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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Os navios dos cozinheiros

No auge da Segunda Guerra Mundial, um navio italiano, o transatlântico Conte Grande, e um alemão, o Windhuck, se refugiaram no porto de Santos. Seus tripulantes, praticamente sem o apoio de seus países, tiveram de procurar emprego em terra. Aconteceu então um curioso fenômeno: parecia que todos haviam se tornado cozinheiros-chefes dos respectivos navios, tal a profusão de restaurantes que passaram a anunciar a contratação desses "experientes cozinheiros de bordo", em Santos, São Vicente e até nas capitais paulista e carioca.

Na série de reportagens Os Imigrantes, que publicou em 1982 no jornal santista A Tribuna, a jornalista Beth Capelache de Carvalho relatou, sobre os alemães:

Inimigos do país - Em 1943, os alemães, assim como os japoneses, foram obrigados a retirar-se das cidades do litoral brasileiro, por medida de segurança, por serem súditos do Eixo. Eles deviam abandonar uma faixa de 50 quilômetros do litoral, e tiveram um prazo de 24 horas para isso. No dia 10 de julho de 1943, A Tribuna publicou uma reportagem sobre essa retirada: os alemães foram removidos para o Departamento de Imigração, em São Paulo, de onde seguiram para outras cidades do Interior.

O Windhuck - Antes disso, a situação dos alemães já começou a ficar delicada, e os que não falavam português eram freqüentemente incomodados e tratados como nazistas.

Em 1939, quando Hitler invadiu a Polônia, o comandante do Windhuck - o mais moderno transatlântico germânico na época - resolveu interromper o cruzeiro que o navio fazia pelos mares da África, para refugiar-se na América do Sul, onde não teria de enfrentar navios de guerra e o racionamento de combustível.

O Windhuck aportou em Santos com 120 tripulantes, que foram recolhidos em uma pensão e de lá transferidos para São Paulo. Mas muitos voltaram, depois de cumpridas as formalidades, e se radicaram por aqui. O folclore sobre os restaurantes alemães que proliferaram em Santos por essa época conta que, depois da chegada do Windhuck ao porto, todos os seus oficiais transformaram-se em cozinheiros, porque cada restaurante reivindicava para si a vantagem de ter sido montado pelo cozinheiro do Windhuck.

Na verdade, pelo menos duas casas de origem alemã foram legitimamente criadas por tripulantes do transatlântico: o bar Heinz, em Santos, e a cantina Hirondelle, em São Vicente. Há muitas outras casas que servem a comida alemã em Santos, tanto no Gonzaga como no Centro e na Boca, mas essas duas são consideradas as mais autênticas.

Em rara foto, feita por Gabriel Sanches Camacho, vê-se o navio alemão Windhuk fundeado em Santos, nas proximidades da curva do Paquetá, em 1939, quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. A embarcação, cujo nome significa "Canto do Vento", estava na África do Sul e zarpou imediatamente para não ser aprisionada pelos britânicos. Seu casco foi pintado de preto e disfarçado como o navio japonês Santos Maru. Com 240 tripulantes e 44 passageiros que não desembarcaram em Lobito (Angola), atravessou o Oceano Atlântico, furando o bloqueio naval inglês e assim chegou a Santos em 7 de dezembro de 1939. Foi avistado na barra pelo atalaiador (vigia) e depois prático Gerson, tio do despachante aduaneiro Laire Giraud, e chegou ao porto conduzido pelo prático Antonio Reis Castanho, pai do também prático Ismael Castanho. Em 1942, quando o Brasil declarou guerra à Alemanha, os tripulantes foram por segurança levados para campos de concentração, sendo bem tratados. Depois da guerra, muitos tripulantes permaneceram no Brasil, entre eles os antigos proprietários do Bar Heinz (Santos) e do Hirondele (São Vicente):


Foto: acervo do cartofilista Laire José Giraud, publicada na rede social Facebook em 31/05/2014

 

Junto com o Windhuck, também ficou retido em Santos o transatlântico Conte Grande. Parte da curiosa história desse navio, construído na Itália em 1928, foi relatada pelo pesquisador José Carlos Rossini, de Genebra (Suíça), em artigos publicados no jornal A Tribuna de Santos em 3, 10, 17, 24 e 31/12/1992, em sua série Rota de Ouro e Prata, depois transformada em livro:

Rara foto do 'Conte Grande' atracado no porto de Santos, em 1941

Rara foto do Conte Grande no porto de Santos, em 1941
Foto: coleção do pesquisador José Carlos Rossini

(...)
Com exceção de um par de viagens, em 1935, entre Trieste e Nova Iorque, o Conte Grande permaneceu na linha sul-americana - serviço que não foi interrompido nem ao deflagrar-se o conflito europeu em setembro de 1939.

