IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO:
Variações sobre um tema:
os homens-mulheres
Nelson Salasar Marques (*)
Colaborador
O Rio de Janeiro do início do século foi o grande paraíso
tropical. Além do Corcovado e do Pão de Açúcar ele tinha Paulo Barreto, o imortal João do Rio. João do Rio saía pelas ruas e praias cariocas com um
caderninho e lápis na mão em busca da alma do Rio de Janeiro, como nós, os garotos do Macuco, saíamos pelas ruas do
bairro de alçapão na mão em busca de passarinhos cantadores.
O cronista carioca seguia a concepção de Michelet, o maior de todos os historiadores, em meu
conceito, e para quem o escritor-historiador ou vice-versa deveria captar a atmosfera de uma época. E essa captação passa pela linguagem
dessa época. E é perturbador ver-se o quão pouco esse princípio tem sido levado em conta porque a história que nos chega parece ser um relato feito
por alguém que do vigésimo andar de um edifício fizesse a descrição de uma cena passada lá embaixo na rua. João Ribeiro, com a sua História do
Brasil, foi o primeiro a mergulhar na história de ponta-cabeça e trazê-la romanceada em conseqüência de seu impacto emocional com ela.
Hoje pouco se sabe dos modismos e gíria que os nossos coevos de 30 usavam em suas falas
diárias, e, embora ainda criança tenha alcançado um pedaço dessa década, as sondas de longo alcance que lanço a esse período me chegam quase
virgens. Até boa parte da década de 40 o falar santista ainda era fortemente vincado por expressões lusitanas e palavras como malga (tigela),
bugalho (um pedaço de galho), sachola (enxada), aldraba (tranca de porta), aldrabão (trapaceiro), andar a eito
(ir em linha reta), tu comigo não mangas (não tiras vantagem), troca-tintas (patife), assanhada (mulher que não podia ver
homem), santo-de-pau-oco (hipócrita), um garnizé (garoto) eram palavras e expressões de uso corrente.
Tampa de panela podia ser chamada de testo e eu à mesa pedia um pedaço de chicha,
que era carne. Às vezes meu pai ia dar uma volta para espairecer as idéias. A linguagem era pouco plástica e a liberdade de criarmos nossa
própria expressão, coisa quase fora de cogitações, e as falas de casa e das ruas eram razoavelmente corretas porque elas seguiam dois padrões, ou
pelo menos me parece que seguiam, e esses padrões eram a correta tradição portuguesa no falar e as novelas radiofônicas da PRG-5
e da PRB-4.
Havia Áurea Domingues, Nena Nascimento, Antônio Nascimento, Arnaldo Gonçalves e um narrador
de nome Rubens Quadros que tinha uma das vozes mais bem empostadas e belas que jamais ouvi. Eram vozes que trabalhavam em cima de textos em
português correto porque a concepção da arte radiofônica se distanciava da de hoje.
Essas novelas e o Gibi mensal ditavam a nossa linguagem muito mais do que a escola.
As variações entre linguagem infantil, juvenil e adulta eram pequenas. Eu me expressava quase igual a meu pai e minha mãe. Em nossa casa, como de
resto nos bondes e nas ruas, havia uma certa unidade lingüística vinda do bojo dos séculos passados e que nos padronizava a todos. O que um dizia,
todos entendiam. Na linguagem, na rígida moral puritana, na religião e na comida, Santos era mera extensão de Portugal e de sua gente.
Mas, no início da década de 40, aconteceu algo de novo no plano da linguagem: a aparição
triunfal de Jorge Veiga, o malandro genial do samba. A sua fala desabrida e pitoresca nos trouxe realidade nova: a constatação de que o simples ato
de falar poderia ser um ato de prazer. "Deixa a mula mancar que eu quero é rosetar". E o verbo rosetar teve trânsito fácil entre nós.
Nós dizíamos: "Eu vi o José rosetando no Gonzaga".
Já a realidade em São Paulo era diferente porque os portugueses paulistanos se deixaram
assimilar pelos italianos. A partir de 1939 ou 40, acabado de entrar na escola primária, as aulas acabadas, eu ia para a distante Água Rasa e Vila
Formosa, bairros paulistanos. A viagem era conto de fada desde a subida da Serra até a estação do Brás. Durante o percurso comia-se frango assado
com farofa e azeitonas pretas.
