ÚLTIMOS CASAMENTOS
Em 1927, Arnaldo ficou
viúvo, com dois filhos, a Lena, de dois anos, e o Arnaldinho, com apenas quatro dias. Sua esposa Sylvia estava com enorme antraz, que provocou uma
septicemia. Chegou a ser operada pelo dr. Dutra Vaz, mas não resistiu ao processo infeccioso. Não contávamos ainda com os antibióticos.
Em razão dessa infecção, o bebê nasceu coberto de erupções e também corria sério risco
de vida. Mamãe o trouxe para o casarão e, com a preciosa ajuda do Clóvis, enfrentou a luta para salvá-lo. E Deus permitiu que isso acontecesse. Foi
contratada uma ama-de-leite para alimentá-lo e uma babá para Lena. Arnaldo ficou morando conosco até 1929, quando se casou com Beatriz, sua cunhada.
No início desse ano, o Jorge foi para os Estados
Unidos fazer um curso de especialização em Engenharia Eletrônica. Ele foi um dos pioneiros, em São Paulo, na instalação de luminosos, com várias
diversificações.
Quando ele estava para voltar, começaram os preparativos para a festa de boas-vindas.
Beca foi a organizadora da programação. Foi armado um palco no corredor do primeiro pavimento. E a nossa turminha se apresentou em números de
teatrinho, de dança, de poesia. Guardo nítido na memória um número intitulado "As Quatro Estações do Ano". Eu fui a primavera; a Edith
Araújo, o verão; a Conceição Vaz Guimarães, o outono; e o Orlando, foi o inverno.
Mamãe, com sua extraordinária boa vontade, providenciou as fantasias e, na verdade,
fomos muito aplaudidos pelos presentes. Amigos, vizinhos e parentes foram acomodados em cadeiras colocadas em toda a extensão do corredor. Uma
improvisada platéia.
Em setembro desse ano, casava-se a Zica, com o Cherubim, indo morar em São Paulo; e em
dezembro, a Tina, com o Otávio Martins, fixando residência em Jacareí.
Imaginem vocês, dois casamentos em três meses. As cerimônias, religiosa e civil, bem
como a recepção, foram idênticas às do casamento de Beatriz. Os enxovais foram feitos por Ivetta Martins, que possuía mãos de fada. Ela veio a
casar-se com João Bernils.
Antes de prosseguirmos nossa viagem pelo tempo, gostaria de citar um fato auspicioso
ocorrido aos 26 de dezembro de 1926. Era fundada em Santos a primeira estação de radiodifusão, a Rádio Clube de Santos,
funcionando nas dependências do Cassino Miramar. Representou grande conquista para a cidade, tida hoje com o a quarta emissora mais antiga no
Brasil.
Foram fundadores da Rádio Clube os drs. Frederico Hafers e Max Valdez, Alexandro Ratti,
Jovino de Mello, Mimi Caldeira, Antenor Rocha Leite, Hermenegildo da Rocha Brito, Duarte Pacheco e outros, contando com o apoio da empresa Miramar,
na pessoa de V. Fernandes.
O Miramar, além dos salões de jogos, freqüentados por grande número de aficionados do
carteado e roleta, possuía um cinema. Muito freqüentávamos as matinês de domingo. O cinema era mudo, a imagem em branco e
preto. Havia um espaço rebaixado, onde ficava a orquestra regida pelo saudoso maestro Vetró.
As cadeiras não eram fixas no chão. Quando o filme terminava, elas eram dispostas ao
redor do salão, dando-se início à matinê dançante. Eu, uma pirralha, só apreciava. Nesse tempo, a Sylvia já começara a namorar Oswaldo Faria de
Paula, que viera para Santos trabalhar na firma cafeeira de seu pai, Gabriel de Paula & Cia.
Ele ia ao Miramar, levava-me pacotes de balas ou bombons, para que eu desse recados à
sua namorada. Sylvia ficava no terraço e ele, ao volante de uma baratinha, circulava do Canal 4 ao Boqueirão, durante horas.
Papai fingia não perceber e assustou-se quando foi avisado que o senhor Gabriel viria
pedir a mão de Sylvia para seu filho Oswaldo. Eles só se falaram seis vezes, antes do noivado. Em compensação, eu saboreava, repetidas vezes, balas
e bombons, como paga por ser a mensageira eficiente entre os dois apaixonados.
