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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
S. João, outro dos primeiros engenhos

Embora mais conhecido seja o Engenho de São Jorge dos Erasmos, na Zona Noroeste de Santos, a ilha de São Vicente teve outras instalações para o fabrico do açúcar, tão ou mais antigas que este, como é o caso do Engenho São João, que se localizou em área onde hoje existe a Praça Rui Barbosa. Esse engenho pertenceu a José Adorno, que tem uma história pessoal e familiar bem mais rica do que apenas na qualidade de administrador de engenho, pois descendia de uma das mais nobres famílias genovesas e ajudou a fundar a própria cidade do Rio de Janeiro:

Mapa de João Teixeira Albernas, de 1631, indicando as propriedades dos Adornos
Reprodução parcial de imagem publicada em Poliantéia Santista/História de Santos
de Fernando Martins Lichti e Francisco Martins dos Santos, volume 3, 1996

José Adorno e a História de Santos

Francisco Martins dos Santos (*)

José, Francisco, Antônio, Rafael e Paulo Adorno, além de um tio, também Francisco e que se fez jesuíta (citado por Simão de Vasconcelos), figuras profundamente integradas à história brasileira, principalmente o primeiro e o quinto, pertenciam àquela célebre família genovesa, cuja primeira participação na vida pública de sua Pátria se deu em 1321, por Janfranco Adorno, eleito ancião, marcando o início das conquistas populares que fariam a derrocada do velho sistema feudal em 1339, com o governo de Simão Bocanegra, seguido por Gabriel Adorno, primeiro doge da família, em sucessão a Bocanegra; de Georgio Adorno, elevado ao trono ducal em 1413, até o último Antonio Adorno, o doge apeado do poder em 1528 pelos Dória (Andrés, seus irmãos e mais parentes).

Segundo refere Petinatti em "O Elemento Italiano na Formação do Brasil", aquele que mais nos interessa, José Adorno, o santista honorário "par droit de conquête", tornando-se amigo dos filhos de Bartolomeu Marchioni, foi empregado pelos célebres armadores, a princípio como inspetor dos seus navios e depois como diretor de uma grande feitoria que os mesmos possuíam na Ilha da Madeira, "onde, continuando as tradições de Malfante e de Centurione, haviam iniciado, em vasta escala, a cultura de cana-de-açúcar, e completado, depois, a instalação de numerosos engenhos".

Aí está como se instalaram os Adorno em terras portuguesas ainda antes, segundo se infere, daquele ano de 1528 em que se dava o apeamento da importantíssima família em Gênova (ao que aparece desde 1520), de tal modo que, ao passar pela Madeira a Armada Colonizadora de Martim Afonso, naturalmente por consentimento ou mesmo indicação dos Marchioni e interesse do rei D. João III, embarcaram os irmãos Adorno para o Brasil (1530) já como reconhecidos técnicos da cultura da cana e da indústria do açúcar, já como escolhidos para realizá-las nas terras vicentinas, levando para isso, subentendidamente, todo o necessário aparelhamento.

Atravessava Portugal, àquela altura, uma fase aguda de perseguições, expulsões e degredos, por motivos políticos, econômicos e, privilegiadamente, religiosos, dada a instalação do Santo Ofício no país, o que explicaria a facilidade com que se encontraram técnicos e colonos judios, árabes e luso-árabes, cristãos-novos ou velhos, para compor o "voluntariado" colonial, em cujo cômputo, numerosos seriam os membros da "Maçonaria Judaica" de Portugal, a se reconhecerem mutuamente por sinais e pequenos símbolos incluídos em suas assinaturas. Ramalho, por exemplo, usou o BETH (e não o CAF ou CAPH) que lhe dava o grau 21 "patriarca noaquita" - grau máximo na escala maçônica de então. Esse BETH significando "casa, sede, família; chefia civil ou religiosa; Patriarca" lhe deu o título social, até hoje citado.

Os próprios Adorno eram tidos como grande família judaica, razão talvez das suas ligações com armadores e bancos judaicos, e razão, decerto, das ligações de Antonio Adorno com João Ramalho, em Santo André, como um dos seus vereadores e fundadores.

Um fato inicial vinha, desde logo, demonstrar a preponderância da ação social e econômica de José Adorno, na terra vicentina, sobre a ação do português Braz Cubas. Este, ao chegar a São Vicente (região), ainda não completara 25 anos (era um plebeu) e só conhecia o ofício político e quase doméstico de servir cegamente a seu amo, o futuro Donatário, cuja família o criara, recebendo-o da mãe semita, de acordo com a lei real de 1506; enquanto José Adorno, então com mais de 30 anos, já trazia a prosápia de uma Casa de Doges, com duzentos anos de tradição, e dez anos de atuação na terra e no mar, a serviço de grandes armadores, banqueiros, industriais e negociantes judaicos de Gênova.

