Os quepes militares sobre a mesa do salão nobre da Prefeitura de Santos falam de um período em que
os santistas foram tratados como cidadãos de segunda classe, exilados em seu próprio país. É o registro também do início de um longo caminho de
volta. A foto é de Rafael Dias Herrera, no dia 15 de julho de 1964, durante a posse do interventor militar da cidade
Foto publicada com o texto
Histórias dos porões, das lutas e marcas de uma longa
resistência
Santos foi um dos centros nervosos do golpe de 64, alvo estratégico das ações militares. Pagou
um alto preço pelo brilho e ousadia que a caracterizaram no início dos anos 60
Bastou a tradição oposicionista, que dava brilho próprio à vida cultural e política da cidade, para
que Santos fosse considerada um risco potencial à nova ordem instalada em 1964. A mera lembrança das multidões de
manifestantes nas ruas, do nível de organização alcançado na década anterior, provocava arrepios nos novos ocupantes de Brasília.
Como de costume, em golpes militares não importa quantos equívocos sejam cometidos: desde que partam
dos próprios usurpadores do poder, transformam-se em fatos consumados, leis, regulamentações. Assim, Santos passou a ser o "domínio dos comunistas",
onde sindicalistas armazenavam fuzis e metralhadoras em suas organizações, preparando a revolução socialista. Transformou-se na "Cidade Vermelha",
na "República Sindicalista".
Enfim, a cidade submete-se a uma série de equívocos provenientes dos articuladores do golpe: havia
comunistas, óbvio, mas o fato é que eles nunca predominaram como insistiam os militares; quanto às armas, nenhuma sede sindical escondia um revólver
sequer.
"Santos foi onde a revolução correu maior perigo, maior risco. A cidade era como
um ponto de partida, a própria origem da revolução. Porque o esquerdismo adquiriu uma força potencial que não existia no Brasil inteiro. Durante um
ano não houve um dia em que não tinha uma greve. A Câmara de Santos era dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas,
toda a potencialidade política de Santos estava nas mãos do que eu costumo chamar de peleguismo sindical comunista. Essa força vinha do
sindicalismo. Aqui tinha um tal de Fórum Sindical de Debates, que era uma espécie de soviete, que para mim foi o primeiro soviete que tentaram
implantar no Brasil, para a revolução socialista. Eles paravam Santos quando queriam".
O depoimento concedido no início de 88 pelo deputado estadual Antônio Erasmo Dias, para o livro
Sombras Sobre Santos, é exemplo típico do estigma que recaía sobre a cidade na época. Erasmo Dias, em 1964, era major do Exército na Baixada
Santista e um dos líderes do golpe militar na região.
Este e tantos outros equívocos justificaram a cassação de políticos, a prisão em massa, a violação dos
direitos. Com o espectro do avermelhado comuna marcharam os golpistas, armando o cerco antes mesmo do derradeiro dia. O prefeito
José Gomes, um conservador com rara habilidade de equilibrista, acabou cassado logo nos primeiros dias e o Poder
Executivo da cidade entregue a um certo capitão da reserva chamado Fernando Hortala Ridel. Junto com o prefeito, foi-se
também João Inácio de Souza, o presidente da Câmara Municipal. E como o Judiciário não contava, estavam os militares no
controle total das instituições da cidade.
O passo seguinte foi o desmonte das organizações populares. Sindicatos e as mais diferentes entidades
foram invadidos com botinadas nas portas, armas engatilhadas, verdadeiro vexame e delírio que chegou ao ponto de reter o navio soviético Ljubotin
no porto e apreender perigosos livros e discos subversivos de autores tão suspeitos quanto Dostoievski ou Tchaikowsky. Nem a diplomacia nem o
ridículo contavam para os golpistas.
Na manhã de 24 de abril de 1964, um navio chegou a Santos. Era uma velha embarcação construída na
Alemanha, em 1900, que havia sido adquirida pelo Lloyd Brasileiro em 1925. Serviu para transporte de
passageiros e cargas e foi usado pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) na II Guerra Mundial. Teve de ser rebocado até
Santos, vindo do cais do Mocanguê, no Rio de Janeiro.
Mas o velho Raul Soares não fora lançado em águas santistas para expor
um passado de glórias. Cumpriria aqui sua última e certamente mais humilhante missão: servir de presídio para todos aqueles que se opusessem ao
golpe então em marcha. Fora trazido a pedido do capitão dos portos, Júlio de Sá Bierrenbach.
"É claro que o Raul Soares não foi trazido para cá por necessidade de
mais prisões. O motivo era psicológico, é evidente", admitia ironicamente o deputado Erasmo Dias, em seu depoimento para o Sombras Sobre
Santos.
Na prática da psicologia militar golpista, seguiriam-se prisões e maus-tratos, centenas de pessoas
foram encarceradas no navio-presídio.
Exibindo pesado armamento, soldados criavam um ambiente de constrangimento, violência e humilhação.
Diziam que o Raul Soares seria levado por um rebocador até alto-mar e lá deixado; nenhum preso voltaria. Prisioneiros mais rebeldes
eram colocados em celas ao lado da caldeira do navio e depois levados para outra, junto ao frigorífico. Outros eram libertados, levados à frente da
Imprensa e, logo depois, tinham sua prisão decretada novamente. Às vezes, eram levados ao convés, com as mãos para trás, cercados por soldados de
metralhadoras em punho, apontadas para sua direção; aí, vinha um helicóptero da Base Aérea e ficava sobrevoando o local.
