[Introdução]
O navio presídio
"Todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir, uns em relação aos outros, com espírito de fraternidade.
"Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição.
"Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante". Da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O negro navio
E quando a noite pesada de
silêncio
Chegou torturando as
multidões aflitas,
O Torquemada indígena
reeditou a sina
Que afligiu a terra
ibérico-latina.
E a Inquisição renasceu em
nossa pátria,
Ferindo fundo, com ódio,
vingança e infâmia,
Como se este povo não fosse
só de irmãos,
Trabalhadores, poetas,
professores e cristãos.
E a opressão, o terror e a
torpe vilania,
Caíram ríspidos, massacrando
as gentes,
E o povo viu aflito,
transido de medo,
A tirania a violentar e
prender seus entes.
E da Guanabara loira,
radiosa e bela,
A opressão mandou o
carcomido barco,
Com o seu casco negro,
infecto, apodrecido,
para encarcerar pais,
irmãos, filhos e netos.
Oh! negro navio de triste
sina,
Antes te houvesse o mar
tragado,
Quando navegavas impávido e
imponente,
a te transformares no terror
de tua gente.
Orfeu Sales Santos.
Sou uma das milhares de vítimas da quartelada que desabou sobre o Brasil entre 31 de
março e 1º de abril.
O depoimento que ora torno público, escrito em papel de embrulho num cárcere imundo
de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos de alta periculosidade, é a explicação que dou aos
meus amigos que, sempre que cruzam comigo, querem saber os motivos dos IPMs aos quais respondo. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um
documento a retratar o Brasil numa época desgraçada.
Logo após haver sido posto em liberdade por força de habeas-corpus, concedido
pelo Superior Tribunal Militar, fui procurado pelo bispo de Santo André, dom Victor de Tarso Sanches Pupo, que, com lágrimas nos olhos e tristeza na
voz, me abraçou comovido:
"Não pergunto o motivo de sua prisão. Tenho certeza de que você não saberia
explicá-la. Eu também estive preso durante 53 dias sem que me dessem qualquer explicação. A única consideração que me dispensaram foi a de permitir
que armasse um altar no xadrez para rezar pedindo a Deus que velasse pelos destinos do Brasil. Fui acusado de ser amigo do povo, de aplaudir as
reformas de base tão necessárias para o progresso do país. E é a isso que chamam de revolução cristã..."
Revolução...
Muita gente acreditou nela quando os tanques vieram às ruas. Acreditou em dias
melhores, na necessidade de enfrentar os "comunistas" que queriam "mergulhar o Brasil num mar de sangue", na necessidade de encher os xadrezes para
salvar a família brasileira, na moralidade prometida, nos discursos e proclamações da entidade abstrata que denominou a si mesma de "Alto Comando
Revolucionário".
Nada restou das solenes promessas, feitas no calor da tomada do poder por um grupo
forte em armas, mas vazio de ideias.
As reformas anunciadas caíram no esquecimento, a soberania nacional foi gravemente
mutilada, o governo, dia a dia, se mostra mais rancoroso.
Foram abertas as comportas da remessa dos lucros, contra a qual todos os bons
brasileiros sempre se bateram. Comprou-se o "ferro velho" das concessionárias. Golpeou-se a Companhia Vale do Rio Doce, com a concessão de favores
inéditos e vergonhosos à Hanna. Sufoca-se a indústria nacional. Esmaga-se o povo pela carestia.
Revolução...
Prendem, perseguem, seviciam, em nome da democracia, com o sacrossanto objetivo de
agradar às "mães de família" que fizeram a marcha com "Deus pela Liberdade"...
A nova geração de políticos e líderes brasileiros foi expulsa da vida pública, está
na cadeia ou no exílio. A cada momento, a ditadura militar se torna mais evidente. O movimento armado parece ter sido feito contra a cultura, contra
médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, sacerdotes e estudantes, que continuam enclausurados, em cubículos infectos, manchados de sangue. Nada
de especial, como a Lei determina, para presos políticos.
Em um nunca mais acabar, os jornais continuam publicando listas de presos, de
perseguidos, de novos exilados. É a prepotência, a distorção jurídica com que se pretende justificar as ameaças, as cassações e mandatos, as
violações de lares, o desrespeito à dignidade humana.
E chamam a tudo isso de revolução...
***
Apregoaram que o movimento armado foi feito
contra os comunistas e os corruptos. Prometeram, mesmo, uma exposição nacional do material subversivo e do armamento apreendido em poder de
trabalhadores. Exposição que jamais se realizou e jamais se realizará, por não terem conseguido reunir material suficiente para impressionar até
mesmo os de melhor boa fé.
Armamento algum foi encontrado nas sedes dos sindicatos. Vencida a quartelada, alguns
governadores estarreceram a nação ao confessar, publicamente, que eles é que haviam formado "caixinhas", para arrecadar fundos entre industriais,
açambarcadores de gêneros e elementos das chamadas classes produtoras, destinados à aquisição de armas para enfrentar o governo legalmente
constituído, que cuidava das reformas de base do país, contrariando, frontalmente, interesses de grandes grupos nacionais e estrangeiros.
Falaram que a revolução foi feita contra os corruptos. Como acreditar em tamanha
balela de 1º de abril, se o político-símbolo da corrupção nacional figura como um dos líderes do movimento armado?
Corrupção...
Qual a providência adotada contra os 116 deputados eleitos pelo IPES e IBAD, órgãos
criados para solapar as instituições nacionais? O escândalo ficou sobejamente comprovado nos últimos dias do governo deposto. Nada, no entanto, se
fez contra os impatrióticos parlamentares.
Corrupção...
Qual maior corrupção do que essa, a grande corrupção política do Brasil?
A "revolução" não provou nenhum grande escândalo do governo deposto. Apenas alguns
casos de venda de prestígio, bandalheiras comuns em todos os governos e que estão existindo, também, nesse do honrado marechal Humberto Castelo
Branco.
As agremiações partidárias, covardemente, silenciaram ante o tacão militar.
Todas as correntes políticas, de uma forma ou de outra, participaram do governo do
sr. João Goulart. Mas como governar, como cuidar dos interesses nacionais, do bem-estar social, se muitos
homens públicos, como confessa o próprio sr. Adhemar de Barros, vinham conspirando, de há muito, contra o regime?
Revolução...
Milhares de brasileiros continuam nas prisões políticas, sofrendo toda sorte de
coação física e moral, sem julgamento, ou caçados como feras, acuados em seus lares. Mães, esposas e filhos de prisioneiros choram, aterrorizados,
sem entender o que ocorre no Brasil.
Engolfado na onda de violências, o povo reza e pede aos céus para que os militares,
que tomaram o país de assalto e que, temporariamente, se encontram no poder, voltem para os quartéis, deixando aos civis a administração pública. |