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Dançando conforme a música
Carne, mate, vinho, amizade: são notas de uma canção chamada hospitalidade, trazida ao
Brasil pelos hermanos
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Seja em Buenos Aires ou Santos, uma casa argentina "é simples,
hospitaleira e sempre terá carne, mate, vinho e amizade". Quem atesta é o presidente do Club Argentino de São Paulo, o engenheiro Luis Paz. Na maior
parte de seus 35 anos no Brasil, viveu em São Paulo. Só recentemente, veio engrossar o contingente de argentinos em Santos - não há estimativas,
segundo o consulado. Paz dá a entender que vem gostando do que vê, ouve e sente na Cidade. "Estou descobrindo Santos. Desço do apartamento e
converso com todas as pessoas. (Vou ao) cinema, restaurantes e a essa caminhada na orla, que se converte viciante (em vício)", escreve por e-mail.
Natural de Concepción del Uruguay, com 75 mil habitantes, na província de
Entre Ríos, Paz teve de moldar alguns hábitos natais ao compasso do tempo brasileiro. O mais eloquente
deles talvez diga respeito ao horário do jantar - a mais importante refeição na Argentina. Lá, nunca sai antes das 21 ou 22 horas. Aqui, Paz come
"com as galinhas, ao pôr do Sol". O novo hábito criou uma situação engraçada: quando em visita a Buenos Aires, "resultam eternas as horas de espera
para jantar com os amigos".
Porém, o que recheia hoje seu prato brasileiro diário é idêntico ao que vai no de qualquer
argentino. Se no inverno, bem mais rigoroso lá, preza-se uma sopa de entrada. Uma das mais tradicionais é a de alho, que leva também pimentão e
presunto espanhol. À carne de boi, de todos os jeitos e formas - grelhada, à milanesa e cozida -, juntam-se as batatas, em purê, assadas ou fritas.
"Minhas noras brasileiras perguntavam como podíamos viver sem arroz e feijão. Agora sabem e
gostam". Por falar em arroz, o equivalente na mesa argentina seria o pão - não pode faltar. "Irrita-nos o restaurante brasileiro que não põe o pão
na mesa", dispara. E o vinho, presença marcante na dieta hermana, é servido com soda - água mineral com gás.
Melancolia em forma de arte - Se todo latino é passional, os argentinos são o "passional
triste" - em contraposição aos brasileiros, o "passional alegre". Essa melancolia, pelas vias tortas da introspecção, desemboca em um "profundo
nacionalismo". Em última instância, o argentino seria "culto, mas com pouco espírito prático".
Esse caldo de tristezas é destilado em planos, bandoneões, violinos e acordeões. O resultado são
as melodias e passos do tango, a melancolia em forma de arte - e a própria expressão da alma argentina. "Existe um dizer, depois de brigar com uma
mulher, basta uma garrafa de vinho para escrever um tango", brinca Paz. "São poucos os tangos ou outras músicas populares argentinas que sejam
alegres. É o nosso fado", comenta.
Já o seu fado (destino) pessoal está vinculado à ditadura militar argentina (1976-1983),
considerada a mais sanguinária do continente. Paz imigrou por causa do regime, nos anos 70. Como ele, à época, milhares de seus conterrâneos
trilharam o mesmo caminho, para escapar de uma ditadura que vitimou 30 mil pessoas, nos cálculos de organismos internacionais de defesa dos direitos
humanos. "A Argentina mira muito o passado. Embora um dos mais importantes de seus escritores (Jorge Luis Borges) fale que o mais imutável da vida é
o que já passou", afirma.
Fernando e a imagem de um casal em plena lide do tango em uma caliente noite portenha. Ao
fundo, o Puerto Madero, um dos bairros mais nobres de Buenos Aires, às margens do Rio da Prata
Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria
Carne é cultura - Para um argentino, exaltar supostas qualidades do filé mignon é quase
como cometer uma heresia. "Não tem sabor", crava Fernando Luis Moscovich. O que dá gosto à carne, segundo ele, é a gordura. Assim, o suprassumo do
paladar, por sua grossa capa de gordura, estaria no contrafilé, conhecido entre os hermanos como bife de chorizo. Essa expertise
Fernando vem servindo de mesa em mesa há oito anos, quando abriu as portas do restaurante Puerto de Palos, em Santos. Ele, um verdadeiro portenho -
oriundo de Buenos Aires -, embora formado em Educação Física, poderia discorrer sobre os tipos e sabores da carne por horas.
"O argentino nasceu fazendo churrasco. Se você me der os ingredientes para uma feijoada, eu faço,
mas não será como a do brasileiro: é uma questão de jeito". Essa "questão de jeito" é justamente o que estabelece uma relação que ultrapassa o mero
hábito gastronômico: para os argentinos, carne é cultura.
As reses foram sendo introduzidas por exploradores espanhóis nos pampas desde o século 16. Muitas
delas se desgarraram e cresceram selvagens. No século 18, a manada nos pampas era estimada em 48 milhões de cabeças. Mas os primeiros bovinos de
raça só foram introduzidos na segunda metade do século 19. Sob séculos de História, inaugurou-se um novo patamar à carne argentina.
