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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Anchieta descreve clima e fauna regionais-2

Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Epistola Rerum Naturalium  do irmão José de Anchieta

Alfredo Gomes

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Reprodução do teto da sacristia da Catedral de Salvador, na Bahia. Este é considerado o mais antigo retrato do taumaturgo do Brasil. (História da Civilização Paulista, de Aureliano Leite)
Legenda e foto incluídas no livro Anchietana

2 - Fauna

O Taumaturgo, impulsionado pela tendência para observar objetivamente, revela-se respeitável naturalista.

Ao mencionar as enchentes dos rios, e inundações dos campos, "tempo (duas vezes por ano, setembro e dezembro, e às vezes com mais freqüência) em que com pouco trabalho se toma entre as ervas grande quantidade de peixes que saem dos leitos dos rios para por os ovos". É a piracema, esperada "com grande avidez para alívio da fome". "E no verão, quando é maior a inundação dos campos, saem mais abundantes cardumes que se apanham em pequenas redes e até à mão sem nenhum aparelho".

Embora não seja um zoólogo porque, na verdade, faz zoografia, apanha aspectos tão interessantes que só especialista poderia registrar.

Vejam-se os pormenores ictiográficos do curioso mamífero da ordem dos Sirênios, da família dos Triquéquidas, o peixe-boi, iguaraguâ, no apelido dos índios, "freqüente na vila do Espírito Santo e noutras povoações para o Norte, onde não há frio ou é pouco e se faz sentir com menor rigor do que entre nós" (em S. Vicente):

"Muito grande no tamanho, alimenta-se de ervas, como mostram as mesmas ervas pastadas nos rochedos à beira dos mangues. No corpo é maior que o boi, cobre-se de pele dura, parecida na cor à do elefante. Tem no peito dois como braços, com que nada, e em baixo deles as tetas, com que alimenta os filhos. A boca é em tudo igual à do boi. É muito bom para se comer e mal se pode distinguir se é carne ou se antes se deve considerar peixe. A gordura, que está pegada à pele e sobretudo junto da cauda, derretida ao fogo, torna-se líquida e pode-se bem comparar à manteiga; não sei se ainda melhor, e usa-se em vez de azeite para temperar comidas. Todo o corpo é travado de ossos sólidos e duríssimos, que podem fazer às vezes de marfim".

Aí está, com riqueza de pormenores, o retrato de corpo inteiro do Trichechus manatus, outrora Manatus inunguis, da ordem dos Sirênios, família dos Manatideos, entre os indígenas "guarabá", "iuaraná" ou "guaraguá" e "manaí", ou vulgarmente "peixe-boi". O exemplar desses animais disformes, de corpo quase fusiforme, cabeça de bezerro, olhos pequenos e cauda achatada, é uma fêmea, como se conclui da descrição, em que as duas tetas peitorais são muito desenvolvidas.

Interessante é, também, a descrição da piracema que, na mesma carta, aparece grafada como pirâiquê, significando que os índios aplicavam a primeira palavra para especificar "saída dos peixes", saída dos leitos dos rios a fim de pôr os ovos nas áreas inundadas, quando da estação de chuvas; e a segunda, para referir a "entrada dos peixes" do mar nos esteiros, estreitos e de pouco fundo, igualmente para pôr os ovos. Alguns peixes vasculham, inspecionando a área, e orientam o cardume que acaba entrando pelas estreitas bocas do sítio, cercado "só com uma estreita entrada livre, o que é fácil de fazer por ser água de pouco fundo, onde encurralado e embriagado com o suco dum pau, que os índios chamam timbó, são apanhados, sem trabalho algum, às vezes mais de doze mil peixes grandes". E peixes bons que se "podem comer todo o ano até na doença, sem mal para a saúde, e sem perigo de sarna, que aqui não há".

As cobras sempre lhe mereceram atenção. Com exagero, diz que um Irmão tomou como mastro de navio uma cobra que viu a nadar. Trata-se da sucuri-júba, a sucurí juba, no Norte, a sucuriú e sucuriju na Amazônia ou boiuçú, a Eunectes murinus da família dos Boideos, a maior das serpentes do mundo, que só tem como rival a Python reticulatus das ilhas Sumatra e Bornéus; que chega a alcançar 10 metros de comprimento.

