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Seriedade à toda prova
Depois de tanto tempo no Brasil, eles deixam de lado uma das principais marcas deste povo
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Já no decurso desta entrevista, o alemão Wolfgang Aurbach, de
80 anos, confessa: "Deu duas horas, olhei no relógio e pensei: quando eles vão chegar?". Ele se referia à reportagem de A Tribuna. Mas como
tocamos a campainha às 14h05 - o encontro estava marcado para as 14 horas - foi obrigado a reconhecer: "Chegaram com um atraso perfeitamente
tolerável".
A cena é o extrato irretocável de uma característica marcante do jeito de ser alemão: o senso de
ordem. Lá, é impensável chegar atrasado a um compromisso. Mas, e se fura o pneu do carro, por exemplo? "Isso não acontece na Alemanha", sorri. Por
essas e outras, Wolfgang e a mulher, Charlotte Aurbach, de 72 anos, até já tentaram, mas não conseguiram se adaptar de novo na Alemanha. Há 60 anos
no Brasil, o choque de culturas para Wolfgang, começou no deck (N. E.: convés)
do navio que o trouxe. "Quando se vem de um país como o nosso e se vê o navio entrando na Baía de Guanabara, com o sol nascendo, é um impacto
glorioso. Até hoje".
Do Rio de Janeiro, foram para São Paulo. E, há 12 anos, estão entre os cerca de 100 alemães
radicados em Santos segundo estimativa do consulado. Wolfgang deixou a sua Vestfália natal - região
histórica, em que uma das partes compõe uma das 16 províncias administrativas alemãs - para "ver o mundo", como diz. "Durante a guerra, era uma
propaganda maciça do regime (nazista). Depois, era uma propaganda maciça em sentido contrário. Eu queria conhecer como as coisas eram de verdade".
O Brasil lhes surgiu como uma revelação: o espaço geográfico, e dimensões continentais, ampliava o
espaço imaginário, psicológico. Assim, a experiência brasileira se traduziu para os dois em uma aventura de libertação, dos costumes, dos rigores,
das convenções. Entre esses rigores e convenções, o abraço se interpôs. Na Alemanha, segundo Charlotte, não é costume as pessoas se abraçarem - ou
ao menos não tanto quanto os brasileiros o fazem.
Assim como o cuidar. Os alemães são mais independentes em relação à família e amigos. "Quando meu
pai faleceu, chamei minha mãe para vir morar aqui. Ela não falava português. Mas os vizinhos, todos brasileiros, a trataram com uma cordialidade, um
calor humano impressionante", diz ele. Sim, os alemães são mais reservados. A isso, Wolfgang atribui uma longa história de guerras e conflitos, em
que a luta pela sobrevivência teria marcado esse traço, na alma alemã.
Sinal de que um homem é homem - As diferenças nos jeitos de ser alemão e brasileiro,
Charlotte define com maestria, ao comparar as bandeiras dos países. "A brasileira se abre aos quatro cantos e tem um globo no meio. Na alemã, há o
preto esmagando as duas cores vivas (o vermelho e o amarelo)".
Apesar de tudo isso e de tanto tempo, o casal não se sente mais brasileiro - ou menos alemão. Às
marcas da infância, que, como diz Charlotte, não se apagam jamais, juntam-se outras. É a memória de Wolfgang, lembrando-o do dia em que seu pai
ensinou-lhe a importância da cerveja na cultura alemã - são cerca de 1.350 cervejarias no país. Wolfgang tinha 12 anos e o pai lhe mostrou como
esvaziar uma caneca, sem tirá-la da boca. "Hoje é crime. Na época, era sinal de que um homem era um homem".
Por outro lado, há o dia em que Charlotte foi à feira pela primeira vez, em São Paulo. Uma
novidade colorida para um alemão que, de frutas, só conhecia maçãs, peras e bananas - estas, bem caras em seu país. Sem falar português, extasiada,
apontava as mangas os figos, os mamões. Na cozinha, uma mescla de lá e de cá. Comem arroz, feijão, muita verdura. Mas substituem o típico hering
(arenque. Isso mesmo, a marca de roupa, com dois peixinhos, são dois arenques...) pela pescada ou sardinha, na hora de preparar o peixe marinado.