Maradona ou Pelé? - A imensidão das metrópoles parece abarcar o mundo inteiro. Assim como
São Paulo pouco descreve o Brasil, Buenos Aires se distancia da Argentina. Deixando ambas de lado, e considerando as influências e o modo de vida, a
"cara" Argentina seria europeia, enquanto a brasileira, norte-americana, segundo analisa Luis Paz.
Mas essa diferença estrutural não é suficiente para explicar a celeuma por trás da pergunta:
Maradona é melhor do que Pelé? Os dois lados sabem melhor do que o outro a resposta. No fundo, essa dúvida transpõe os estádios e abarca os 26
estados brasileiros mais o Distrito Federal e as 23 províncias argentinas: seria o símbolo de uma rivalidade entre as duas nações.
"A mídia é que cria isso, para vender jornal", argumenta Fernando. "É como Corinthians e
Palmeiras, um não vive sem o outro", arremata esse torcedor do River Plate lá e do Santos, aqui.
Luis Paz dirime qualquer espécie de rivalidade - dentro ou fora de campo. Para ele, Maradona e
Pelé foram brilhantes, em distintas épocas. E evoca as palavras da juíza que lhe concedeu a nacionalidade brasileira, ao expressar a pequenez de
qualquer rivalidade. "Ela disse: 'Vocês são mais brasileiros do que a gente, pois em plena consciência decidiram sê-lo'". E prossegue, sem esquecer
o quê de paixão e melancolia, tão argentinos. "É nosso País do coração (o Brasil). Com momentos em que não somos nem daqui, nem de lá. Justo para um
tango..."
Foto: Shutterstock, publicada com a matéria
Tango - O tango surgiu como a música e a dança dos bordéis nas duas margens do Rio da Prata
- Montevidéu, capital do Uruguai, e Buenos Aires - no século 19. Os bordéis, por sua vez, surgiram do afluxo de europeus jovens que desembarcavam
sozinhos para tentar a sorte na América do Sul.
O novo ritmo foi surgindo de uma mistura de estilos e canções italianos, polacos, franceses,
espanhóis. Por ser uma dança extremamente sensual, durante muito tempo ficou restrita a esse ambiente. Na contramão, quando esses imigrantes
voltavam para a Europa, levavam o tango na bagagem.
Em Paris, o sucesso começou a partir dos anos 20. Assim, na Argentina, o ritmo foi deixando a
clandestinidade dos bordéis e ganhando toda a sociedade. A popularização definitiva veio com Carlos Gardel, que participou de filmes em Hollywood.
O boi - A carne argentina, segundo Fernando Luiz Moscovich, vem de raças bovinas como o
Aberdeen-Angus Shortom, em que a gordura é interna. No Brasil, predomina a raça Nelore, cuja gordura se concentra em cima, no lombo. E como gosto é
gordura, essa diferença faz diferença no sabor.
Os pampas argentinos, em que são criadas as reses, por serem planos contribuem para a maciez da
carne - no Brasil, em muitas regiões, o gado é criado em áreas com elevações; para se movimentar pelo pasto, o boi faz um verdadeiro exercício de
musculação, o que torna a carne mais dura.
Fora isso, não existe um corte, nem tempero específicos: apenas sal. À carne em si credita-se todo
o sabor.
Imigração favorável - Um acordo selado em 2002 entre Brasil e Argentina, que começou a
vigorar em 2006, facilita a obtenção de visto de residência para imigrantes desses países. E o movimento já vem fazendo efeito, na via de lá para
cá. Em 2009, segundo dados do Ministério da Justiça, os argentinos no País somavam 39.232. Em 2011, eles já eram 44.875 e, até abril deste ano,
66.237.
A explicação para esse salto vertiginoso, segundo análise do diretor do Club Argentino de São
Paulo, Luis Paz, está no mau momento econômico vivido pelo país vizinho, com uma inflação anual beirando os 30%. "Tem muita gente qualificada,
técnicos que não encontram oportunidades na Argentina e migram para o Brasil", diz.
Empanadas - É uma espécie de pastel que pode ser assado ou frito, muito comum na Argentina.
A palavra empanada deriva de pan - pão - e a origem do alimento está na Espanha medieval. O recheio mais tradicional é o de carne, porém cada
região argentina tem uma forma de preparar e um recheio típicos.
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"Sou cidadão do planeta, pois todos somos descendentes de imigrantes. Como dizemos lá (na
Argentina), nos descemos dos barcos" |
Miguel Ángel Rivas, 55 anos, argentino, gerente do restaurante Parrilla San Pablo |
Miguel Ángel Rivas
Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria
República
Argentina
Capital - Buenos Aires
População - 40.117.096 (2010)
PIB - US$ 435,2 bilhões (2011)
Renda per Capita - US$ 17.376
IDH - 0,797 (muito alto)
Datas nacionais - 25 de maio (aniversário da revolução - 1810) e 9 de julho
(independência proclamada - 1816)
A colônia - cerca de 30 mil argentinos no Estado, estima o Consulado Geral em São
Paulo. Não há estimativas para a região |
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