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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Anchieta descreve clima e fauna regionais - 1

Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Epistola Rerum Naturalium do irmão José de Anchieta

Alfredo Gomes

No último de maio de 1560 ("anno Domini 1560 sub finen mensis Maii"), em São Vicente, no Brasil, a derradeira povoação dos Portugueses, na parte Sul ("quae ultima est in India Brasilica vergens ad austrum Lusitanorum habitatio"), Anchieta escreveu notável carta ao P. Diego Laynes, em Roma, Prepósito Geral da Companhia de Jesus ("+Reverendo in Christo Patri Icacobo Laynes, Preaposito Generali Societatis Iesu"). Firmou, como de costume: "Minimus Societatis Iesu", o mínimo, o menor de todos, o último como se há traduzido, comparando-se ao dedo mínimo (minimus digitus, Plaut) da maravilhosa mão atuante da benemérita Companhia de Jesus.

A dita carta, escrita em Latim, foi editada, em texto autógrafo por Serafim Leite, S.A. J., na tiragem especial para o Brasil das Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, III, pp. 202 e ss., saindo, em apêndice, no mesmo volume, em tradução portuguesa, constando igualmente o texto autógrafo latino da Monumenta Brasiliae, III.

Era, porém, texto já conhecido no Brasil, bastando lembrar a publicação nas Cartas de Joseph de Anchieta, feita, em 1933, no Rio de Janeiro, pp. 103-129, de iniciativa de Afrânio Peixoto e anotado por Antônio de Alcântara Machado, que, ao divulgá-la, comentou-lhe a tradução, valendo-se de esclarecimentos científicos obtidos de Afrânio do Amaral, Olivério Mário de Oliveira Pinto e Pio Lourenço Corrêa. Na edição de Serafim Leite (Cartas, III), são conservadas as notas "que pareceram mais expressivas". Mas a primazia cabe a Diogo de Toledo Lara Ordoñez na Coleção de Motivos para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, da Academia Real das Ciências de Lisboa, em 1812.

Examinada a Carta de 31 de maio por técnicos, altamente especializados, à luz de conhecimentos alcançados no século XX, arrepiam-se, por vezes, ante "enormidades em matéria de zoologia", sem estranhá-las, evidentemente, porque o Venerável nunca foi nem pretendeu ser naturalista ou zoólogo, podendo-se contudo aceitá-lo como excelente observador, e até mesmo, bom zoógrafo e não medíocre geógrafo.

O propósito do presente trabalho, ao respigar, parcialmente, o interessante documento, é precisamente chamar a atenção para a atilada capacidade de observação do excepcional Taumaturgo do Brasil.

Anchieta trata das coisas peculiares da terra (scribit de rebus terrae peculiaribus), abrangendo situação, estações do ano, ventos, tempestades, sol, chuva e duração dos dias, o peixe-boi, a pesca, a cobra sucurijuba, lagartos, a capivara (locus, tempora anni, venti, tempestates, sol, pluvia, et dierum spatia, boves marinus, piscatus, angues "sucuriuba", lacerti, animal "capivara" dictum) e, mais, ainda: as lontras (lutrae, a Lontra paranensis Rengger, existente no Brasil-Sul), o caranguejo e a cura do câncer (cancri-animalia, et sanatio a cancro-morbo), as cobras jararaca, cascavel e outras (colubres "iararaca", "cascavel", aliique), aranhas e vermes (araneae et cerucae, aliás Anchieta limita-se às aranhas e a um bicho parecido com a centopéia, a taturana, larva dos lepidópteros), as onças (pantherae), o tamanduá, a anta ("tapira" sive "anta"), a preguiça, o sariguê, os ouriços ("pigritia", "sarigué" et ericius), os macacos (simiae); o tatu, os veados, os gatos selvagens e outros animais ("tatu", cervi, cati silvestres aliaque animalia), os bichos de taquara e outros vermes (vermes arundinum, isto é, vermes de cana, de taquara, as primeiras formas da mariposa Pyralidae-Myelobia smerintha, a larva desta borboleta que se cria no ôco dos bambus, et alii), as formigas formicae, as abelhas, moscas e mosquitos (apes, muscae et culices), os papagaios, o "guará" e outras aves (psittaci, "guará" aliaeque aves), ervas, a mandioca, e outras plantas (herbae et plantae "mandioca", aliaeque), árvores de bálsamo, pinheiros e outras (arbores balsami, pinus et aliae), plantas medicinais (plantae medicinales), pedras e conchas (lapides et conchae), espectros noturnos e demônios (nocturnae imagines et daemonia), e finalmente, o Taumaturgo assinala a inexistência de deformidades entre os índios que quando têm filhos monstros, ou resultados de adultérios, sepultavam-nos vivos (non est deformitas membrorum in Indis, quia filios deformes sepeliunt vivos et etiam adulterino sanguine natos).

