A lenda do Hipupiara
Naquele tempo, embora São Vicente fosse a sede ou cabeça da Capitania do mesmo nome, os capitães-mores ou
governadores já residiam em Santos, de onde dirigiam a terra e o povo de sua jurisdição, e isso desde que Brás Cubas o fizera, em seu segundo
governo de 1552.
Entretanto, costumavam os capitães-mores manter na Vila Capital, para atendimentos de rotina
e articulações necessárias, um capitão de sua confiança, por vezes causando complicações que obrigavam o substituto a ir a Santos, por terra, pelo
Caminho de São Jorge, que era o mais curto, ou por água em circuito, seguindo pelo braço do Iriripiranga (atual Casqueiro).
Era o que acontecia em 1564, quando governava a capitania o capitão-mor Pedro Ferras
Barreto, que tinha sede e residência na mesma casa do Conselho ou Senado da Câmara, em Santos, enquanto fazia suas vezes na Vila de São Vicente o
capitão jovem e impetuoso Baltazar Ferreira, filho do nobre Jorge Ferreira, que já fora capitão-mor e ainda o seria, pela segunda vez, pouco tempo
depois.
Baltazar - desde que seu irmão Jerônimo fora aprisionado e comido pelos rudes tamoios de
Maenbipa e Ubatuba, num ataque à Bertioga, ocasião em que ele escapara do mesmo fim pelo heroísmo dos irmãos Braga, e tendo em vista a sua
belicosidade quase irresponsável - fora afastado por seu pai, indo residir em São Vicente, fora das lutas permanentes que o porto grande
representava, de ataque ou defesa. Residia o capitão Baltazar na Casa de Pedra, misto de sede de Governo, fortaleza e cadeia pública onde o
donatário Martim Afonso despachara e residira, de janeiro de 1532 até maio do ano seguinte. Tinha ele uma índia escrava, que pertencia a seu pai mas
estava também na Casa de Pedra, por ser pessoa de extrema confiança. Chamava-se Irecê e o servia em todos os setores domésticos.
Apesar da confiança que merecia, Irecê, por ser escrava e por gostar de um escravo, que
trabalhava numa fazenda do continente fronteiro, e era índio como ela, praticava fugas noturnas, para encontrar-se com seu Andirá, bem avançada a
noite, na Praia da Vila, a salvo dos olhos mexeriqueiros.
Apenas uma índia velha, tida como feiticeira, que vivia ali perto, no morro vizinho, sabia
das suas andanças noturnas e dos encontros com Andirá, e foi ela que um dia lhe fez ver que o capitão Baltazar era um moço bom, amigo dos índios, e
não ia gostar de saber que ela se encontrava com Andirá na calada da noite e que tinha na cabeça a idéia de fugir com ele para as bandas do Sul.
Irecê ficara muito espantada com as palavras da feiticeira, pois não contara a ninguém aquele segredo alimentado em seu íntimo...
A índia velha lhe dissera que era melhor contar o seu caso ao capitão, pedindo que a
ajudasse, que lhe permitisse casar com o seu Andirá. O capitão Baltazar poderia até dar um jeito... Completando o conselho, a índia velha terminava
com um aviso:
- Irecê... os espíritos do mar não gostam disso, não... e, de repente, podem mandar um
castigo pr'a você!
Assim, naquela noite, foi com muito medo que Irecê realizara mais uma das suas fugas
noturnas, para o encontro na beira do mar, parecendo-lhe ver a figura da velha espiando ou um vigilante escondido para prendê-la. Estava resolvida a
contar a Andirá o sucedido e ver o que ele decidia.
A noite estava muito quieta, e um vento brando e morno vinha de longe, da Ponta da Capetuba.
A baía estava mansa como nunca e o céu muito claro. A vila inteira dormia, encarapitada no pequeno outeiro. Irecê já estava na praia e viu à beira
d'água a canoa em que Andirá sempre vinha, mas Andirá mesmo, não estava.
A índia emitiu um piado de pássaro noturno, comum entre eles, mas não teve resposta. Era
estranho, muito estranho. Já ia voltar, cheia de pressentimentos, lembrando-se das palavras da índia velha, e caminhava em direção ao campo de Jundú,
que mediava entre a praia e o outeirinho da Vila, quando ouviu dois urros pavorosos, como de jaguar ferido, e viu em seguida, mal divisado na sombra
do próprio jundú, um vulto enorme, gigantesco, que caminhava esquisitamente, os braços abertos, uma cabeça comprida e desmedida, com uma altura de
quase três metros. Parecia-lhe um "curupira", um fantasma do mar ou das florestas. Parecia tudo menos gente, pelo tamanho e pelos gritos de animal
que dava. Decerto era mesmo o demônio e era o castigo lembrado pela feiticeira...
Irecê, toda em tremores, correu como pôde para a Casa de Pedra. Foi bater à porta do
capitão, embora sabendo que ele dormia. Chorava e gemia alto, para que ele ouvisse, vencendo o medo de um tal ato. Baltazar Ferreira perguntou-lhe o
que queria e não deu importância ao que ela contava apavorada. Gritou por detrás da porta que não fizesse muito barulho, que fosse ver outra vez, e
ver bem, para que ele não se levantasse à toa e não fosse de espada ao encontro de uma invenção. Ai dela se isso acontecesse.