Em junho do ano seguinte, porém, Mussolini e o rei Vittorio Emmanuele decidem embarcar na aventura da guerra ao lado do III Reich, e esta grave decisão encontrou o Conte Grande navegando no Atlântico Sul.

No dia 6 de junho de 1940, cinco dias antes da declaração oficial de guerra da Itália à Grã-Bretanha e à França, o Ministério das Comunicações italiano iniciou a enviar um aviso para todo os navios que compunham a frota do país e que se encontravam em navegação fora do Mediterrâneo.

O texto oficial do telegrama enviado era o seguinte: "Secreto - Urgentíssimo - As naves nacionais que se encontram fora da bacia do Mediterrâneo e que não estejam em condições de entrar no Mediterrâneo nas próximas 48 horas devem se dirigir para o porto neutro mais próximo. Devem, porém, ser evitados os portos metropolitanos e colônias de Portugal, assim como os portos dos Estados Unidos". (...)

O Conte Grande havia zarpado de Gênova com destino ao Brasil e o Prata em 22 de maio, em viagem regular de linha. (...) Na sexta-feira, 7 de junho, o Conte Grande escalou em Santos, desembarcando cerca de 300 passageiros. Na tarde daquele mesmo dia, o transatlântico largou as amarras com destino ao Prata.

Refúgio - Às 23h00 de 8 de junho, ao receber a mensagem codificada, via rádio-telégrafo, que provinha do Ministério das Comunicações, o Conte Grande encontrava-se na altura da costa do Rio Grande do Sul, e seu comandante, após consultar os outros oficiais superiores, decidiu retornar ao porto de Santos.

Na noite do dia 9, o Conte Grande apareceu na barra santista, para a grande surpresa de todos os profissionais do porto. A bordo estavam 866 pessoas, das quais 486 eram tripulantes. As únicas pessoas informadas sobre esta inversão de rota eram o capitão-de-fragata Torriani, que ocupava na época o cargo de adido naval na Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, e o representante da Italmar, agentes do transatlântico no porto santista. (...)

No dia seguinte, 10 de junho, quando desembarcavam esses passageiros no cais do Armazém 25 de Santos, em Roma o Conde Ciano (na época ministro de Relações Exteriores italiano) recebia, às 16h30, no Palácio Chigi, o embaixador francês na Itália, entregando-lhe a seguinte declaração: "Sua Majestade, o Rei e Imperador Vittorio Emmanuele, declara que a Itália se considera em estado de guerra com a França a partir de amanhã, 11 de junho". Horas depois, idêntica comunicação foi feita ao embaixador da Coroa Britânica na capital italiana.

No Brasil, face aos acontecimentos, o então presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas, assinou decreto-lei mandando observar completa neutralidade na guerra entre a Itália e a Alemanha de um lado, e a França e Grã-Bretanha do outro.

Hóspede do porto - Em Santos, a Italmar providenciou o encaminhamento dos passageiros destinados ao Prata. (...) O adido naval italiano no Rio de Janeiro, Torriani, passou a ser o responsável pelo grande transatlântico, tão logo o último passageiro passou pela prancha de desembarque. O futuro era incerto e a grande maioria dos tripulantes do Conte Grande foi posta em terra firme, alguns sendo acomodados em pensões e pequenos hotéis de Santos e São Vicente, enquanto um menor número foi levado para São Paulo e interior do Estado.

Nos meses que se seguiram, as autoridades navais italianas estavam propensas a fazer o navio sair e retornar, em uma aventura, às águas européias, tendo como destino portos alemães do Mar do Norte. Outra possibilidade era a de fazê-lo atravessar o Atlântico Sul e, dobrando o Cabo da Boa Esperança, penetrar no Oceano Índico com destino a Massaua, porto sob domínio italiano na Eritréia.

Estas duas possibilidades estiveram abertas até o fim de 1940. Mas, em 1941, foram abandonadas, considerando-se a primeira hipótese demasiado arriscada (os exemplos do Columbus e do Cap Norte em 1939 eram significativos), e a segunda havia perdido sua razão de ser com a expulsão das tropas italianas da África Oriental no início de 1941.

Assim sendo, o Conte Grande permaneceu no porto de Santos como ilustre hóspede; necessidades operacionais da Compahia Docas obrigaram, porém, a várias operações de transferência de cais. (...)