1 - Peculiaridades da terra

Escrevendo de S. Vicente, Anchieta dá-lhe a posição: "dista, da Equinocial para o Sul, vinte e três graus e meio, medidos de Nordeste a Sudoeste", explicando que lhe não é fácil precisar "a aproximação e afastamento do Sol, o curso dos astros, a diversa inclinação das sombras, as fases da lua, porque nunca estudei estas coisas", acentuando, inteligentemente, que não vê razão "para que sejam diferentes do que se observa na Europa".

Entretanto, logo anota que é variada a duração das partes do ano "e tão confusas que não se podem distinguir com facilidade nem assinalar tempo determinado à primavera nem ao inverno". "O sol nos seus giros produz uma certa temperatura constante, de maneira que nem o inverno regela com o frio nem o verão é demasiado quente".

As chuvas são constantes, o que, todavia, não afasta períodos de seca, como, também, o excesso pluviométrico, responde por sérios danos: "Em nenhum tempo do ano param as chuvas, e, de quatro em quatro, de três em três ou até de dois em dois dias, se alterna a chuva com o sol. Contudo, há anos em que se fecha o céu e não chove, de forma que, não pela força do calor, que nunca é excessivo, mas por falta de água, secam os campos que não dão os costumados frutos; e algumas vezes chove demais e apodrecem as raízes de que nos alimentamos".

As tempestades chegam a apavorar, a tal ponto que, escreve Anchieta: "nos vemos forçados a recorrer à oração contra os perigos das tempestades e até a sair de casa para escapar à ameaça dela cair".

Estando em hemisfério diverso, logo notou a contrariedade ou oposição das estações: "As estações do ano (olhando de perto) são aqui inteiramente às avessas de lá (Portugal, Europa); no tempo em que lá é primavera cá é inverno e vice-versa; mas são tão temperadas que não faltam no inverno os calores do sol para suavizar o rigor do frio, nem no verão as brandas brisas e as úmidas chuvas para regalo dos sentidos; ainda que esta terra, da beira-mar (S. Vicente), é quase todo o ano regada por águas da chuva. Mas em Piratininga (que fica no interior a trinta milhas daqui - de S. Vicente -, engalanada de campos espaçosos e abertos) e noutros lugares, que se lhe seguem para o ocidente, de tal modo se houve a natureza que quando o dia é mais abrasador com o ardor do sol (cuja maior força é de novembro a março) vem a chuva trazer-lhe refrigério".

E resume: "no tempo da primavera e do verão é muito grande a abundância das chuvas, como a temperar os ardores do sol, de maneira que vêm de manhã antes da força do calor ou à tarde, depois dele. Na primavera, que principia em setembro, e no verão, que começa em dezembro, caem abundantes e freqüentes chuvas com grande tempestade de trovões e relâmpagos. Há então as enchentes dos rios e as grandes inundações dos campos, tempo em que com pouco trabalho se toma entre as ervas grande quantidade de peixes que saem dos leitos dos rios para por os ovos, o que de algum modo compensa o prejuízo da fome que causam as inundações.

"...Assim pois todos os calores do verão se temperam com a abundância de chuvas; mas no inverno (passado o outono, que começa em março numa temperatura intermediária) acabam as chuvas, e a força do frio torna-se mais aguda em junho, julho e agosto, tempo em que vimos com freqüência as geadas espalhadas pelos campos crestarem quase toda a árvore e erva, e a superfície da água coberta de gelo. Então os rios descem e baixam até ao fundo, de maneira que com as mãos se costuma apanhar entre as ervas grande quantidade de peixe".

E, realçando pormenores, conclui suas observações sobre as condições climáticas: "Aos 13 de dezembro, o sol chega a Piratininga completando o seu curso, dia que é o mais comprido, em que não há nenhuma inclinação das sombras, tem 14 horas, e não passa mais para o Sul, mas torna a voltar para o Norte e na sua volta costumam sobrevir os grandes calores e febres agudas que molestam o corpo com dor de ilhargas. O dia 11 de junho é o mais pequeno, em que o Sol está mais longe de nós e dura (como creio) dez horas desde o nascer ao pôr do Sol".