José Adorno vinha para fundar um engenho de açúcar, trazendo da Madeira as máquinas e peças desse engenho; vinha para instalar a vida econômica, que seria, em última análise, a razão do aparecimento de um povoado (Enguaguaçu, depois Santos) regular e com possibilidades de desenvolvimento.

Recebeu terras para isso, como vários outros, que seriam plantadores de canas para ele (lavradores e partidistas). Braz Cubas não recebeu terras, seria durante anos apenas um olheiro, um vigia do amo, após seu retorno a Portugal, e somente em fins de 1535, com a morte de Henrique Montes, pôde encontrar a oportunidade de possuir alguma terra, a que ele deixara (Ilha Pequena e Jurubatuba), fora da ilha de S. Vicente e do núcleo sócio-econômico da futura Santos. Embarcou-se para Portugal, onde obteria de D. Ana Pimentel, em setembro de 1536, aquelas terras anteriormente pertencentes ao judio, mas só voltaria para cultivá-las ou aproveitá-las, quase no fim de 1540.

Assim, de 1532 a 1535 e de 1535 a 1540, enquanto durante oito anos José Adorno fundava e desenvolvia o seu Engenho de São João, desenvolvendo a vida econômica e o progresso de Enguaguaçu, Braz Cubas havia sido apenas um olheiro e vigia de Martim Afonso (3 anos) e um grande ausente do Brasil (durante 5 anos). Esta é a grande diferença, inicial, da atuação dos dois homens, dando a José Adorno característica muito mais profunda de fundador de Santos, cuja primeira fase [é] exatamente aquele período de tempo - a fase de Enguaguaçu ou da povoação desenvolvida em torno de um engenho.

Já vimos que Antonio foi para o planalto, associado a João Ramalho. Rafael, não se sabe se tornou à Europa com o próprio Martim Afonso. Paulo praticou um assassínio em 1533, julgando-se que tenha sido na pessoa de Henriques Montes, o ambicioso e irrequieto judeu-português, ex-prático ou piloto do futuro donatário; após esse crime, fugiu pela costa, fixando-se na Bahia, onde se uniu a uma filha de Diogo Álvares (o Caramuru), iniciando a primeira nobreza baiana e tornando-se avô de Antonio Dias Adorno, o famoso sertanista, que Diogo de Vasconcelos aponta como principal e mais recuado fundador de Minas Gerais. Paulo Adorno, a última vez que aparece citado na História, é em 1565-1566, na fundação do Rio de Janeiro, ao lado dos reforços baianos a Estácio de Sá, e como um dos seus legítimos fundadores.

Francisco Adorno teria sido o único a ficar ao lado de seu irmão, na direção do engenho, pelo menos durante 30 anos.

Carvalho Franco, o paciente pesquisador de S. Paulo, diz que o Engenho de São João foi fundado no lugar de Santos, em 1535, mas há dados positivos, sobretudo lógicos, de sua fundação em 1532, no próprio ano da chegada, com funcionamento pleno em 1533, na primeira safra de canas locais e das redondezas.

O crescimento do povoado de Enguaguaçu teve em José Adorno e em seu Engenho a sua grande e imediata força de propulsão, e nada ali deveria ser feito sem que ele fosse ouvido e consultado. O próprio porto da Capitania, situado na atual Ponta da Praia, em frente aos rios Icanhema e "do Meio"; por influência de Adorno, mais do que de Braz Cubas (porque este não era industrial e ainda estava começando sua pequena produção agrícola da Ilha Pequena - atual Barnabé - e Jurubatuba), por uma questão de conveniência do Engenho de S. João e de seus partidistas vizinhos, foi mudado para Enguaguaçu, proximidades do Outeiro de Santa Catarina, entre este e o Valongo, em 1541.

A falta de documentação a tal respeito é suprida pela lógica. Não sendo fidalgo ou nobre como Adorno, não sendo industrial como ele, mas apenas agricultor recente e pequeno, não desempenhando cargo ou função de importância, nem mesmo de fiscal, vigia ou feitor em Enguaguaçu, e não fazendo parte do grupo humano, econômico e social da Ilha de S. Vicente, porque nela não tinha residência ou atividade, Braz Cubas, por esses fatos e por não ter grande interesse material naquela transferência em 1541, logicamente não poderia ser apontado como realizador ou cabeça da mesma transferência - fato importantíssimo, a vários prismas, que traria como conseqüência, além do progresso mais rápido do povoado satélite de S. Vicente, o aparecimento do seu nome: "Povoação de Santos", já em 1542.