No início de março de 1941, esteve atracado por alguns dias no cais do Armazém 1 e em outras ocasiões esteve fundeado diante de outro ilustre transatlântico, também em estadia forçada no porto santista, o alemão Windhuk, ambos na altura do cais do Armazém 25.

Em abril de 1942, alguns dias antes de deixar o porto de Santos, com destino aos Estados Unidos, o Conte Grande e o Windhuk estiveram atracados no cais do Armazém 22, o primeiro com suas chaminés pintadas de preto e o segundo ainda disfarçado nas cores de navio japonês - com as quais havia entrado em Santos em fins de 1939.

Presença incomum - A presença do Conte Grande em Santos, entre junho de 1940 e abril de 1942, marcou a vida do cotidiano na cidade. Seus tripulantes desembarcados, sobretudo os homens de copa e cozinha (garçons, cozinheiros, copeiros, camareiros) foram albergados, bem e mal, por aqui e por ali, uns encontrando trabalho em bares e restaurantes da cidade e em São Vicente, outros vivendo no ócio e sendo sustentados por uma magra contribuição financeira do Consulado Italiano.

No Hotel Parque Balneário, no Gonzaga, foram tocar os músicos da orquestra de bordo, e o cozinheiro-chefe do Conte Grande, contratado pelo então proprietário, o senhor Fracarolli, foi enriquecer o cardápio à l'italiana do prestigioso hotel.

Outros membros da tripulação de serviço encontraram emprego em hotéis e restaurantes de Santos, São Paulo e até do Rio de Janeiro. Entre esses, um cozinheiro-auxiliar e dois garçons foram parar no Restaurante Bologna da Ponte Pênsil em São Vicente, e vários garçons, barmen e cozinheiros foram para o Hotel Quitandinha, do Rio de Janeiro.

Alguns serviços de bordo do transatlântico permaneceram na ativa, como por exemplo a gráfica, que diariamente imprimia um pequeno jornal para os tripulantes italianos que, ainda embarcados, eram responsáveis pela manutenção do navio.

Estes eram alimentados pela cozinha de bordo, que se abastecia de gêneros junto aos comerciantes do Mercado, inclusive de farinha, o que permitia o funcionamento da padaria do navio.

Criou-se, assim, uma rotina de vida que fez aparecer um comércio florescente de fornecedores e prestadores de serviços ao transatlântico. Uma lavanderia do centro de Santos viu seus negócios aumentarem em muito, pois a do Conte Grande havia cessado de funcionar.

(...) Em 15 de janeiro de 1942, o Windhuk, e em 22 de janeiro, o Conte Grande, tiveram seus pavilhões arriados e a bandeira do Brasil içada nos mastros principais dos dois transatlânticos. (...) Assumiu o comando do Conte Grande o comandante Hamlet Vitor Boisson, designado pela direção da companhia de navegação estatal Lloyd Brasileiro, a cuja frota o navio foi incorporado.

(...) Três meses depois, [o Conte Grande] foi vendido pelo Governo Vargas à Marinha dos Estados Unidos (U.S. Navy), para participar, assim, do esforço de guerra desse país. Negociada em segredo a sua venda, foi também em segredo, na escuridão de uma noite de abril de 1942, que o Conte Grande foi levado rebocado do cais do Armazém 22, barra afora, com destino ao Rio de Janeiro, para reparos internos e limpeza de seu casco.

Raríssima foto do 'Conte Grande' entrando na barra de Santos no início de 1940
Raríssima foto do Conte Grande entrando na barra de Santos no início de 1940
Foto: coleção do pesquisador José Carlos Rossini

Em foto de 1938, no acervo do comandante Wanderley Duck, um navio alemão com bandeira nazista, atracado no porto de Santos:


Foto: acervo do cartofilista Laire José Giraud, publicada na rede social Facebook em 25/11/2014

O navio ganharia o nome Monticello e se tornaria navio-transporte de tropas dos EUA para as Filipinas, sendo devolvido à Itália em 19/5/1947. Com o nome original, ainda voltaria a Santos transportando passageiros em 3/8/1949, na linha para a América do Sul atlântica - que cumpriria regularmente até fins de 1960, sendo sucateado em 1962.

A jornalista Beth Capelache cita ainda que muitos dos tripulantes do navio italiano acabaram se radicando em Santos, como Sebastiano Appi, que foi imediato do Conte Grande e instalou em Santos o Palace Hotel.

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