"Fica um vazio. Não consigo me identificar com o Brasil, embora não me perceba mais alemão. Me
questiono: o que eu sou? Não encontro resposta", diz Wolfgang.
Charlotte e Wolfgang estão há 60 anos no Brasil e encaram a experiência como uma aventura de
liberação dos costumes, rigores e convenções dos alemães
Foto: Claudio Vitor Vaz, publicada com a matéria
"Não perdoamos os judeus pelo Holocausto" - Um dos episódios mais marcantes do século 20
teve a Alemanha no cerne: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). "Os alemães, por muitas gerações, serão vistos com desconfiança por causa disso. Se
é justificado ou não, é outra coisa", comenta Wolfgang, pai de quatro filhos com Charlotte.
Entre os próprios alemães, o assunto ainda é tabu. Há negação, culpa, vergonha e raiva. "Como um
povo culto e inteligente caiu nessa do Adolf (Hitler)?", pergunta-se o cônsul alemão em Santos, Michael Harald Rousseau.
Segundo ele, as duas primeiras gerações sofreram ao ponto de muitos procurarem traços de sangue
judeu na família, só para se sentirem menos culpados. "Os alemães não perdoam os judeus pelo Holocausto". A frase às avessas reflete a ânsia de
esquecer, que o incômodo alimenta.
A guerra colocou um oceano entre Michael, nascido em 1943 no seio de uma família franco-germânica,
e sua mãe. Depois da separação dos pais, a mãe, com ascendência judaica, imigrou. Quase três décadas se passaram, Michael vasculhou os consulados
alemães do mundo todo à sua procura. Encontrou-a no Rio de Janeiro, em 1979. Mas só veio para ficar em 1984, participando da Missão dos Marinheiros,
de origem luterana, em Santos. Casou e teve dois filhos. Tem saudade do que o Brasil não lhe pode dar: as estações do ano, bem marcadas. As cores do
outono e, após o derreter do gelo, o renascimento da primavera, no abrir-se da terra.
Mas também sente falta de coisas mais prosaicas, consistentes. Como as miríades de tipos de
salsicha, típicas na sua pátria. Há a Frankfurter, salsicha frita. Também a Blutwurst, com sangue misturado à carne de porco. Embora
seja o fast food local, esqueça o cachorro-quente: vendida em quiosques nas ruas, é tradicionalmente servida em pratos de papel ou de
plástico, com um sachê de mostarda e um pãozinho geralmente menor do que a própria salsicha.
Apesar de tudo isso, de se reconhecer sistemático e confessar o gosto por uma ordem que o Brasil
não lhe oferece, Michel jamais pensou em voltar para a Alemanha. "Costumamos dizer, 'o trem já se foi....'". E deixou-o na estação, acostumado ao
arroz, feijão e bife de seu dia-a-dia já tipicamente brasileiro. Que inclui uma acolhida que um estrangeiro não teria da mesma forma em seu país,
reconhece. "Lá, você não é tão bem-vindo como aqui. O coração aberto do brasileiro não existe em outro lugar".
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"Lá, você não é tão bem-vindo como aqui. O coração aberto do brasileiro não existe em
outro lugar" |
Michael Harald Rousseau, cônsul alemão em Santos |
Michael Harald Rousseau, cônsul alemão em Santos
Foto: Claudio Vitor Vaz, publicada com a matéria
O caso do Windhuk - Em meio a um cruzeiro pelo continente africano, em 1939, navio
foi surpreendido pelo estouro da Segunda Guerra. Depois de receber ordem para voltar à Alemanha, um suposto erro na rota e a escassez de combustível
acabaram trazendo o Windhuk ("Canto do Vento") ao Porto de Santos. Muitos dos 244 tripulantes acabaram se estabelecendo aqui.