Planta da Lisboa quinhentista, mostrando a Doca de Santos, descrita por Damião de Góis

Note-se, de passagem, que esse novo nome não proviria de nenhum hospital, e sim do próprio porto e doca de Santos, da cidade de Lisboa, junto ao Distrito de Santos, depois chamado Santos o Velho, de tão velho que era, pelas semelhanças topográficas e pela influência sentimental dos bons reinóis de Enguaguaçu.

Em 1543, ao fundar-se a Casa de Saúde ou Casa da Misericórdia da povoação de Santos, pela mão do novo capitão-mor ou governador Cristóvão Aguiar de Altero, os Adorno, Luiz de Góis e sua mulher Dona Catarina, Domingos Pires e Pascoal Fernandes, Jorge Ferreira e outros residentes da povoação, apareceriam como principais sustentáculos da Misericórdia, que se alojava numa casa de Luiz de Góis, como a própria Capela da Irmandade se instalaria na Capela de Santa Catarina, do mesmo Luiz de Góis. Nada de Braz Cubas. Não há um documento que relate ou se refira sequer à participação de Cubas nesses fatos. Quanto a José Adorno, em 1560 ainda era o Provedor, a primeira pessoa da Misericórdia. No processo histórico de Jean De Bollés (Biblioteca Nacional), se lê o depoimento de José Adorno, em que ele declara aquela sua qualidade.

Casou-se José Adorno na terra santista com a nobre Catarina Monteiro, filha de Cristóvão Monteiro, fidalgo português, e Marquesa Ferreira, sua mulher, e, em 1562, tornava-se, com sua companheira, fundador da Igreja de Nossa Senhora da Graça, que, vinte anos depois, em 1589, doaria aos padres do Carmo, para seu primeiro estabelecimento em Santos, secundado por Braz Cubas, que lhes doaria o terreno vizinho.

Segundo um cronista do tempo, como cita Petinatti, José Adorno, ao contrário dos irmãos, era de estatura alta, olhar penetrante, palavra fácil e atividade incessante. Conhecia os clássicos e era muito versado na língua latina, razão por que, depois de alguns anos de vida irregular ou repreensível (ainda solteiro), tornou-se amigo e companheiro dos jesuítas, principalmente de Nóbrega e Anchieta, com eles convivendo dias inteiros, lendo os poemas imortais da latinidade, os escritos de Santo Tomás de Aquino e os poemas de Dante.

Financista, negociante, industrial, intelectual, filantropo e guerreiro; tudo isso era o genovês ilustre, que, sendo o principal dos "santistas", o único cidadão da colônia que tinha crédito franco em Amsterdam, naquela altura o maior porto comercial do mundo, nunca pediu nada para si e nenhum cargo aceitou, que lhe aumentasse as rendas ou o nome, a evidência, demonstrando repulsa às vaidades humanas, enquanto, ao mesmo tempo, arriscava seus bens e sua vida em favor do povo e da terra, que, em paga, tudo fariam para esquecê-lo.

Em 1563, ao levantar-se para a obra da Colonização Brasileira o fantasma da Confederação dos Tamoios, conseqüência da irritação das tribos tupinambás do litoral vicentino contra os raptos de suas mulheres (ao que parece por intriga dos franceses) foi José Adorno, amigo sincero dos padres da Companhia de Jesus, quem pôs à disposição de Nóbrega e Anchieta recursos e embarcações de alto-mar, para que eles fossem a Ubatuba parlamentar com os chefes tamoios e conseguir pazes definitivas entre eles e os portugueses. Fez mais: faltando quem os levasse, pelos riscos imensos que corriam todos, ele mesmo se ofereceu para acompanhá-los, chefiando, em pessoa, a pequena expedição marítima que, após mil peripécias, terminaria com o histórico Armistício de Iperoig.

Anchieta, que tantas referências faz ao grande fundador de Santos e do Rio de Janeiro, descreve-o então "vestido com o saiote negro dos cavaleiros cruzados, a espada descansando sobre os joelhos, sereno e altivo em meio do gentio feroz".

Graças ao seu destemor e ao seu espírito de sacrifício e solidariedade humana, pôde a obra da Colonização Portuguesa, onde floriam Santos, São Vicente e São Paulo de Piratininga, escapar à sanha de 10.000 arcos tamoios, que, sob o comando feroz de Jagoanharo, Aimberê, Pindobuçu e Coaquira, estavam prestes a se despenhar sobre ela, anulando-a.

