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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Raul Soares - DL
O navio-prisão (5-E)

Clique na imagem para voltar ao índice desta sérieUma das páginas negras da história santista

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Série de matérias publicadas no jornal santista Diário do Litoral, relembrando a história do navio-prisão e provocando para que o tema seja debatido na Comissão da Verdade instituída neste ano para a apuração dos fatos relativos ao regime militar implantado no Brasil a partir de 1964. Esta matéria foi publicada na edição de quinta-feira, 25 de outubro de 2012, página 7:

Imagem: reprodução da página com a matéria

NAVIO-PRISÃO: DEMOCRACIA À DERIVA
Ex-preso do Raul Soares desabafa: "fomos torturados só porque éramos sindicalistas"

Argeu Anacleto da Silva era, em 1964, sindicalista portuário, e diz ao DL, nessa segunda parte de sua entrevista, que não se arrepende de nada do que fez no passado, porque, como dirigente sindical, tudo o que fez foi lutar para levar mais pão à mesa dos companheiros do Porto de Santos. Ele é uma das poucas vozes que sobraram dos calabouços do navio-prisão

Repórter: Francisco Aloise

Argeu Anacleto da Silva, de 83 anos, não era filiado a nenhum partido político e nem simpatizante do movimento comunista que procurava se infiltrar no sindicalismo de Santos no início da década de 60. O que ele gostava de fazer era a legítima política sindical, que lutava por melhores salários e condições dignas de trabalho, aos seus companheiros, no Porto de Santos, maior terminal portuário da América Latina. Era doqueiro de corpo e alma. Mas foi preso, rotulado de comunista e, por fim, encarcerado no navio-prisão Raul Soares por 75 dias. Seu crime… ser sindicalista portuário.

Ele tinha 35 anos de idade quando, em 1964, foi preso pela ditadura militar, que aprisionou vários sindicalistas do Porto de Santos, os trancafiou no navio Raul Soares e fechou os sindicatos, decretando intervenção, principalmente nos sindicatos de portuários.

Argeu era diretor e conselheiro fiscal do Sindicato dos Operários Portuários de Santos e Região, e hoje é uma das poucas vozes que sobraram dos porões daquele navio-prisão, que serviu de presídio flutuante no Porto de Santos, entre 24 de abril e 23 de novembro de 1964.

Ao receber a reportagem do Diário do Litoral, ele foi logo dizendo que não se arrepende de nada do que fez no passado. "Eu só não aceitava as imposições do sistema. Aliás, não aceito ainda hoje. Por isso fiquei entre as dezenas de pessoas detidas por razões políticas, entre elas, muitos sindicalistas do Porto de Santos", menciona o ex-dirigente sindical.

Acrescenta que deixar o navio-presídio ancorado no Porto de Santos, próximo à Ilha Barnabé, em pleno local de trabalho dos doqueiros e estivadores, foi mais uma afronta aos trabalhadores do que à própria sociedade santista. "Era o local do nosso ganha-pão e que acabou sendo palco de torturas, dor, sofrimento e grande insegurança para todos nós e também para as nossas famílias".

Quando foi preso, dentro do seu sindicato, diz que não tinha nenhum compromisso com partidos políticos, mas sim com seu trabalho, sua família e seus companheiros do porto.

"Minha luta não foi individualista, como ocorre hoje com maior frequência, salvo algumas poucas e honrosas exceções. Lutava para levar mais pão à mesa dos meus companheiros, pois para isso fui eleito pela categoria, em eleições difíceis e bastante disputadas. E essa luta foi rotulada, por alguns empresários daquela época, como comunismo. Eles nos entregaram aos militares. E, por isso, pagamos caro, deixamos praticamente nossas vidas naquele navio maldito", contou Argeu.