Aos 10 de março de 1928, um triste acontecimento abalou nossa cidade. Houve um grande
deslizamento de terra e pedras no Monte Serrate, atingindo inúmeras casas construídas em suas encostas e, principalmente,
os fundos do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, naquela época situado na Avenida São Francisco, onde hoje se encontra o Túnel Rubens Ferreira
Martins.
Isso ocorreu de madrugada. Papai, que participava do Conselho da Irmandade, logo que
foi avisado, saiu para prestar sua solidariedade e tomar as providências necessárias, para socorrer as vítimas da terrível catástrofe.
No decorrer do dia, ele percorreu as firmas cafeeiras, onde era muito conhecido, para
angariar recursos para a Santa Casa.
A subscrição aberta por ele e seu sócio Rodrigues Alves foi recebida com muita
aceitação pelo comércio em geral. Assim, foi conseguida uma relevante importância para fazer frente às necessidades mais urgentes.
Em dezembro, Sylvia e Oswaldo casaram-se nos mesmos moldes dos casamentos anteriores.
Foram para o Rio de Janeiro, em viagem de núpcias. Eles contavam que estavam à janela
do hotel em que se hospedaram, quando viram um aeroplano fazendo evoluções. Havia nele um grupo de professores, desejosos de homenagear Santos
Dumont.
O grande herói nacional retornava de Paris por navio e aportaria na então capital
federal, sendo aguardado por numeroso motivo.
Não se sabe o motivo, mas o aeroplano caiu no mar e, embora várias lanchas se
movimentassem para salvar seus tripulantes, não o conseguiram.
Dos casamentos realizados no casarão, o de Sylvia e Oswaldo foi o último, valendo
lembrar que foram todos celebrados pelo frade capuchinho frei Manoel Seregnano. Eles foram residir na Rua Rio Grande do Norte, na casa onde hoje
está sediada a Aliança Francesa.
Abrimos um parêntese para dizer que nós tínhamos um bom relacionamento com os frades e
papai muito os ajudou. A pia batismal, que lá se encontra, foi oferenda de papai. Apesar de não ser mais usada, em razão da mudança do ritual do
batismo, ela representa uma peça histórica, que os capuchinhos preservam com carinho.
Quando eram realizadas as procissões, todas as residências localizadas nas ruas por
onde elas passavam forravam o chão, com folhas de palmeiras e flores. Nós acompanhávamos esse costume e ficávamos à frente da casa, esperando o
cortejo passar.
Por fim, lembrando ainda todos os casamentos realizados no casarão branco, reporto-me
à toalha de mesa que, sempre a mesma, serviu a todos eles. Ela ficou comigo, por ter sido a caçula. É uma peça lindíssima, em linho bordado e filê,
que Nicácio Costillas encomendou para hábeis freiras italianas, de acordo com o formato da mesa. Não há quem não se encante com ela!
PROPRIEDADES E NEGÓCIOS
Na década de 20, papai
estava em ótima situação econômica e, com os lucros que obtinha como sócio da firma, ia investindo em propriedades.
Adquiriu um grande terreno, que ia desde a Epitácio Pessoa até a praia, na esquina do
canal 6, estendendo-se até onde hoje está a Rua Bassin Nagib Trabulsi.
Algum tempo depois, Arnaldo fundou o Atlântico Clube e papai
cedeu graciosamente esse terreno para ali se instalarem. Foi construída uma pista de patinação que viveu sua fase áurea. Jogavam hockey e
competiam com times de outras cidades, saindo sempre vitoriosos. Meus irmãos, com exceção do Jorge, abraçaram esse bonito esporte.
Posso citar aqui a presença de Waldir Campos Pacheco, Caio de Barros Penteado, Oswaldo
Faria de Paula, os irmãos Kannebley, Mario Andrade, os Porchat de Assis e Mario Botti. Havia também concursos, dos quais sempre participei. Uma das
melhores patinadoras era a Irba Castro, que veio a casar-se com o Affonso Rios, o Affonsito, como era chamado.
O terreno onde funcionou o Atlântico Clube abrigou posteriormente a praça de esportes
do Hespanha F. C., agremiação da colônia espanhola, hoje instalada no bairro da Caneleira, com o nome de
Jabaquara Atlético Clube.
Papai comprou também o imóvel da Avenida Bartolomeu de Gusmão 106, mais tarde vendido
a Jayme Kannebley, que ai residiu por muitos anos. Hoje é ocupado pelo Colégio Andradas. As casas da Avenida Presidente Wilson nºs 79 e 80, ele
também adquiriu e, algumas vezes, alugava para veranistas ou cedia para parentes.