Irecê ficou desesperada e, só então, viu que o capitão não estranhava porque estaria ela
acordada e na praia àquela hora... Tornou a correr ao jundú, mas, por outro lado, saindo pela porta da torre de vigia, na base do outeirinho. Correu
como podia ao jundú; de uma certa distância, viu o fantasma no mesmo ponto e voltou ainda mais depressa, chamando seu senhor, afirmando em voz
lamentosa junto à sua porta, que era bicho horrível e gigantesco. O bicho decerto queria sangue, e ameaçava toda a vila!... Irecê pedia ao capitão
que corresse enquanto era tempo... talvez fosse o demônio... e seria bom chamar os padres do Colégio para esconjurá-lo!...
Irecê perdera o controle de si mesma, desatinava, e Baltazar Ferreira não tivera outro
remédio. Saiu quase como estava, metendo o gibão de qualquer jeito e tomando da espada, que ficava sempre ao alcance de seu braço. A índia caminhou
logo atrás dele.
Quando iam atravessando o grande campo de jundú, ouviram-se novos urros e gritos roucos da
aparição, e logo Batazar Ferreira viu, à pequena distância, o monstro que Irecê descrevera.
- Tu tens razão - disse ele -, é mesmo coisa grande e feia!... Mas vou ver de perto!...
O bicho monstruoso, parecendo adivinhar a intenção de Baltazar, pôs-se a caminhar, gingando
como um bêbado em direção da praia. Com grande resolução, o filho de George [sic: correto é Jorge]
Ferreira, que enfrentara a fúria dos tupinambás na Bertioga ao lado dos Bragas e de seu irmão, embora não pudesse ainda dizer que monstro seria
aquele e sem acreditar muito em demônios e aparições, correu para cercar o estranho animal - que devia ser um gigante marinho, capaz de caminhar
como se estivesse em pé. Desembainhando a espada de guerra, do mais puro aço de Toledo, pôs-se à frente do animal, que parecia, pelo tamanho e pela
grossura, um elefante em forma quase humana, tendo os pés como se fossem barbatanas.
Baltazar Ferreira raciocinou depressa. Já tinha ouvido falar de tais monstros, não no
Brasil, mas na Europa, nas terras frias do Norte. Nunca os vira, pois nascera em Santos, e menos ainda em pé, naquela postura ameaçadora, como ele
estava agora, roncando e dando uivos pavorosos. Segurou com força o copo da pesada espada e deu tremenda estocada à altura do ventre do bicharoco,
atravessando-lhe o corpanzil. O animal fez um movimento furioso com os braços e tombou sobre o capitão vicentino, urrando com mais força e
esguichando sangue.
Rápido e calmo, Baltazar, sem nada ver, pela sangueira quente e grossa que lhe emprestara os
cabelos e descia sobre todo o rosto, saltou para o lado, deixando que o bicho se estatelasse na areia.
Com os gritos de Irecê, que temia pela sorte do amo, já chegavam guardas da Casa de Pedra,
escravos da vizinhança e alguns índios da base do morro. Naquele mesmo instante, corria o jovem capitão o maior perigo do seu estranho combate. O
Hipupiara - que era o nome do monstro marinho, segundo disseram depois os índios, cujo significado era "demônio da água" - recobrara um pouco de
energia e, num último arranco, escancarando a bocarra, entre urros, precipitava-se sobre ele, de surpresa. Baltazar só teve tempo de recuar,
metendo-lhe um golpe sobre a cabeça, mais como defesa, vendo-o então arrastar-se pesadamente, como se quisesse fugir para dentro do mar.
Com a chegada daquele verdadeiro socorro de homens armados, a cena terminou. Vários daqueles
homens foram alcançar o monstruoso animal já nas primeiras maretas, retirando-o das águas como em agonia.
O Hipupiara foi arrastado para a Vila, segundo disseram, e ali ficou exposto até o fim
daquele dia, ao que consta para evitar crendices e superstições exageradas entre o povo.
Conforme o relato de um dos cronistas da época, Baltazar Ferreira "saíra todavia desta
batalha tão sem alento, com a visão deste medonho animal ficara tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai, que era o que lhe havia
acontecido, não lhe pôde responder, e assim como assombrado, sem falar coisa alguma por um grande espaço".
Perdurou por muito tempo, em São Vicente, em Santos e por todo o litoral, a lembrança, mista
de horror, do fantástico Hipupiara. Estrangeiros de vários países exploraram, mais do que os brasileiros, a história do fabuloso animal aparecido
naquele ano de 1564. Ninguém contudo se lembrou de perguntar ou comentar a primeira parte do pequeno drama. Ninguém falou da única vítima presumível
do monstro vicentino, daquele pobre Andirá, que fora causa das fugas noturnas de Irecê, e que nunca mais apareceu, deixando como lembrança, entre o
mistério e o silêncio, aquele vestígio material, a sua pequena canoa e seus pertences, à beira do mar.
Em verdade, ninguém procurou saber se ele morrera - e se fora, como parecia, o primeiro e
único tributo pago pela Vila ao Hipupiara. Somente Irecê, a índia de Baltazar Ferreira, a pobre heroína ocasional daqueles registros aparentemente
lendários, considerou real e chorou a morte assombrada... do seu herói e quase raptor. |