Português tem uma coisa de bom: eles sabem comer. Ninguém come mais e melhor do que um
português. É seguramente no mundo o povo que mais come e a metade da felicidade de um português está numa mesa abarrotada de boa comida. Ver
português comer chega a ser às vezes espetáculo quase espiritual. Ó, gordos, amantes da mesa e dos pratos cheios, vocês todos façam negócios com
essa gente, tudo gente boa, confiável, que a boa barriga é o melhor aval para um bom negócio. Foi Júlio César um dos primeiros a fazer essa
descoberta quando opôs o gordo Marco Antônio ao magro Cassius.
São Paulo já era então a grande metrópole, excessivamente limpa e bela, cidade de estilo
europeu, os prédios do Centro copiando a arquitetura francesa. Os bairros nobres eram percorridos por aqueles possantes e requintados bondes
camarões. Eles semelhavam-se a dinossauros modernos, todos fechados, de cor laranja-avermelhada, limpos e luxuosos por dentro. Carros de passeio
pelas ruas eram raros, quando pegávamos ônibus em São Paulo nós nos sentíamos pequenos, insignificantes. Ônibus àquela época era transporte de
operário de tecelagem. O chic mesmo era andar de bonde camarão.
Bonde camarão na capital paulista
em 1940, na Avenida São João
(clique na imagem para obter mais detalhes)
Quando hoje vejo Estocolmo, Viena, me lembro daquela São Paulo de meus tempos de menino. Médicos,
empresários, políticos, todos viajando de bonde camarão. E num bonde camarão vi o dr. Renato da Costa Bonfim, recém-chegado de seu estágio na
Austrália. Minha mãe me disse baixinho: "Olha lá o dr. Bonfim". Era ele, de pé, no bonde camarão, o famoso dr. Bonfim, discípulo de Resende Puech.
Em 1950 tornaria a vê-lo: guiava carro último tipo e já tinha mansão no Jardim América.
Na casa de meu tio na Água Rasa já via família portuguesa contaminada por influências
alheias às suas raízes, coisa inconcebível na Santos daquela época. E santista em São Paulo passava por razoável trauma lingüístico porque muita
coisa que eles diziam a gente não entendia. Pra primo meu, eu era capiau (caipira). Santista em São Paulo era capiau.
Eles se divertiam com o nosso sotaque marcadamente lusitano arrastando nos as finais
das sílabas e com o tratamento de tu. Paulista usava você. E à mesa era uma gozação danada em que eu era o centro. Santista típico de
hoje - por típico eu entendo de família de duas ou mais gerações aqui na cidade - ainda carrega aquela prosódia portuguesa, os ss
arrastados, o tu foi?, o alongamento da vogal final em pai (paiêêêê), e em mãe (mãiêêêê), são fenômenos marcadamente santistas,
vincados nos moldes portugueses, ao contrário de Campinas, Piracicaba, Limeira, Santo André e a Capital. Eu não sei se os nossos professores de
Português de hoje, em nossas escolas, falam aos seus alunos dessa característica santista no campo da prosódia.
Bola de capão, em São Paulo, era de capotão e empinar papagaio era para
eles soltar o quadrado. Termos ofensivos e xingamentos eram poucos, mas já tinham a influência italiana. Uma chivetta era moça
assanhada que não podia ver homem, e minha tia dizia que tinha fredo (frio) e paura (medo). Ela chamava as pessoas de quem não gostava
de putanas, palavra aceita naquela comunidade, mas dizer alguém filho da p. em público era raro, era palavrão que queimava como ferro
em brasa. Seo coió, calhorda e molóide eram palavrões suaves, não feriam muito.
A palavra espeto tinha uma gama riquíssima de sentidos: "esse professor é espeto"
(difícil de lidar ou muito esperto, nunca cheguei a saber ao certo o seu sentido exato). Meu tio Bernardo, um português da velha cepa lusitana,
dizia a toda hora porca la miseria. Então eu voltava a Santos com a língua solta e mal chegava já me punha a propagar pela casa o vocabulário
do planalto, aquelas expressões que me haviam encantado, mas nem bem terminava a última sílaba e já me choviam bofetões. Criança naquela época em
Santos tinha de ter a boca bem policiada.
Mas eu vi em São Paulo coisa que nunca havia visto antes: família portuguesa criada fora do
círculo de influência da Igreja Católica. Pela primeira vez vi português falando mal de Deus e de padre. Pela primeira vez em minha vida vi igreja
católica vazia aos domingos e sem força nos seus apelos. Aquilo bulia internamente comigo e eu me dizia que alguma coisa andava errada por aquelas
terras de barro vermelho do planalto paulistano. Alguma coisa anda errada quando um sino de igreja batendo aos domingos não desperta a atenção de um
português.
