Um local perto do "homem do saco" fica, na verdade, nas proximidades
do Monumento ao Trabalhador Portuário, um dos marcos da Perimetral
Foto: Fernanda Luz, publicada com a matéria
Retão,
Santa, fanchonas e safos. É a língua do cais
Gírias e apelidos marcam o dia-a-dia do
Porto
Fernanda Balbino
Da Redação
Quem
convive com os profissionais que trabalham no Porto de Santos certamente já ouviu e parou para refletir sobre o significado de algumas palavras
ditas por eles. Como Santos é uma cidade predominantemente portuária, algumas dessas expressões caíram no gosto da população, que muitas vezes as
repete, mas nem sempre conhece a origem dos termos.
"Nós temos a nossa forma de comunicação entre
os companheiros. Também temos as descrições do trabalho e de localização", explicou o estivador Ronaldo Silva.
Entre as formas de descrever pontos específicos
do Porto, Retão da Alemoa, Cais da Mortona e Santa são alguns termos bem populares. O primeiro é
utilizado pelos estivadores para identificar a Avenida Augusto Barata. Nada mais normal para a via de 1,5 quilômetro de extensão que liga o
Cais do Saboó à Alemoa, na Margem Direita.
O Cais da Mortona é o antigo nome do
Cais da Marinha, onde está a nova sede da Capitania dos Portos de São Paulo, entre os armazéns 27 e 29. Segundo a Marinha
do Brasil, o termo começou a ser usado após o rebaixamento do cais nessa região, no século passado. A medida foi necessária pois o local era
utilizado para receber as embarcações destinadas a reparo. O responsável pela obra tinha o sobrenome Morton. Em pouco tempo, a área foi apelidada de
Cais do Morton e, em seguida, Cais da Mortona.
Perto dali, fica a Torre Grande. É a
última e a maior das 170 torres de transmissão de energia elétrica da Usina Hidrelétrica de Itatinga, que
abastece o Porto de Santos. A Torre Grande fica ao lado dos silos, na altura do Armazém 26.
Já a Santa é uma referência à
imagem de Nossa Senhora de Fátima, colocada na praça que fica nas proximidades do Terminal de Passageiros Giusfredo Santini,
na direção da Avenida Senador Dantas. A denominação é tão forte que o viaduto construído pela Codesp no local, como parte da Avenida Perimetral da
Margem Direita, foi batizado como Viaduto da Santa.
Outro ponto curioso da avenida é a Curva do
Monumento. [O tre]cho
marcado por inúmeros acidentes e por ser o local onde será implantado o primeiro radar de trânsito do Porto. O monumento
é uma escultura de 12 metros de altura que reproduz a figura de um estivador carregando um saco, em uma alusão a como eram embarcadas as cargas nos
navios no início do século passado.
Não demorou muito tempo e a obra de arte passou
a ser conhecida como o homem do saco. E, com essa denominação, se tornou mais um ponto de referência do cais.
Linguagem |
"Nós temos a nossa forma de comunicação
entre os companheiros. Também temos as descrições do trabalho e de localização" |
Ronaldo Silva, estivador |
Trabalho no cais
– As gírias e os apelidos também estão presentes nas operações de embarque e desembarque do Porto. Equipamentos e cargas ganham novos nomes, que só
são entendidos por profissionais da área ou por quem convive com eles.
Se o dia foi produtivo, com grande movimentação
de cargas, a lingada foi grande. A expressão é uma referência a um tipo de operação que, devido às novas tecnologias, é cada vez menos
utilizada. Lingada é a mercadoria levantada pela linga, uma faixa de lona que envolve as cargas (geralmente sacos) e é
presa a um guindaste ou um pau-de-carga. Dessa forma, elas são levadas dos porões dos navios ao cais e vice-versa.
Quando por algum motivo o trabalho é repassado
para outro colega, o cavalo assume o posto que antes era do dono do pasto. Mas se alguém passa na frente do companheiro e assume o
trabalho sem permissão, é comum dizer que o dono do pasto levou uma bicicleta de um mula, que é a referência usada para o
sujeito que é falso ou sonso.
Agilidade também é uma característica do
dia-a-dia no Porto. Homem-gato e Homem-aranha são os profissionais que apostam na rapidez e tornam qualquer trabalho sussa, adjetivo criado
como sinônimo de suave.