Essa cobra, diz Anchieta, engole "um veado inteiro e ainda maiores animais" e o tapir ou anta, "animal parecido com a mula". O exagero, oriundo da ingênua narração dos índios, na afirmação de que a sucuri não podendo digerir a anta, fica como morta, do que se aproveitam as aves de rapina para lhe rasgar o ventre, devorando-o com o que tem, salienta-se nestas palavras: "Depois, a cobra, informe e meio devorada, começa a refazer-se, crescem as carnes, recobre-a a pele, e volta à antiga forma..."

As cobras venenosas são temidas: a jararaca, "cuja mordedura mata no espaço de vinte e quatro horas, ainda que às vezes aplicando-se-lhe remédio se escapa à morte; a boicininga, "cobra que soa", "que tem na cauda um cascavél" - guiso -, a cascavél, chamada, ainda, pelos índios mboiquira, da família dos Viperídeos, Crotalus terrificus, que reclama o soro polivalente ou, o mais acertado, o anti-crotálico", nas mordeduras, que Anchieta escreve: "Quando mordem, acabou-se: paralisam o ouvido, a vista, o andar e todos os movimentos, só ficam a dor e o sentimento do veneno difundido por todo o corpo até que no espaço de vinte e quatro horas se expira".

Não só estas, como a ibibobóca, de hábitos subterrâneos, donde lhe vem o nome "terra cavada", coral negra, branca e vermelha, Micrurus lemniscatus; a boiquatiára, "cobra pintada", a Bothrops cotiara, grafada, ainda como boicoatiara e coatiara, da mesma família da cascavel, mais ou menos igual à urutú; a boipeba, "cobra chata" boi-peva, mboi-peva, ou, também, "jararacámbeva", Xenodon merremi, da família Colubrideos; a bóiroiçánga, "cobra fria", cuja "mordedura causa grande frio no corpo", e a boiquiba, que quer dizer "pés pequenos de cobra", de cor vermelha, "pouco maiores do que pequenas aranhas", "com duas cabeças como os caranguejos, cauda recurvada, na qual há uma unha adunca com que picam", causando dor agudíssima pelo espaço de vinte e quatro horas. Cobras que parecem não ser cobras e sim escorpiões, cujas duas cabeças devem ser as pinças ou tentáculos, ou, conforme Afrânio do Amaral, lacraias ou escolopendras.

Anchieta não esquece as aranhas que parecem caranguejos, em inumerável quantidade, todas peludas, havendo-as "meio ruivas, de cor da terra, de cor de pez, horríveis de ver que só vê-las parece que traz peçonha". Além destas aranhas caranguejeiras, há outras que "cheiram muito mal, e de natureza muito fria, que não saem fora da morada senão com sol abrasador". Aproveitadas pelas mulheres indígenas para fazer bebidas envenenadas, cujo antídoto é o vinho.

Após as cobras e aranhas, as taturanas, tatorana, tataurana, suçuarana, ou lagarta do fogo (tataurã, verme do fogo, tatá, fogo, rãna, que parece ser), (bicho parecido com a centopéia, todo recoberto de pelos, desagradável à vista e de vários gêneros, diferem entre si na cor e no nome, todos de igual forma, "produzindo grande dor quando tocam no corpo").

São as lagartas de mariposas, com pelos ou cerdas canaliculadas que injetam veneno para o qual não se conhece lenitivo mas que cede gradativamente, podendo, todavia, provocar graves intoxicações (saliva sanguinea, hematúria etc.). E com estas, outra de que Gabriel Soares de Souza (Tratado descritivo do Brasil 315-316, 373; 1587) diz e Paulo Prado (Retrato do Brasil, p. 35) cita: "há muitos (índios) que lhe (ao membro genital) costumam pôr o pelo de um bicho tão peçonhento que lh'o faz logo inchar, com o que tem grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão gastando, por espaço de tempo; com o que se lhe faz o cano tão disforme de grosso - que os não podem as mulheres esperar, nem sofrer".