Em 1565, já muito rico e talvez cansado da atividade direta em sua indústria açucareira, Adorno tinha em seu Engenho, além de um extraordinário gerente administrador, que era Heleodoro Eobano, três interessados partidistas, com 70 escravos. Pouco mais tarde ele daria sua filha em casamento ao inglês John Withall, conhecido como João Leitão, e este acrescentaria ao Engenho, como organização mercantil, uma grande loja, talvez o primeiro magazine, digno do título, em todo o Sul do Brasil, cujas importações seriam feitas, em grande parte, à base de pagamento de açúcar.

Naquele mesmo ano, quando Estácio de Sá desesperava-se por não poder expulsar do Rio de Janeiro os franceses e seus aliados os Tamoios, como também por não poder fundar a cidade de São Sebastião, ordenada pelo Rei, foi em Santos que ele se armou e resolveu, a conselho e com o apoio de Nóbrega, buscar a adesão de José Adorno, e foi o genovês-santista quem reuniu um grande corpo de combatentes brasileiros e portugueses - 300 homens de Santos unidos com homens de São Vicente e de São Paulo, segundo Simão de Vasconcelos, vestidos, armados e aparelhados por ele: foi quem forneceu bergantins e embarcações ligeiras, peças de artilharia, mantimentos, dinheiro, e tudo quanto foi julgado necessário para uma longa expedição. Fez mais; fechou temporariamente o seu Engenho, destacou seu notável administrador, Heleodoro Eobano, para seguir como chefe da sua tropa, e seguiu ele mesmo à frente de todos.

Já anteriormente, em 1560, estivera José Adorno, aos primeiros combates de Mem de Sá contra os homens de Villegagnon, levando apenas alguns agregados e voluntários. Agora, em 1565, quase deixava Santos vazia dos seus melhores valores humanos; levava gente que, vendendo suas propriedades santistas, não ia apenas para combater, mas para povoar, para ficar para sempre no Rio de Janeiro, construindo casas, formando sítios, levantando engenhos. Exemplo disso é aquele Francisco Velho, que montaria o primeiro engenho de açúcar na futura capital brasileira, na enseada que tomaria o seu nome e, mais tarde, seria chamada de "Botafogo".

Outros exemplos seriam: seu sogro, o nobre Cristóvão Monteiro, que tantos cargos importantes ocuparia na nova cidade; Pedro Martins Namorado, primeiro juiz pedâneo [N.E.: juiz pedâneo foi denominação derivada do fato de despachar em pé, rapidamente] da Vila de Santos, que seria também o primeiro juiz do Rio de Janeiro; Heleodoro Eobano, o gerente do Engenho de S. João, que ocuparia diversos cargos; Francisco e Diogo Braga, dois dos cinco fundadores de Bertioga, principalmente Diogo, que seria o primeiro vereador da nova cidade; João Carrasco, André da Lage, João de Andrade, Antonio de Mariz (em verdade, Antonio de Marins Coutinho), que José de Alencar imortalizaria em seu romance O Guarani, e que seria Provedor da Fazenda, Mamposteiro dos índios, dono de terras em Niterói e senhor do curral junto ao morro do Castelo, para sustento do povo, e assim tantos outros.

José Adorno, galardoado com inúmeros presentes em terras, permaneceu durante alguns anos na cidade que fundara com Estácio de Sá, mas nunca aceitou postos políticos ou administrativos. Mais tarde voltaria à sua Santos, onde passaria algum tempo, porque, já em 1575 e 1578, seguiria com seu amigo e ex-governador Jerônimo Leitão, a combater os últimos Tamoios, concentrados em Cabo Frio. Ali, nos combates da região, e já com setenta e muitos anos, ele se encontraria com o seu antigo gerente e administrador Heleodoro Eobano. Combateram lado a lado, ombro a ombro. Heleodoro ficaria para sempre naquele chão, mas José Adorno retornaria, cheio de glória, à cidadezinha que fundara na ilha de S. Vicente.

Faleceu em Santos entre os anos de 1603 e 1608.

(*) Francisco Martins dos Santos apresentou esta tese ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em 4 de abril de 1970, quando a entidade era presidida pelo Dr. Aureliano Leite. O trabalho foi publicado na História de Santos/Poliantéia Santista, que reproduz seu livro e também o de Fernando Martins Lichti (Editora Caudex Ltda., S. Vicente/SP, volume 2, 1986).