Muitos ainda devem se lembrar da Vila Lisboa, bem no início da Avenida Ana Costa, era
um correr de casas todas iguais, das quais só existe uma, hoje sede de uma fornecedora de uniformes colegiais. Eram moradias modestas, que papai
alugava a preços módicos. Mas bem poucos pagavam os aluguéis.
Meu saudoso amigo Mario Pula contava que, quando adolescente, trabalhava na
imobiliária que administrava a Vila Lisboa. Quantas vezes ele saía com os recibos para proceder à cobrança, o que não conseguia.
Retornando à firma, ele dizia ao patrão: - "Coitado do Seu Pires. Ninguém pagou o
aluguel". Foi nesse local que papai construiu a garagem que deu início à firma A. D. Moreira.
Ele estendeu seus investimentos, também em outros municípios. Adquiriu uma gleba de
terra em São Bernardo, loteou-a e deu início à Vila Pires, hoje populosa, que conserva o nome do seu fundador. Em São Paulo, na Penha, adquiriu um
grande terreno, onde havia uma fonte de água mineral, que chegou a comercializar.
Chamava-se Água Mineral Cruzeiro do Sul. Em seu rótulo havia a imagem da constelação
que lhe deu o nome. Chegou a construir um hotel nesse local, mas não o concluiu em razão de uma nova derrocada em sua vida.
Como ele não tinha tempo para administrar as propriedades, entregou esse trabalho a
terceiros, nem sempre honestos e bons administradores, e que lhe causaram enormes prejuízos.
CRIANÇAS NA ESCOLA
Em 1929, dois casamentos
ocorreram na família, mas não no casarão. Arnaldo reconstruiu sua vida, unindo-se a Beatriz, sua cunhada, tendo mais três filhos: Sylvio, Rosemary e
Vera Helena. Jorge casou-se com Leonor Azevedo, de tradicional família de Jacareí, na Igreja de Nossa Senhora da Aparecida, padroeira do Brasil.
Nesse ano, papai decidiu que Olavo e Orlando fossem estudar no Ginásio Santista,
mantido pelos Irmãos Maristas e que hoje é o Colégio Santista. Eu fui matriculada no 2º ano do
Colégio Stella Maris. Adorei o colégio, desde os primeiros dias. Ia às 7 horas, assistindo primeiramente a Santa Missa; logo depois, era servido
o café. Depois eram iniciadas as aulas, que ocupavam toda a manhã.
Após o almoço e recreio, íamos para a sala de estudos. As menores sentavam-se sempre
com alguma de classe mais adiantada. Eram carteiras duplas. Lembro-me de sentar alternadamente com Maria Amélia Tourinho ou Zilda Negrão, que já
estavam no 5º ano. No almoço, sentava-me sempre ao lado de Merita Santos Dias, e só nos era permitido falar em francês. Com isso cheguei a falar
esse idioma corretamente. Quase sempre, na hora de lanche, a mãe de Merita mandava uma bandeja com deliciosas torradas de queijo.
Eu era fascinada pelas alunas do último ano, faixa branca. Assim é que, quando houve
crisma, convidei para minha madrinha a Vera Hercília Aguiar, sem mesmo consultar minha mãe que, em sua bondade, perdoou o meu atrevimento. A verdade
é que tão logo ela se formou, foi para São Paulo e nunca mais tive notícias dela.
Fazia parte do regulamento do Stella Maris a realização de sabatinas mensais. No
último sábado do mês eram proferidas as notas e conferidas medalhas a quem tirasse nota dez. Eu voltava para casa sempre com medalhas. Havia também
os cordões de honra. Constavam de uma faixa terminada em franjas douradas, que passava por um ombro e as pontas se uniam ao lado da cintura. Quando
consegui conquistar um deles, senti-me a mais feliz das alunas. Tinha a ver com o comportamento. Não era difícil seguir as regras de conduta, uma
vez que fora criada com muita disciplina. Ali fiz a classe verde, a verde e branca, a amarante e azul.
A colega que se tornou mais amiga minha chamava-se Agostinha Hernandes. Ela residia na
Avenida Siqueira Campos com os Baillão, irmã dela e cunhado. Eu saía de casa bem cedo, passava para pegá-la e íamos andando juntas pela Epitácio
Pessoa, até atingir a Conselheiro Nébias, onde até hoje se situa o Colégio Stella Maris. Agostinha casou com o Francisco Lima, o Francisquinho,
como era chamado. |