O Taumaturgo refere-se a este bicho, de pelos compridos e negros e de cabeça vermelha, "pelos venenosos que provocam a sensualidade", esclarecendo: "Os índios costumam aplicá-los aos órgãos genitais, que se excitam em veemente e ardente luxúria e incham, e três dias depois apodrecem. Donde se segue muitas vezes que o prepúcio se fura em diversos pontos, e algumas vezes os próprios membros viris se corrompem incuravelmente, e não só se deformam por tão feia doença, mas também mancham e infeccionam as mulheres com quem têm relações". O bicho não é outro senão a lagarta socaúna da família Megalopygideos, lagartas cabeludas, urticantes, com "denso revestimento de pelos, finíssimos, e do meio dos quais surgem as verdadeiras agulhas injetoras de veneno", na explicação de Ihering (Dicionário dos Animais do Brasil).

Após estes animais peçonhentos, outros habitantes fluviais, descritos pelo Venerável, são os "lagartos" a que os índios chamam jacaré, de tão grande corpulência, que podem engolir um homem, cobertos de duríssimas escamas e armados de agudíssimos dentes". O jacaré aqui, não é lagarto, pois o que pertence à família, com jeito de jacaré, é o jacarérana (em tupi: parecido - rana - com jacaré), Tejideo, Crocodilurus lacertinus que atinge apenas a meio metro de comprimento, inclusive a cauda com cerca da metade do tamanho. Este espécime, embora vivendo à beira dos rios, e fazendo a toca nas ribanceiras, Anchieta não teria conhecido porque é próprio da Amazônia.

Rodolfo Garcia crê que o jacaré citado é o do papo amarelo, "mais comum da Bahia para o Sul", segundo nota na obra de Serafim Leite (Cartas, III, p. 215), mas Anchieta, perspicaz observador e não menos minudente nas descrições, teria salientado o pormenor, se se tratasse do Caiman latirosis, cujo habitat está nas bacias franciscana e platina, e nos rios intermediários da vertente do Atlântico.

O jacaré, quer do gênero Caiman, com crista dupla nos 12 a 14 primeiros segmentos, quer o Jacarétinga, com crista dupla, porém, nos 10 ou 11 primeiros segmentos, todos répteis Emydossaurios, família Crocodilideos, ambos existentes no Brasil, o jacaré é mais comum na bacia amazônica em que existem várias espécies: jacaré-assu (Caiman niger), jacaré coroa (jacaretinga coronatus). Provavelmente, se não for o jacaré de papo amarelo, poderá ser o jacaretinga palpebrosus, comum no Brasil meridional.

Quanto aos gêneros de caranguejos, são tantos e tão numerosos que Anchieta evita mencioná-los em "suas variedades e diversas formas", excluindo, desde logo, os terrestres "que vivem em cavernas subterrâneas que eles para si mesmos cavam, e que por toda a parte em grande número e não somente aqui, se encontram, de cor esverdeada, e muito maiores que os aquáticos".

Na verdade, a maior parte pertence a gêneros marinhos, não sendo tantos os crustáceos de cinco pares de pernas (decapodes brachyuros) que vivem também na água doce. O caranguejo do rio (trichodactylideos) assemelha-se muito ao do mar e os indígenas chamam-no "guaiaúna" que aos do mar dão as denominações genéricas de guaiamu, guaiá, grauçá, santola, espia-maré, siri etc., sendo, destes, o guaiamu e o uca cordata, os maiores.

Escreve Anchieta: "Dos aquáticos, uns vivem sempre dentro da água, aos quais a natureza deu os braços de trás espalmados, próprios para nadar; outros abrem cavidades nos esteiros, e parte destes têm pernas vermelhas e corpo negro, parte tiram à cor azulada e têm pelos, e parte possuem uma cabeça quase igual a todo o corpo e outra cabeça em proporção do corpo". Agradável descrição literária para apresentar os feios crustáceos de abdômen dobrado por baixo do cefalotórax.

Uma das menções interessantíssimas é a que se refere ao câncer, confundindo o patológico (neoplasmas malignos chamados epiteliomas, sarcomas, carcinomas, que abrange, sinonimamente, a diversos tumores malignos) com outras afecções, neoformações sifilíticas etc., curáveis com alguns medicamentos eficazes. Anchieta após declarar que, na Europa ("lá") é difícil de curar, dá a receita usada pelos índios: "do barro, de que fazem vasilhas, aquecem ao fogo um pouco, bem amassado, e, tão quente quanto a carne o possa suportar, aplicam-no aos braços do cancro, que pouco a pouco morrem; e repetem isto tantas vezes até que, mortas as pernas e o corpo, o cancro desprende-se e cai por si".