Ele fica emocionado quando fala de sua prisão e ao relembrar as cenas de sofrimento presenciadas dentro do navio-prisão. "Os companheiros de Docas, quase todos já morreram, mas eu continuo aqui, como uma das poucas testemunhas daquele navio sombrio. Já disse, e volto a repetir, que falar sobre o cárcere é como mexer num ferimento cicatrizado, que ainda causa dor, pois essa dor está presa em minha alma. Só que, de vez em quando, é também bom relembrar o que passou, para que isso nunca mais ocorra e para que as novas gerações tenham conhecimento dessa história real, de tortura, dor e sofrimento, ocorrida dentro de um navio-prisão, que ficou ancorado no nosso Porto de Santos, local de nosso suor e trabalho honesto".

Ele menciona que, em 2008, recebeu do Governo Federal uma indenização por seu sofrimento, sua dor, e comparou essa indenização à ação de um morcego. "Sabe, moço, o morcego morde e sangra suas vítimas, mas depois vem abanar a sangria, tentar aliviar a dor. E esse abano veio em termo da indenização governamental".

 

"A Comissão da Verdade tem uma grande chance de investigar e apurar o que houve no interior do navio-prisão Raul Soares, pois nós, sindicalistas, fomos presos sem ter praticado nenhum crime"

 

Tortura – Argeu diz se lembrar muito bem de companheiros sendo torturados, ameaçados constantemente por metralhadoras apontadas para seus corpos, retirados de celas imundas e levados para o "terrível choque térmico". Eram colocados nas celas ao lado da caldeira do navio, onde o calor era insuportável, sem ventilação, e depois levados para a outra cela, próxima ao frigorífico, que era bastante gelada, e para completar, acabavam colocados em celas inundadas e cheias de dejetos dos próprios presos, ficando com água até o joelho".

"Como eu disse, não gosto de falar sobre isso, mas acho que, agora, é necessário, porque o Governo criou essa tal Comissão da Verdade, e espero que ele apure as torturas ocorridas no interior do navio-prisão Raul Soares".

Ele cita um exemplo de tortura, dor e sofrimento: "O maior castigo que vi, entretanto, foi o do estudante japonês Tomoshi Sumida. De corpo franzino, era constantemente torturado, sendo colocado dentro da geladeira, numa falta de humanidade e de Deus no coração de seus torturadores. Mas, ele resistiu e depois de algum tempo sumiu do interior da embarcação, ninguém soube para onde foi levado, quem sabe a Comissão da Verdade do Governo Federal possa descobrir qual foi seu paradeiro e seu destino".

Adoentado, por causa da comida intragável do navio-prisão, ele diz que foi socorrido pelo médico e também preso político, Thomas Maack.

 

"Pagamos caro, deixamos praticamente nossas vidas naquele navio maldito"

 

Só resta a verdade – Ele menciona: "O que ocorreu no navio-prisão Raul Soares deve ser apurado, não que isso vá resolver alguma coisa, mas, sim, para dar uma satisfação à sociedade santista, pois nós, os eteceteras (trabalhadores), fomos torturados por crime nenhum. E depois, tem uma grande verdade que diz que nada pode ser maior que a própria verdade".

Diz que gostaria de ver a verdade aparecer, emergir desse mar de injustiças. "A Comissão da Verdade tem uma grande chance de investigar e apurar o que houve no interior do navio-prisão Raul Soares, pois nós, sindicalistas, fomos presos sem ter praticado nenhum crime, sem termos sequer um processo aberto pela justiça. Mas, para a ditadura militar, só o fato de ser sindicalista portuário era o suficiente para sermos taxados de criminosos e comunistas. Essa é a verdade".

E conclui: "A presidenta Dilma sofreu torturas, lá atrás, no passado e, hoje, é a chefe da Nação, isso reflete outra verdade, a de que nunca se sabe aonde o destino vai te levar, e no caso da nossa presidenta, o destino a levou ao cargo máximo do Brasil, e com poder para apurar a verdade dos tempos sombrios deste País. E, um desses tempos, esteve ancorado aqui em nosso porto, local de nosso ganha-pão e chamava-se Raul Soares, o navio-prisão da repressão".

 

"O morcego morde e sangra suas vítimas mas, depois, vem abanar a sangria, tentar aliviar a dor. E esse abano veio em termo da indenização governamental"

 


Argeu Anacleto da Silva, sindicalista preso no navio Raul Soares

Foto: Matheus Tagé/DL, publicada com a matéria

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