Não era o bastante. A tortura física, travestida por técnicas psicológicas, ia mais fundo. Havia uma
cela em que os presos ficavam com água gelada à altura do joelho e, outra, para os mais resistentes, onde homens dividiam espaço com as fezes dos
ocupantes do navio. Não demoraram a perceber que o bom humor santista tem uma resistência inexplicável: essas celas foram rapidamente batizadas com
os nomes das casas noturnas da famosa boca que já não existe mais; havia o El Moroco, o Night and Day,
o Casablanca...
A cidade não demorou muito para perceber a espécie de monstro que estava solto nas ruas e mesmo o
apoio inicial da classe média e da Igreja começou a falecer por inanição em bem pouco tempo. A eleição de 65 foi uma farsa tão precária que mal se
agüentou de pé para dar posse a um constrangido Sílvio Fernandes Lopes.
Apenas três anos depois, em 68, com os estudantes nas ruas gritando "abaixo a ditadura", Santos estava
de volta, elegendo um prefeito da oposição e ainda por cima negro: Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho.
Aquilo foi demais para os golpistas e os eternos donos de Santos que, a partir de 13 de dezembro
daquele ano, dispunham do Ato Institucional nº 5 para legalizar o ilegal. Tarquínio foi cassado quinze dias antes de tomar posse, em 13 de março de
1969; seu vice, Oswaldo Justo, renunciou em protesto. Outros 95 políticos foram afastados da vida pública sem qualquer
explicação. Entre eles estão os deputados santistas Mário Covas, Gastone Righi e Rubens Paiva - a este último um trágico destino estaria reservado
na loucura estabelecida nos anos seguintes, morto sob tortura na prisão em 1971.
E vem mais uma intervenção militar, a do general Clóvis Bandeira Brasil.
Ele assumiu a Prefeitura no dia 28 de abril e no dia 8 de maio presta seu primeiro serviço à cidade, convencendo o general
Costa e Silva a decretar o recesso da Câmara Municipal. Mas os planos eram ainda mais rudes e, no dia 12 de
setembro daquele ano de má memória, Santos é transformada, por decreto, em uma "área de interesse da segurança nacional".
Na prática, isso significava que os santistas que, como os demais brasileiros já não podiam eleger seu
presidente nem seu governador, ficavam também sem votar em seu prefeito. Com o Legislativo fechado, estava completa a vingança dos golpistas contra
a cidade rebelde: transformaram cada habitante de Santos num cidadão de segunda classe, com direitos políticos suspensos.
Ou pretenderam isso, sem conseguir, seria melhor dizer. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que raras
vezes uma cidade foi tão enfática em defesa de seus direitos, literalmente "enchendo o saco do poder" - desde as ações formais, através do
Legislativo reaberto em 8 de julho de 1970, até a politização dos estádios de futebol, com faixas em meio à torcida do Santos, que obrigava a Rede
Globo a peripécias para escondê-las durante as transmissões das finais do Campeonato Brasileiro de 1983.
Foi um longo caminho de volta, sob a tutela de um general-interventor e três prefeitos nomeados pela
ditadura. A luz no fim do túnel havia aparecido um ano antes, em 1982, em uma destas ironias do destino, que nos lega uma tragédia que dará mais
forças ao movimento pela autonomia.
Na madrugada de 10 de novembro, morre Esmeraldo Tarquínio, vítima de um aneurisma cerebral que o havia
deixado por 20 dias num leito de hospital. Último prefeito eleito pelos santistas, cassado pelos militares, Tarquínio simbolizava todas as
injustiças cometidas contra a cidade e a cidadania.
Outro fato também contribuiria para acirrar os ânimos contra a tutela do governo federal. Em 15 de
novembro, cinco dias após a morte de Tarquínio, os brasileiros puderam votar para escolher o governador dos estados. A oposição elege dez
representantes, entre eles está Franco Montoro (então no PMDB), para governar São Paulo, em substituição a Paulo Salim Maluf, que fora nomeado pelos
militares.
Montoro ficava com a responsabilidade de nomear o novo prefeito, até que Santos alcançasse sua
autonomia. Mas os golpistas, vendo a chance de mobilização da oposição, baixam um decreto estabelecendo que as exonerações de prefeitos nomeados
teriam que ser aprovadas pelo presidente da República.
Em 2 de agosto de 1983, o decreto nº 2.050 estabelecia que Santos deixaria de ser área de segurança
nacional com a posse do prefeito e vice-prefeito eleitos pela população. Restava marcar o dia da eleição.
Depois de um adiamento, os santistas foram às urnas, finalmente, no dia 3 de junho de 1984, e
elegeram, teimosamente, a retomada do que fora interrompido à força. Na falta de Tarquínio, vence a eleição seu antigo vice, Oswaldo Justo; e para o
lugar de vice, o filho de Tarquínio, Esmeraldo Neto. Eis o velho espírito da cidade de volta, historicamente, um tapa no rosto do golpistas de todos
os tempos.
No dia 9 de julho, esta data repleta de significados, os dois tomaram posse. E, conforme o decreto,
com a posse a cidade teria formalmente restituída sua autonomia política. Voltávamos a ser cidadãos e Santos deixava de ser uma "área de segurança
nacional" para tornar a ser o porto seguro do Atlântico que sempre foi. |