RETORNO AO CASARÃO
Foi no início de 1923 que nós nos mudamos para o casarão. Dois irmãos já estavam casados. A Odette, que se casara com Gil
Paulo Moreira e foi residir em São Paulo, e o Arnaldo, que se casara com Sylvia Sandall, indo residir na Rua Oswaldo Cruz.
O corpo de serviçais era composto de um jardineiro para cuidar dos jardins, outro para cuidar da horta. Um rapazinho era encarregado da criação. Uma lavadeira, uma copeira, uma
cozinheira, um arrumador para fazer a limpeza da casa. A mulher de um dos jardineiros, que era alemã, era encarregada de cuidar das roupas da família. Mamãe nunca quis uma governante, ela mesma dirigia a casa com grande competência.
Tivemos uma costureira, que trabalhou durante muitos anos, diariamente. Ela vinha no bonde 13 e, por ser uma passageira assídua, o motorneiro parava o bonde em frente à nossa casa, para
ela descer.
Também exercia suas funções em nossa casa um português, Seu Vieira, competente marceneiro que trabalhou durante toda a sua reforma.
Papai não o dispensou, e ele continuou trabalhando para nós, sempre havia alguma coisa a consertar. E, quando não, inventávamos algum coisa que pudesse surgir de sua habilidade.
Até a casa de boneca, em que brincávamos, era obra sua. Cada irmã que casava levava mesa de costura, banquetas, mesinhas, porta-toalhas, tudo muito funcional, dada sua notável
criatividade. Só quando se modificou a situação econômica da família é que ele foi dispensado. Mais que um funcionário, ele era um amigo. Durante anos nos visitava, testemunhando a amizade que nos tinha.
Completei meus quatro anos no casarão. Certamente ganhei muitos presentes, mas nunca vou esquecer de um aparelhinho de chá, bandeja com duas xícaras, bule, açucareiro e leiteira. Uma
graça.
Quem me deu foi o Cherubim, que já namorava minha irmã Eliza, a Zica, e que trabalhava na Casa Pedro dos Santos, fina loja de louças, cristais, prataria e artigos para presente. Sabe
como eles namoravam? Ela no terraço de cima e ele no Canal 4. O que marcava a sua presença era a chama do cigarro aceso.
Imagino, hoje, quantos cigarros ele gastaria por noite. Dada a austeridade de meu pai, os namoros aconteciam com grandes dificuldades.
Eram poucas as oportunidades de se encontrarem e conversarem pessoalmente. Mas a verdade gratificante é que todos os Pires foram imensamente felizes.
Nessa época, era costume das famílias de posse manter professores particulares para os filhos. Assim é que Beca, Sylvia e Chico tinham aulas diariamente com o padre Gastão de
Morais e dr. Dagoberto Gasgon.
Nós, os menores, Olavo, Orlando e eu, tínhamos aulas com a professora Tereza Nicoline. Os maiores tinham também uma professora de idiomas, da. Marta.
Não posso deixar de registrar aqui que, quando comecei a ter aulas com da. Tereza, já estava alfabetizada pelo mais doce dos mestres, meu pai... E minha primeira cartilha foi o jornal
A Tribuna. Nas letras grandes de suas manchetes é que aprendi a formar as palavras. A primeira, como não poderia deixar de ser, foi "café".
O mais engraçado é que, dado o grande movimento da casa, ninguém percebeu o papai me ensinando a ler. Quando deram pelo fato, foi uma alegria e surpresa geral.
Padre Gastão era muito alegre. Quando acabava sua aula, costumava jogar bola com meus irmãos.
Quando Odette teve seu primeiro filho, foi uma alegria na família. Primeiro neto e sobrinho. Eu fiquei tão orgulhosa de ser tia com apenas quatro anos, que disse aos empregados que me
chamassem de da. Edith, porque eu já era tia!!! Que importância dei ao novo título!
A NOVA VIZINHANÇA
Naquele tempo, aprender música, principalmente o piano, fazia parte do programa da família. Beatriz, desde o tempo em que
estudava em São Paulo, dedicou-se muito ao piano. Estudou com Chiafarelli e Cantú. As outras, com Sá Pereira. Beca e Sylvia com da. Zica e depois com da. Isa de Almeida, tia da Manoelita Corrêa Clemente. Guardo uma lembrança nítida de da.
Isa, sempre trajada com esmero e revelando, em sua pequena estatura, uma dignidade comovente.
Como era bonita a vida de uma família que seguia os ditames do seu chefe! Papai sempre desejou proporcionar o melhor para nós e, para satisfazer esse desejo, não poupava esforços.
Mas havia uma disciplina rígida. Nada era feito sem seu consentimento. Se precisávamos de calçados, ele providenciava para que a Casa Ribeirão nos enviasse
o desejado. Eram pilhas de caixas com a numeração e modelos desejados, que experimentávamos em nossa casa. Que comodidade!
Éramos fregueses constantes da Casa Alemã (que depois mudou de nome para Galeria Paulista, por causa da 2ª Guerra Mundial), da Casa
Lemcke, Casa 61, Casa das Novidades, Joalheria Pustiglione, Joalheria Montandon, Casa Pedro dos Santos, Casa Globo,
Tipografia Carvalho e muitas outras.
O método da minha família era conforto sem esbanjamento. A riqueza não influiu na maneira de ser dos meus pais, que se conservaram sempre criaturas sem vaidade, sem qualquer
exibicionismo, verdadeiramente autênticos.
Ricardo Bartholo, que foi um dos melhores cabeleireiros de nossa cidade, quando solicitado, ia ao casarão e lá permanecia grande parte do dia, cortando o cabelo de todos. Até há bem
pouco tempo, antes de falecer, relembrávamos essa passagem e ambos sorríamos com grande saudade de um passado distante...
Quando mudamos para o casarão, a avenida da praia ainda não era pavimentada. Os trilhos, por onde circulavam os bondes elétricos, eram dispostos sobre dormentes, em superfície um pouco
mais elevada e coberta de pedregulho. Lembro-me que gostávamos de pular nos dormentes, o que se tornava possível porque a circulação de bondes se fazia com grande espaço.
As calçadas dos pedestres já eram ladrilhadas. As crianças de todas as épocas sempre foram criativas. Assim é que meus três irmãos, Chico, Olavo e Orlando, conseguiram um casco de
jacaré, e resolveram fazer uma brincadeira.
Prenderam a ele um barbante comprido, que passaram por baixo do portão, colocando o jacaré na avenida. À noite, quando terminava a reza na capela do Embaré, grande número de pessoas
circulava pela calçada de nossa casa. Eles puxavam o barbante e as pessoas assustavam-se a princípio, mas acabavam achando graça. Iso durou poucos dias, porque logo o fato tornou-se conhecido e não temido. Diante do que ocorre hoje, época marcada
pelo vandalismo, pelas pichações, essa brincadeira revela-se um tanto simplória e inocente.
Dos dois lados da nossa casa havia pensões. A Pensão Belmar, num prédio de dois pavimentos muito grandes, cujo terreno ia também até a Avenida Barnabé. Eram
seus proprietários Albina e Raphael Dell'Aringa, simpático casal de italianos, que tinham um único filho, o Luiz, apelidado de Gígi.
Seus pensionistas, na quase totalidade, eram artistas que se apresentavam no Cassino Miramar, grande centro de diversões localizado na esquina das avenidas Bartolomeu de Gusmão e
Conselheiro Nébias, mas que se estendia até à Rua Oswaldo Cruz. Acontecia que esses pensionistas chegavam de madrugada e, não se lembrando de que ao lado havia vizinhos que dormiam, muitas vezes nos acordavam com a algazarra que faziam.
Nós tínhamos ótimas relações de amizade com os Dell'Aringa. Quando Olavo, Chico, Sylvia e Beca fizeram sua primeira comunhão, o Gígi integrou o grupo e participou do lauto café
que mamãe preparou para os neocomungantes. Ela o presenteou com a xícara de fina porcelana usada nessa grata ocasião, que ele conservou com muito carinho. Muitos anos passados, pelos idos de 1968, sabendo que eu colecionava xícaras, o Gígi
me deu aquela xícara que ganhara de mamãe, o que muito me emocionou. Luiz Dell'Aringa, alguns anos depois, tornou-se um dos sócios da A Balneária, sendo muito benquisto por seus freqüentadores.
Um dia, papai resolveu adquirir o imóvel da pensão e, uma vez desocupada, ele a reformou toda e a alugou para a família do dr. Hafers, conhecido médico, que ali residiu algum tempo.
Posteriormente, papai a vendeu para o sr. Núncio Malzoni, grande fazendeiro, que nele fixou residência com sua bonita família.
Mas a amizade com os Dell'Aringa sobreviveu enquanto eles foram vivos. Deles, só existe um neto, residente em Marília, dr. Alfredo Raphael Dell'Aringa, casado e com um casal de filhos.
A pensão Embaré era de um casal de portugueses e freqüentada por pessoas idosas, professoras, que a escolhiam para ter uma moradia confortável, mas tranqüila. Era uma casa térrea e bem o
fundo do terreno. Na frente, um grande número de árvores, à cuja sombra as senhoras se reuniam, entretendo-se com bordados, tricôs e crochês. Tudo era paz e tranqüilidade.
OUTROS VIZINHOS
Prossigamos em nossos passeios pela vizinhança. Adiante da Pensão Embaré estava a residência do advogado paulistano dr. Mario
Amaral e, na esquina da Avenida Siqueira Campos, havia um enorme terreno.
Lembro-me perfeitamente de duas árvores imensas, cujas copas ofereciam uma sombra convidativa. Nela havia uma grande pedra, que servia de banco.
Ali fazia ponto uma figura popular, o Ricocó. Era um italiano que andava com um violão e vestido com um poncho verde-garrafa. Tinha cabelos longos, totalmente
brancos.
Sentado à pedra, ficava dedilhando ao violão melodias de sua terra e cantando baixinho. Quando a molecada gritava seu nome, ele ficava possesso e desfilava seu vocabulário de palavras
impublicáveis... Certo dia ele desapareceu e viemos a saber que fora para Bauru.
Em continuação da casa dos Malzoni, estava a casa da família Wisling. Seu Emílio era casado em segundas núpcias com Ana Maria Araújo, uma moça belíssima, com quem teve um filho, o
Paulinho.
Tinha outros filhos do primeiro casamento, a Judith e o Carlos, que veio a casar-se com Suzana Nogueira. O Carlos foi um dos sócios da firma Sardemberg, Wisling, onde, por coincidência,
meu filho Ciro Júnior trabalhou algum tempo.
A casa dos Wisling era um das mais confortáveis e funcionais daquela época. Foi construída na parte da frente de uma casa, construção antiga, que eles conservaram com esmero e que era
chamada "casa velha".
Nela é que se realizavam as festas de Natal e Ano Novo, com toda aquela tradição das famílias alemãs. O grande pinheiro ornado de fitas e bolas coloridas. Ao seu redor, inúmeros
embrulhos de presentes a serem distribuídos. O mobiliário da casa velha deixava-me encantada. Móveis entalhados com riqueza de detalhes. Tudo na sua decoração estava de acordo com a época em que fora construída.
Já a casa da frente, a casa nova, era de um conforto extraordinário. Pela primeira fez eu conhecia uma casa de dois pavimentos com duas escadas de acesso, uma social, outra de serviço.
Havia uma espécie de vestíbulo, todo revestido de lambris em madeira escura, com cabides em quantidade para guarda de sobretudos, chapéus e guarda-chuvas.
Tantos anos se passaram e creio que serei capaz de desenhar todos os cômodos dessa residência, que muito me impressionou. De gloriosa memória um terraço que dava para a sala de jantar.
Ali era servido o chá todas as tardes, de uma forma requintada.
Da. Ernestina, mãe de da. Ana Maria, comandava essa refeição com grande elegância. As receitas alemãs se faziam presentes em brioches, pães, bolos, geléias, que eram apreciados por
todos, acompanhados de chá ou chocolate. Merece destaque especial uma torta de bananas, servida bem quente. Uma delícia!
Quero narrar aqui como travei conhecimento com essa família, que se tornou tão amiga nossa. Eu, bastante perspicaz, notei que eram alemães e, vendo no jardim da casa uma menina mais ou
menos da minha idade, fiquei ansiosa por conhecê-la. Também eu era "criativa". Nessa época, tínhamos uma babá de Lúcia, minha sobrinha, que era alemã.
Perguntei a Fraulein, como se dizia: - "Favor um copo de água". E ela me ensinou a frase em alemão. Devo confessar que, para poder transcrevê-la neste meu relato, recorri a um gentil
recepcionista da escola de idiomas que se situa na Avenida Epitácio Pessoa nº 117. Pedi-lhe que solicitasse à professora de alemão que me escrevesse a famosa frase, cuja pronúncia jamais esqueci.
Cheguei-me ao muro do jardim dos Wisling, com um aceno de mão chamei aa tal menina e disse-lhe: - "Bitte un glas wasser". A menina correu para dentro de casa e voltou equilibrando
um copo com água que eu bebi, mesmo sem estar com sede! E para a minha surpresa, constatei que ela era brasileira e se chamava Edith. Ficou sacramentada nossa amizade, que tornar-se-ia muito estreita com o passar dos anos.
A FAMÍLIA CRESCE
Com o decorrer desta história, muitos nomes ainda aparecerão, uma vez que nossa casa, com tantas moças e rapazes, tornou-se um
ponto de convergência de muitos jovens.
O ano de 1924 decorria normalmente. O movimento revolucionário, chefiado pelo general Isidoro Lopes, foi muito rápido e não chegou a afetar nossa cidade.
Nesse ano aconteceu o primeiro noivado no casarão. Beatriz ficou noiva do dr. Clóvis Galvão de Moura Lacerda, médico que viera de Casa Branca, onde residia sua família, para exercer sua
profissão em nossa cidade. Residia no Parque Balneário Hotel. Como seu pai era falecido, quem foi à nossa casa, para fazer o pedido de casamento, foi um seu amigo, o senhor Luiz Venâncio, pessoa de grande projeção.
Naquela época, os pais não costumavam dar resposta no ato. Papai demorou tanto a dá-la que, certo dia, foi procurado pelo senhor Luiz, a lhe dizer que não viera pedir emprego para o
Clóvis, mas, sim, a mão de Beatriz...
E tudo terminou em festa. Começou a movimentação para o casamento, que seria logo. Seu enxoval foi encomendado em São Paulo, a Mme. Block, especialista no assunto, sempre apresentando
novidades. Lembro-me perfeitamente quando chegaram caixas e mais caixas.
Em janeiro de 1925 realizou-se o casamento com toda pompa! Na sala nobre, foi armado um altar pela Chácara Thaumaturgo, todo ornado de flores. Em todos os
batentes das portas foram colocados cordões de hortênsias.
A grande mesa da sala de jantar foi removida para o jardim de inverno, onde se acomodaram os noivos, pais e padrinhos. Na sala de jantar foi armada uma enorme mesa em forma de "U", para
que os convidados se colocassem ao redor, sendo servidos pelos garçons que ocupavam a parte interna. A recepção foi realizada pelo serviço de bufê do Cassino Miramar, com grande requinte.
Já com seis anos de idade, participei ativamente da festa, mas quando Beatriz e Clóvis partiram para a lua-de-mel, chorei muito. Ela era minha madrinha e, como tal, me dava muita
atenção.
Eu havia me apegado ao Clóvis, que era muito carinhoso comigo. Lembro-me que, um pouco mais crescida, dona de ótimo ouvido, tirava todas as músicas que ouvia, no velho piano Pleyel, até
mesmo os clássicos que minhas irmãs tanto estudavam. E Clóvis me levava sempre em casa de seus amigos e me fazia tocar todo o repertório.
No decorrer de nossa vida, fomos muito dedicados, um ao outro. Sempre o considerei um segundo pai. Até hoje, guardo de Clóvis uma grande saudade.
Mas isso de ser caçula é muito complicado... Já quando Odette casou, eu chorava tanto pela falta dela, que tiveram de levar-me para São Paulo, onde passei alguns dias perturbando a paz
dos recém-casados!
Os Pires começavam a multiplicar-se. Depois do primeiro neto, Francisco Guilherme, que faleceu com dois anos, nasciam em 1925 a Helena, filha de Arnaldo e Sylvia; o José Carlos, filho de
Odette e Gil; e, em novembro, a Lúcia, primogênita de Beatriz e Clóvis.
Quando Lúcia estava com quase dois anos, foram todos para Alemanha, onde Clóvis faria alguns cursos de especialização, no campo da Pediatria. Beatriz, sempre dinâmica, aproveitou a
oportunidade para fazer um curso de Dietética Infantil.
Lúcia aprendeu a falar o alemão e, quando retornaram ao Brasil, não falava uma só palavra de português. Para que Lúcia não esquecesse o idioma, trouxeram uma babá nativa, que permaneceu
falando com ela em alemão. Mas não deu certo. Brincando comigo e Lena, Lúcia aprendeu logo a nossa língua e quando a Fraulein lhe falava em alemão, respondia em português.
Em 1926, pela primeira vez, vi-me diante do espetáculo da morte. Falecia nossa avó materna; jamais esquecerei o desespero da mamãe, que só consegui compreender quando foi sua vez de
partir. Mãe é um tesouro que não se iguala a nada!
A lembrança mais querida que guardei de vovó Mariquinha era de sentar-me num banquinho de vime, onde ela colocava os pés. Pacientemente, ensinava-me a fazer correntinhas com agulha de
crochê.
Os Pires foram sempre muito saudáveis, mas nas pequenas enfermidades, comuns às crianças, eram tratados pela Homeopatia. Os mais velhos receberam assistência por Benedicto José de Souza
Júnior, fundador do Anjo da Guarda.
Já os mais novos, foram tratados pelo seu filho Cícero Augusto de Souza, por quem eu tinha imenso carinho. Sua imagem permanece viva em minha memória e em meu coração. |