Entre os animais que vivem na água, ainda, Anchieta relaciona as lontras que parecem identificar-sae com a Lutra paranensis, carnívoro da família Mustelideos, ou, provavelmente, com as ariranhas, da mesma família, porém do gênero Pteronura brasiliensis, maiores que as lontras (1,00 m estas; e 2,40 m, aquelas, ambas, com quase um terço pertencendo à cauda).

O Taumaturgo limita-se a dizer que "das suas peles, de pelos muito macios, fazem-se cintos" e a indicar que vivem em bandos, são "animais de cor quase negra, são pouco maiores que os gatos, munidos de agudíssimos dentes e unha".
Este último elemento, do tamanho um pouco maior que o gato, aplica-se mais à lontra que à ariranha, salvo a referência que, no mesmo item da Carta, Anchieta faz a "outros animais quase do mesmo gênero, mas de diverso nome entre os índios, que se prestam ao mesmo uso", isto é, do aproveitamento das peles. Serafim Leite, apoiado em Olivério Mário e Friederici (Amerikanistisches Wörterbuch), nas notas às Cartas (III, 214) fica pela probabilidade de serem tais animalia ratões do banhado ou nútrias. Mas, o ratão do banhado não é do mesmo grupo e família.

Tanto a lontra como a ariranha são Mustalideos, ao passo que o ratão do banhado é um roedor do grupo dos Histricomorphos, família Octodontideos, Myocastor coypus. Assemelha-se a enorme rato, o que não teria passado despercebido de Anchieta, aproximando-se da cotia, pelo tamanho, de pernas baixas e rabo de rato (44 a 55 cm). Se a cor é preta, o que condiz com a cor pardo-cinzenta, um pouco amarelada em baixo, da lontra, e com a da ariranha que é da mesma cor desta, porém de barriga menos clara, os animais descritos são "de cor quase negra", podendo-se resumir que se trate das mesmas lontras.

A palavra hispano-americana nútria, com que se denominavam no Sul a ariranha e a lontra, foi aplicada ao "ratão do banhado", com fins comerciais para passar a pele deste, inferior, pela pele daquela, mais delicada e macia.

Dos bichos "que vivem na terra, há-os que são desconhecidos nessa parte do mundo" (a Europa), escreve o Venerável, e passa, logo, a relacionar onças, tamanduás, tapires, preguiças, sariguéas, macacos, tatus, bichos de taquara, formigas abelhas, moscas e mosquitos, papagaios, emas e outras aves.

São duas as variedades de onças que Anchieta destaca: "...umas cor de veado, mais pequenas e mais cruéis", a onça parda (felis concolor), onça vermelha ou sussuarana, felino unicolor, de 1,20 de corpo, 65 cm de cauda, pêlo curto, alongado na barriga, amarelo-vermelho queimado, mais escuro no dorso, amarelo-claro no ventre, branquicentos o peito, a garganta e o lado interno das extremidades, com mancha escura nos olhos. A ferocidade, a que o Venerável se refere, considerando-as "mais cruéis", está no fato de que, embora menos atrevida que a pintada, aprecia animais de porte médio (macacos, cabras, ovelhas) e gosta excessivamente do sangue, fazendo estragos vultosos para ingerir o sangue dos animais abatidos em grande número.

..."outras malhadas e pintadas de diversas cores, que são as mais freqüentes em toda a parte, e estas, ao menos os machos, são maiores que os maiores carneiros, porque as fêmeas são mais pequenas, em tudo semelhantes aos gatos". Estas são as pintadas (Felideos, Felis onsa), também conhecidas por canguçu, jaguar, jaguareté, jaguara-pinima (jaguara, felino, pinima, pintado, malhado), de 1,20 m de comprimento, 60 cm de cauda, e altura maior que a parda (60 a 65 cm nesta, e 80 a 85 na pintada), umas de colorido amarelo-ruivo e rosetas pretas nos lados, em cujo centro há pequena mancha preta, sendo irregular, em outras, a distribuição das manchas, a cauda com anéis pretos e a ponta preta, existindo, porém, onças de colorido escuro, quase preto, a ponto de não se conseguir destacar os contornos das rosetas.