O Heinz é do Windhuk - Como toda lenda tem o seu fundo de verdade, na do Windhuk
e o surgimento de restaurantes alemães em Santos, a verdade da lenda é o Bar Heinz. Ele foi o único
genuinamente fundado por um ex-tripulante do navio, Karl Heinz, que era garçom na embarcação. Isso foi em 1950. Hoje, a atual proprietária, nora de
Karl e também filha de alemão, Darci Merck, segue o legado de servir pratos típicos da cozinha alemã, essencialmente à base de batata, repolho e
carne de porco.
Foto publicada com a matéria
Floresta Negra - Quem pensa que é apenas nome de bolo, está enganado. Com seus
200 quilômetros de extensão, 60 de largura e mais de 23 mil quilômetros de trilhas mapeadas, é a maior, das centenas de florestas alemãs, todas
projetadas por engenheiros florestais há mais de um século. Fica no Sul da Alemanha e é o lar dos
relógios-cuco e da aguardente de cereja.
A grande variedade de florestas e sua integração ao cotidiano das pessoas em outros
séculos marcou a cultura alemã. Assim, não é por acaso que a maioria das sagas, lendas ou narrativas do imaginário germânico, recolhidas da tradição
oral e organizadas pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, no século 19, tenham uma floresta em papel preponderante. É o caso das histórias de João e
Maria, Branca de Neve, O Flautista de Hamelin e Chapeuzinho Vermelho. Outras histórias mundialmente famosas dos Irmãos
Grimm são Cinderela, Rapunzel, o Príncipe Sapo e a Bela Adormecida.
Antiga relação - A primeira grande onda imigratória alemã ao Brasil deu-se em
1824, a partir do estímulo do então imperador d. Pedro II. Atualmente, estima-se que cinco milhões de pessoas tenham pelo menos um antepassado
alemão.
Multinacional às avessas - Em Santos, essa presença foi muito forte até a
2ª Guerra. Os alemães se embrenharam pelo ramo cafeeiro, de navegação e de exportação, com grande sucesso. Fundaram várias
firmas nesses segmentos.
Um exemplo marcante é a da Theodor Wille & Cia., iniciada
aqui em 1844, que teria exportado a primeira saca de café da então província de São Paulo para a Europa. Três anos depois,
ele voltou para Hamburgo, na Alemanha, sua terra natal, e continuou a saga da firma, que se estende até hoje por lá, com o nome de Theodor Wille
Intertrade (TWI), mas em um ramo ligeiramente diferente: a logística de suprimentos.
A presença alemã em Santos incluiu a fundação da Igreja
Luterana, em 1906. Durante a guerra, os alemães foram proibidos de permanecer no Litoral, então área de segurança.
Muitos jamais retornaram. Propriedades foram confiscadas, como a sede do Clube Germânico, onde hoje é o quartel do 2º Batalhão de Infantaria Leve
(2º BIL), em São Vicente.
Bundesrepublik Deutschland
República Federal da Alemanha
Capital - Berlim
Língua - Alemã
PIB - US$ 3,6 trilhões (2011)
Renda per Capita - US$ 44.555,00
IDH - 0,905 (2011, muito elevado)
Datas nacionais - das 12 datas comemorativas nacionais, 10 têm cunho religioso. 3 de outubro, Dia da
Unificação, é uma das duas exceções - a outra é o Dia dos Pais. A data se refere à unificação dos estados germânicos em apenas um. O processo se
deu durante boa parte do século 19. Foi concluído em 1871 e liderado pelo então primeiro-ministro prussiano, Otto von Bismarck.
A colônia - cerca de 100 indivíduos em Santos, segundo estimativa do Consulado Honorário. De Ilhabela a
Cananéia, a jurisdição do consulado, estima-se em cerca de 1.000 pessoas a comunidade alemã. Até a 2ª Guerra, apenas em Santos, havia cerca de
três mil alemães. Com o conflito, eles foram desapropriados e proibidos de permanecer antes de 50 quilômetros da faixa costeira do País. Com
isso, a maioria se mudou para o interior de São Paulo e jamais retornou.
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