Em dias de chuva, os trabalhadores estendem o
morcego para cobrir os porões dos navios e proteger a carga. Segundo o estivador Joseval Teixeira, trata-se de uma capa, como a do personagem
dos quadrinhos Batman, o homem-morcego.
Nem os vagões fogem dos apelidos. As
composições ferroviárias longas são chamadas de língua de vaca, por conta do tamanho. O estivador Joseval Teixeira conta que há quem as chame
de língua de sogra. "Essa não precisa nem de tradução. Língua de sogra é enorme", brincou.
Formas de tratamento
– Cunhado é um termo comum entre amigos, quando alguém quer insinuar que tem um relacionamento com a irmã do colega. Já fanchona é o
metido a conquistador, que tem um grande número de cunhados.
O clima bem-humorado continua quando os termos
são usados para criticar os companheiros. O sujeito acomodado, que não trabalha bem, é o remela ou mole. Já o que desempenha bem suas
funções e não se intimida com os problemas que surgem no dia-a-dia é safo. Esse termo também é muito utilizado pelos militares da Marinha.
Os metidos a sabichões, que gostam de apontar
defeitos e inventar novidades nas operações, são os engenheiros. Se o companheiro é desinteressado ou lento, é um mazanza.
Origem |
"Quando falamos no Retão da Alemoa, por exemplo, não
sabemos se esse nome foi dado antes ou depois do batismo oficial da avenida. É o que acontece com a Marginal Pinheiros, em São Paulo. Ninguém
sabe o nome dela" |
Márcia Regina Teixeira da Encarnação,
professora-doutora em Linguística |
A movimentação de cargas com lingada inspirou gírias no cais
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
Origem de expressões é mistério
O uso de linguagens específicas por um
determinado grupo é comum. E também é usual que a origem dessas gírias nunca seja descoberta.
As gírias são variações lingüísticas que sofrem
adaptações de acordo com fatores sociais. Especialistas afirmam que, no começo, elas são relacionadas a variáveis de idade, sexo ou grau de
instrução e, com o passar do tempo, caem no gosto popular.
A professora-doutora em Lingüística Márcia
Regina Teixeira da Encarnação explica que as gírias começam em determinados grupos e se disseminam com facilidade. "As gírias surgem em grupos que,
geralmente, não querem que as pessoas que não pertencem ao grupo entendam".
No caso do Porto de Santos, as gírias se tornam
uma espécie de código entre os trabalhadores. O estivador Joseval Teixeira concorda. "Acho que, no começo, essa linguagem era usada para boicotar os
colegas novos, mas com o tempo, de tanto ouvir, todo mundo vai aprendendo".
Segundo a professora, mesmo que a linguagem
surja em um grupo específico, as próprias pessoas acabam levando os termos adiante para outros grupos. No caso dos portuários, eles podem falar as
gírias fora do trabalho, em cas ou em qualquer outro local que freqüentem.
Por conta dessa disseminação, é impossível
saber a origem exata das expressões. "As palavras ganham significado, mas não se sabe quando e em qual grupo elas foram criadas", afirma a
especialista.
Alguns termos são usados com freqüência e se
tornam sinônimos, sendo incorporados à Língua Portuguesa. "Os lexicógrafos descobrem as palavras e as inserem nos dicionários tradicionais".
Outros, que já existem e têm significado
próprio, acabam adquirindo outros sentidos. É o caso de embarcar. "O verbo embarcar deriva de barco.
Logo, embarcar significa entrar no barco e não no avião, por exemplo. Mas, nos aeroportos, estão escritos embarque e desembarque nas placas".
O mesmo aconteceu com o termo transatlântico.
Pontualmente, refere-se aos navios que cruzam o Oceano Atlântico, indo da Europa ou da África para a América, ou vice-versa. Porém, virou sinônimo
de navio de passageiros, independente do roteiro.
Nos dois exemplos, a professora explica que a
palavra cresceu na abrangência de significados que recebe. "É uma questão de semântica, o ramo da lingüística que estuda o significado das
palavras".
Márcia lembra de nomes dados informalmente e
que substituem os originais, fazendo-os perder a notoriedade. "Quando falamos no Retão da Alemoa, por exemplo, não sabemos se esse nome foi
dado antes ou depois do batismo oficial da avenida. É o que acontece com a Marginal Pinheiros, em São Paulo. Ninguém sabe o nome dela".
No dia-a-dia do Porto, Nossa Senhora de Fátima é "a Santa"
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria |