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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Anchieta descreve clima e fauna regionais-3

Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo.

Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto, parte de uma palestra de Jorge Americano, "Das atribulações e vicissitudes de José de Anchieta", para a qual o palestrante informa ter se baseado integralmente nas "Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil", publicadas pelo P. Serafim Leite:

[...]

À incansável atividade e aos bons ares atribui Anchieta a sua resistência: "a terra é muito boa, os ares muito sãos, as mezinhas são trabalhos, e tanto melhores quanto mais conformes a Cristo".

Vivendo em tais lidas, em tanta proximidade com os índios, em tamanha intimidade com a natureza, Anchieta se impôs ao julgamento do Padre Manoel da Nóbrega como o homem a quem encarregou de mandar ao Geral dos Jesuítas a notícia das coisas naturais da Capitania de São Vicente.

Espírito curioso, temperamento prático, engenhoso, observador e sagaz, ele não se perde em devaneios. O Sumário da extensíssima carta que Anchieta envia ao Padre Diogo Laines em Roma é apanhado que vale pelo esboço de um tratado de Ecologia.

Sobre a deliberação do P. Manoel da Nóbrega de encarregar Anchieta de escrevê-la, diz o P. Serafim Leite: "Estas novidades das terras novamente descobertas por portugueses e espanhóis, caminho do Oriente e do Ocidente, enchiam de curiosidade e de admiração os países da Europa e chegaram também à cúria generalícia. Uma carta de Roma a Nóbrega manifesta esse espírito e convida a que se escrevam notícias circunstanciadas deste gênero. Ocupado com a direção superior da Companhia no Brasil, Nóbrega incumbiu os Irmãos de redigir as cartas de notícias e edificação; e na capitania de São Vicente o encarregado foi o I. José de Anchieta".

Assim, em 1560, dois meses depois de Nóbrega voltar da Bahia, data Anchieta a carta do último de maio sobre as coisas dessa Companhia de São Vicente, dignas de admiração ou desconhecidas na Europa.

Ao modo dos cientistas da época, José de Anchieta escreve em latim a "Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente".

Nesta carta pouco lhe escapa. Há informações sobre: posição geográfica, declinação do sol, fases da lua. Clima, tanto de beira-mar como do planalto. Estações do ano, calor e frio; tempestades, trovões, ventanias.

Enchentes dos rios, piracema, desova, pesca. Piraiquê, desova dos peixes do mar. O boi-marinho, animal mamífero, sua alimentação. Os caranguejos, hábitos e espécies. O jacaré.

Animais terrestres, seus aspectos e costumes. Capivara, lontra, de que destaca duas espécies, uma delas provavelmente a nútria ou rato-do-mato. Ouriços. Várias espécies de macacos, seus costumes. Tatus. Capivaras. Veados e gamos. Gatos monteses. Javalis. Uma referência à "ovelha selvagem" que há do lado do Peru, a que chamam lhama.

Onças de duas espécies, por cuja descrição se vê que a maior será o jaguar e a menor a sussuarana. O tamanduá, com seu estranho aspecto. A anta ou tapir. A preguiça. O sariguéa, com a bolsa natural para carregar os filhotes.

Trata das aves, suas vozes e costumes. Papagaios de várias espécies, suas migrações. O avestruz ou ema.

O beija-flor, que se alimenta só de orvalho (?) e dizem que dele se gera a borboleta (!).

Um pássaro semelhante ao corvo, e outro que pela descrição parece ser a pomba juriti.

Aves aquáticas, como a guará, que semelha a adem (talvez seja o mergulhão).

A anhima "cujo crito parece o zurrar de um asno".

Galinhas silvestres, ou sejam perdizes; faisões e outras espécies (provavelmente codornas, inambus).

E as aves de rapina, entre as quais descreve uma que pela descrição supõe-se ser o gavião de penacho.

Temos também várias espécies de cobras , das quais descreve a sucuri ou sucuriuba, com minúcia enganosa, talvez porque a referência seja de oitiva. A jararaca, a boicininga (cascavel), a cobra coral e várias outras de dorso pintado, a que chama boirussunga (uma das quais parece ser a mussurana).

Passando aos insetos, há os escorpiões e aranhas venenosas, o vespão que ataca as aranhas, as taturanas que produzem queimaduras, formigas de muitas variedades, içás comestíveis, o bicho-de-taquara, que acreditam gerar borboletas e ratos (?), abelhas que fazem o seu mel em troncos de árvore (mel de pau) e outras que constróem os cortiços nas árvores.

Vêm também as moscas e mosquitos das mais variadas espécies, o marigui que habita à beira do mar (será talvez o borrachudo ou mosquito-pólvora), e tantos outros.

Descreve, na mesma carta, uma tempestade no mar, a nau quebrando-se contra abrolhos, na vinda da Bahia para o Sul; e refere moléstias, mezinhas e outros processos de cura, inclusive a do câncer.

Na botânica, Anchieta menciona raízes comestíveis, como a mandioca e seu preparo, e curativas, tal é a raiz de ipeca, cujo efeito vomitivo refere sem lhe dar o nome; a copaíba, planta balsâmica; a raiz de ieticopê, sapucaias, pinheiros, plantas que vicejam nos mangues onde os peixes vêm depor as ovas; e uma árvore a que chama erva-viva e é, a toda evidência, uma sensitiva.

Refere certa pedra flexível e entra pelo terreno das abusões; a corupira ou currupira, pequeno gênio maligno, ou igupiára, gênio maléfico das águas, o baetatá que se incendeia pondo medo, e não é mais que o fogo-fátuo (N.E.: refere-se o palestrante às lendas de Curupira, da  Hipupiara e do Boitatá).

Convém lembrar a observação que faz de não haver quase deformidades, porque os pais enterram vivos os filhos que nascem defeituosos. E há a curiosa referência a uma discussão sobre a divindade com um pajé.

Essa carta de Anchieta ao Padre Diogo Laines é o mais antigo documento de Ciências Naturais do Brasil, segundo salienta o P. Serafim Leite.

Pena é que omitisse quase tudo quanto há de flores peculiares ao Novo Mundo: espatódias, suinãs, ipês amarelos e roxos e outras acácias, tibuxinas, manacás, flores de cactus, flores aquáticas; e, nas frutas, os cocos, pinhões, bananas, mamão, ananás, jaca, sapoti sapota, carambola, araçá, goiaba, jabuticaba, amora, framboesa.

Mas, por tudo aquilo de que trata, José de Anchieta alcança a consideração de sábios como Jorge Marcgrave, Libstad, Rudolf von Ihering, Olivério Mário de Oliveira Pinto, Lara Ordoñes, Miranda Azevedo, Gabriel Soares e tantos outros.

Assim, na sua vida atribulada e humilde, Anchieta tem a visão do conjunto brasileiro, no litoral desde a Bahia até Peruibe, e do interior, através de informações dos indígenas, por umas 300 milhas.

Socorre Mem de Sá contra os franceses e os tamoios, e anota na memória uma planta de mangue. Combate a antropofagia e observa os costumes dos insetos. Acode uma parturiente e refere árvores e raízes medicinais. Escreve os poemas à Virgem e observa a vida dos caranguejos.

Os naturalistas lhe são devedores. Também os Jesuítas lhe devem muito. E nós, brasileiros, muito mais.

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