Sintetizando o admirável relato de Anchieta, que diz não poder explicar, com facilidade, os característicos astronômicos, relacionados com a terra, cujos aspectos fixa, tem-se:

a) - estações do ano não distintas, impossibilitando delimitar-lhes o quadro;

b) - certa temperatura constante;

c) - oposição das estações, em relação à Europa;

d) - estações extremas suavizadas em seus rigores (inverno e verão);

e) - maior força do calor, nos meses de novembro a março;

f) - maior força do frio, nos meses de junho, julho e agosto;

g) - início das estações: primavera, em setembro; verão, em dezembro; outono, em março;

h) - chuvas abundantes e freqüentes, na primavera e no verão;

i)  - constância das chuvas, alternando-se, porém, dias de chuva e dias de sol, bem como irregularidades, chuvas em demasia, e secas prolongadas;

j) - dias extremos, de maior duração, 13 de dezembro, de menor duração, 11 de junho;

k) - períodos favoráveis e desfavoráveis à saúde: o de maior calor, verão, desfavorável; e o de temperatura amena ou com tendência para o frio, inverno e primavera.

As estações no hemisfério austral iniciam-se: outono, a 20 de março; inverno, a 21 de junho; primavera, a 23 de setembro; e verão, a 22 de dezembro.

Nas datas do princípio do inverno e do verão  é que, no calendário gregoriano, caem os solstícios de inverno e verão, isto é, aquele tempo em que o Sol, chegado aos trópicos, parece estacionário, até começar a aproximar-se novamente do equador, indicando-se, nas datas referidas, o ponto da órbita terrestre que acusa a maior diferença na duração do dia e da noite.

Anchieta aponta os dias 11 de junho (menor duração) e 13 de dezembro (maior duração) porque estava em vigor o calendário juliano. Com abrogação de 10 dias no mês de outubro (do dia 4 ao dia 15), em obediência à prescrição do papa Gregório XIII, o dia 11 de junho corresponde ao atual dia 21 do mesmo mês, e o dia 13 de dezembro deveria recair no dia 23, havendo, tão somente, a diferença de um dia, aplicado o calendário gregoriano.

Na zona intertropical salientam-se a simplicidade e a uniformidade dos elementos climatéricos, quase confundindo-se clima, como conjunto de condições meteorológicas médias, e o tempo, como conjunto de condições meteorológicas temporárias, registrando-se, como aliás observa o Taumaturgo, certa uniformidade de temperatura, por causa das variações mínimas de insolação durante o ano, da extensão da zona quente, da direção oblíqua dos alísios, da influência moderadora das águas atlânticas, como especifica Julius Hann, citado por Delgado de Carvalho (5ª conferência no Estado Maior do Exército, Physiografia do Brasil, p. 171-172).

A amenidade de temperatura registrada pelo Venerável corresponde ao tipo térmico meridional, pois de S. Paulo para o Sul as condições climáticas enquadram-se nos cimas temperados e tanto o planalto paulista como a planície sulina oferecem temperaturas cujas médias raramente se elevam a 20º C, pertencendo as mais altas aos meses de verão, e as mais baixas, a junho e julho. As referências de Anchieta salientam esta doçura de temperaturas.

Também quanto às chuvas, as observações do Venerável estão mais influenciadas pela permanência em São Paulo, onde o regime pluviométrico apresenta elementos de diferenciação de que a vegetação é reflexo e precipitações inesperadas pela predominância de ventos irregulares e variáveis.

Extraordinária, sem dúvida, é a precisão das informações deste primeiro meteorologista. A título de curiosidade, menciona-se que a média da temperatura, de 1902 a 1917, em São Paulo, foi, anualmente, de 17º5 C, assinalando com os meses mais quentes: dezembro 20º, janeiro 20º5 e fevereiro 20º6; e os mais frios: junho 14º, julho 14º e agosto 15º. Anchieta escreve: "o ardor do Sol (cuja maior força é de novembro a março)" e "a força do frio torna-se mais aguda em junho, julho e agosto"! E São Paulo, antes do surto de concreto armado, não era mui diferente.

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