médico, reside em Nova Iorque
Foto: divulgação, publicada com a matéria
|