Diz Anchieta: "Em geral são medrosas e acometem pelas costas, mas têm tanto força que com um golpe das unhas dilaceram, o que tomam". Estas onças preferem porcos do mato, que não estejam reunidos em vara, capivaras ou veados, e só em caso de não encontrar a caça desejada, atiram-se ao gado, dificilmente atacando o homem. Ihering (Dicionário dos Animais do Brasil, p. 553) registra o fato de um belo espécime paraguaio que, com a primeira dentada, triturou duas vértebras da onça fêmea, sua companheira, no Jardim Zoológico de Nova Iorque, matando-a instantaneamente, "como se lhe talhassem o pescoço a machado".

Destes animais bravios, escreve Anchieta cautelosamente: "Há outros animais (querem que sejam leões) igualmente ferozes, mas mais raros". Informação recebida de alguém (índio, irmão, padre ou qualquer vizinho branco), que ficou na breve menção.

Já não ocorre o mesmo com o tamanduá, que merece do Venerável pormenorizada descrição, pois teve exemplares à mão, como se deduz do item alusivo:

"...outro animal de feio aspecto, que os índios chamam tamanduá, de corpo maior que um cão grande; mas, curto de pernas, pouco se ergue do chão, e por isso é vagaroso, e o homem pode alcançá-lo na carreira. As suas cerdas (negras, entremeadas de cinzentas) são muito mais arrepiadas e compridas que as do porco, sobretudo na cauda, provida de longas cerdas dispostas uma de cima para baixo e outras transversalmente, com a qual recebe e repele o golpe das armas. Recobre-se de pele dura, que as flechas não penetram com facilidade: a do ventre é mais mole. O pescoço é comprido e fino, a cabeça pequena muito desproporcionada ao tamanho do corpo, a boca redonda, da medida de um ou quando muito dois anéis, a língua estirada com três palmos de comprido na porção que pode deitar fora, sem contar a que fica dentro (que eu medi); e deitando-a de fora, costuma-a estender nas covas das formigas, e, assim que estas a enchem inteiramente, a recolhe para dentro da boca. E este é o seu ordinário comer. Admira que tão grande animal se sustente com tão pequeno alimento. Tem braços muito forte e grossos, quase iguais à coxa do homem, armados de unhas duríssimas, uma das quais muito excede em comprimento as de todas as demais feras. Não faz mal a ninguém a não ser em defesa própria. Quando as outras feras o atacam, senta-se e de braços erguidos espera o ataque e com um só golpe penetra as entranhas e mata".

O espécime tão bem descrito, deste caçador de formigas (ta, contração de tací, formiga, e monduar, caçador),  deve ser o tamanduá-açú ou tamanduá-bandeira, ainda, tamanduá-cavalo ou iurumi (Myrmecophaga jubata), cuja cabeça mede 26 cm, o corpo 94 e a cauda com igual comprimento, de colorido cinzento escuro, uma zona preta e uma lista branca do pescoço ao peito, a língua de 30 a 40 cm, quase dois palmos, a que o Venerável junta mais um palmo, baseado na sua mão que devia ter 10 cm, ou exceder de pouco, quando aberta formando o palmo.

Além destes, totalmente desdentados, Anchieta cita dois outros membros de famílias da mesma ordem: o tatu (Dasypodideos) e a preguiça (Bradypodideos), desdentados que não o são inteiramente, mas, assim chamados pela estrutura especial dos dentes, sem esmalte e raiz e sem substituição da dentição.

Do tatu, narra Anchieta o hábito subterrâneo, sumária descrição do corpo couraçado, e a melhor maneira de o pegar quando procura abrigar-se na sua toca: apanhar-lhe uma perna e puxá-lo.