Em Santos o vocabulário da maledicência era restrito e como a vida era amena xingava-se
pouco. Desavença de homem era resolvida à bala e à faca. A chamada honra não podia ser manchada. Mas não se matava por pouca coisa, para roubar, por
coisa assim. Só se matava para lavar a honra, depois de discussões violentas. Se na rua ou no bonde houvesse discussão acesa a gente podia se
preparar porque ali poderia haver morte. Os crimes eram passionais e sempre havia mulher no meio. Adultério dava morte quase certa e mesmo os juízes
nos tribunais viam o criminoso com certa simpatia: ele lavou a sua honra.
As poucas palavras para xingamento tornavam criança educada e de boca limpa (haveria
exceções, não nego). Dessa época, fins da década de 30 e começo da de 40, me chegam apenas umas quatro ou cinco: seo laúsa (deixa de
laúsagem, dizíamos a toda a hora) - expressão encantadora que se perdeu no tempo e que eu nunca cheguei a saber ao certo o seu sentido exato -,
tripas, galinha morta e viado. Português era chamado de cutruco. Viado ninguém sabia ao certo o que era. Havia
apenas a palavra, musical, sonante como chuva batendo nas vidraças, palavra que nos fora passada órfã de sentido e que nós recebíamos e passávamos
adiante. Era só um som que atingia o alvo e machucava, porque a nível de dicionário ela não nos dizia nada.
E isso era de fácil explicação: nós, os garotos daquela época, não sabíamos da existência de
homossexuais, de homens que gostavam de homens. Homem pra nós era bicho macho, que punha pra quebrar. Fôramos ensinados a pisar forte, a falar
grosso, a chutar a canela pra quebrar, a não dar moleza pra menina, a evitar bonecas. "Homem não chora", dizia a minha mãe. Essa concepção que nos
veio de ser um homem nos foi passada com o leito materno e nós não podíamos conceber um ser superior efeminado, de sentimentos
farfalhantes.
Nós não os víamos nas ruas, não se manifestavam nos bondes, não estavam em nossas casas.
Ninguém tinha irmão homossexual. Ou primo. Ou professor. Ou amigo. Talvez fosse inocência nossa, concedo, mas eles pareciam não existir.
Tento mergulhar no passado e inserir aqui um flashback. Mas nada. Nenhum andar
saltitante ou mão desmunhecante projetada no ar; nenhum homem desmilingüindo-se igual suspiro açucarado em busca de ressonâncias; nenhum olhar
efeminante lançado aos arredores em lasciva busca de presa. Nada.
Varei a escola primária no Grupo Escolar Cidade de Santos, no Macuco, sem nunca tê-los
visto. Em nossas conversas eles não apareciam, sequer tocávamos no assunto. Os homens-mulheres começaram a tomar forma, pelo menos para mim, no
curso ginasial, do colégio do Carmo dos padres Carmelitas ali na Rua Augusto Severo, atrás do prédio dos
Correios. Mas eles eram ainda presença fraca, quase uma figura de retórica em conversas mais picantes. Mas já então, pelo
menos, eles existiam e nós já os víamos como entidades vivas sobrepairantes a uma realidade difusa.
A década de 60 os liberou e Santos encheu-se deles. Às vezes, sentado a uma mesa de um
desses bares do Gonzaga, eu os observo caminhando aos magotes pelas ruas e passeios. Já lá vão, tão senhores de si, de mãos dadas, homem com homem,
indiferentes a possíveis constrangimentos. Já conquistaram o seu lugar a ferro e fogo e esta luta tem uma certa grandeza épica.
Os homossexuais sempre existiram. Eles estão na Bíblia e a literatura está cheia deles.
Encontrei-os em André Gide, Marcel Proust e Thomas Mann. Mas parece haver uma explicação razoável para a ausência deles em Santos na década de 40,
se considerarmos um fato: Santos era cidade puritana, das mais puritanas do Brasil. E esse puritanismo abafava toda a manifestação que fugisse à
normalidade e a normalidade era para a Igreja Católica a fonte abrolhadora que jorrava para o Paraíso Celestial. Os hippies e o rock'nd
roll pulverizariam conceitos estratificados.
A década de 60 foi o grande garçom universal: ela apresentou ao mundo o menu com todos os
pratos e convidou-nos a que nos servíssemos (mas teríamos de pagar a conta e a conta seria alta para quem quisesse pratos exóticos). Eu continuei
preferindo filé minhon a um bife duro e cheio de músculos capaz de me quebrar os dentes.
(*) Nelson Salasar Marques é escritor, professor das
línguas inglesa e francesa e de literatura americana. É membro da Academia Santista de Letras. |