Da preguiça, "" e "aíg", entre os indígenas, traça mui fiel, acentuando-lhe a fleuma, de que é responsável a massa encefálica carente de circunvoluções, mostrando-se, contudo, ativa diante do perigo, como quando se vê forçada a nadar. "Tem o corpo grande, de cor cinzenta, cara que se assemelha a um tanto a rosto de mulher". Revela um pormenor que devia ser prática entre os índios para arrancá-la dos troncos de árvores, a que se aferra com suas fortíssimas garras: "não é possível arrancá-lo (o animal preguiça) senão cortando-lhe os braços", violência que pouca dor haveria de causar à preguiça em face de sua constituição.

A anta foi tomada pelos primeiros povoadores portugueses como um cervídeo sem galhada existente em África. É, também, mamífero ungulado, mas de família distinta (Tapirideos, Tapirus americanus). Anchieta esclarece: "os índios chamam tapiíra, os hispânicos anta e os latinos, segundo creio, alce". Esta última palavra era usada, no Norte da Europa, para os veados de grande porte, que, no Brasil, só poderia caber ao veado galheiro, suaçuapara ou cervo (Hippocamelus, ou Dorcelaphus, dichotomus, que chega a 2 metros de comprimento e 1,30 m de altura). A anta possui o mesmo comprimento, porém é de menor altura (1 m), chegando a pesar cerca de 200 quilos, aproveitando-se, além da carne que se assemelha à da vaca, como testemunha Jácome Monteiro (Relação da Província do Brasil, 1610, citado por Serafim Leite [Cartas, III, 222]), o couro com que os índios faziam "rodelas", na menção e Anchieta, ou as adargas, conforme Fernão Cardim (Tratados da Terra e da Gente do Brasil, 37 apud. S.L., idem, 222).

A descrição feita pelo Taumaturgo é precisa: "Animal parecido com a mula, um pouco mais curto de pernas, tem as patas fendidas em três pontas, muito proeminente o beiço superior, cor intermediária entre o camelo e o veado, a pender para preta; um músculo levanta-se no lugar das crinas, pelo cachaço, desde a cruz até a cabeça, na qual erguendo-se um pouco mais, arma a testa e abre caminho no cerrado dos matos, apartando os paus dum lado e outro. Tem a cauda muito curta, sem nenhumas cerdas, e a sua voz é um grande silvo. De dia dorme e repousa, e de noite corre duma banda para a outra a nutrir-se de diversos frutos de árvores, e se faltam, come as cascas. Quando os cães o perseguem, repele-os a dentadas e coices, ou atira-se aos rios e fica muito tempo escondido debaixo de água, e por isso vive de preferência perto dos rios, em cujas ribanceiras costuma escavar a terra e mastigar barro". Na realidade, a anta pasta e come frutos do mato, aventurando-se pelas roças em procura de alimento, o que não tira os foros de verdade no registro de Anchieta ao lhe apontar o hábito de fuçar os barreiros.

Assinala Anchieta "dois gêneros" de veados, os armados de chifres, mais raros, "como os da nossa terra" (Portugal, Espanha?), "outros, brancos, sem chifres".

Os primeiros são os veados galheiros, suaçupara (veado torto, por causa da armação), ou cervo (Hippocamelus, ou Dorcelaphus, dichotomus), os maiores da América do Sul, e os segundos os veados pardos, mateiros ou suaçupitanga, ou ainda guatapará (Mazama americana), cuja armação não vai além de 12 cm. Está certo Anchieta, porque, embora existam 7 espécies de cervídeos, no Brasil, são diferenciados em dois grupos, tal como fez o Taumaturgo: veados com galhadas desenvolvidas ("galheiro" e "campeiro do norte") e veados de armação simples ("pardo", "camocica", "virá" e "foboca").

Todavia, o veado branco que o Venerável menciona não é propriamente o de menor armação, salvo comparando com o galheiro, pois o "veado branco" que, realmente, prefere os descampados e não entra nos matos, está catalogado entre os de armação desenvolvida, no máximo ramificada com três pontas medindo até 25 cm. O veado pardo de armação singela (12 cm no máximo) é de colorido castanho-ferrugíneo, tendo a garganta mais clara, assim como a cauda também apresenta pêlos brancos em baixo. Mas é este veado pardo, apontado como o citado por Anchieta, segundo Serafim Leite, citando Jácome Monteiro (Cartas, III, 224).

Numerosos outros animais são relacionados pelo Taumaturgo: gatos monteses que devem corresponder aos maracajás, do gênero Felis mas espécies menores (até 1 m), as jaguatiricas (gato do mato grande, que também é maracajá), os gatos mouriscos, os dos pampas, e tantos mais porque variadas são as espécies (wiedi, tigrina, geoffroyi, pajeros yaguarundi, pardalis); gamos velozes, gamos que se identificam como os veados brancos (os campeiros); mais uma razão para se admitir que os veados brancos, por primeiro mencionados, são os pardos); porcos bravos (monteses, para Jácome Monteiro, os porcos do mato, Ungulados Artiodactilos, não ruminantes da família Suideos, o caitetú e a queixada).

Do aproveitamento destes animais descritos ou simplesmente registrados em sua Carta, Anchieta, além dos peixes e do peixe-boi de que tudo se aproveita, salienta as carnes dos lagartos "próprias para comer, cheiram a almiscar, em particular nos testículos, onde sobretudo está a força do cheiro"; das cobras: "os índios, cortada a cabeça, torram ao fogo e comem, nem poupam os sapos, lagartos, ratos e outros deste jaez"; os tamanduás: "é muito bom para comer, dir-se-ia carne de vaca, se não fossem carnes menos substanciosas", mas Jácome Monteiro diz que os índios não os comem com receio de "herdarem" a incapacidade para correr, e Alcântara Machado anota: "Na realidade é péssima a carne"; dos tatus: "é de sabor bastante agradável". E se de outras não trata é porque o uso comum dispensa atenção.

Causou-lhe, contudo, certa impressão o fato de os índios comerem as larvas de inseto que se "criam em canas", "uns bichos roliços e alongados, todos brancos, da grossura dum dedo, que os índios chamam rahú e costumam comer assados e torrados. E há-os em tanta quantidade que um deles se faz banha semelhante à do porco, e servem para amolecer o coiro e para comer". São os bichos de taquara, lagartas da mariposas Myelobia, que os índios comiam fritas ou aproveitavam a gordura, excluídos a cabeça e os intestinos, porque lhes atribuíam a causa de tontura ou embriaguês semelhantes à do ópio.

Escreve Rodolpho von Ihering que "não pode, naturalmente, o naturalista concordar com o seguinte trecho do Apóstolo dos Brasil: 'Destes uns se transformam em borboletas, outros viram ratos...'" Mas, naturalmente, o naturalista serviu-se de fonte menos exata ou citou sem ter o texto diante dos olhos, pois o que Anchieta escreveu foi "ex his alii papiliones fiunt, alii exeunt in mures, qui sub ipsis arundinibus sibi domos construunt, alii autem in erucas, quae corodunt herbas, convertuntur". No idioma pátrio: "destes bichos (vermes) uns se fazem borboletas, uns saem ratos que sob as mesmas canas constróem suas casas (ninhos) e uns se transformam em bichos (lagartas) que devoram as ervas". Não será forçado frisar que apenas quando se refere a borboletas e a lagartas, Anchieta emprega os verbos correspondentes, pois é exato que os bichos de taquara designam larvas de insetos, várias espécies de lagartas, formas imaturas de mariposas.

Quanto a virarem ratos, o caso parece diferente porque a citação de Ihering não está completa, faltando o restante da sentença "que fazem os ninhos debaixo das mesmas canas", e porque emprega uma forma verbal (exeunt) do verbo exeo, com a acepção de sair, andar fora, vir para fora, ou sair, além de outras significações que não se confundem com "virar", nascer, transformar-se, conforme ampla exemplificação clássica (exire ex navi, Cic.; exire ab aliquo, Ter.; exire in proelium, Liv, exire e patritiis, Cic.; vim viribus exit, Virg; exire in altitudinem, Pli.; exire in aliquem, Stat).

Em se considerando que o volume de lagartas nos taquarais é responsável pelo florescimento de colmos, a grande quantidade de sementes constitui excelente meio para a proliferação de ratos do mato, inclusive o chamado "rato de taquara", o que leva à confusão. Anchieta prudentemente registrou a informação sem precisar positivamente a transformação de bichos de taquara em ratos de taquara por associação de idéias como "inexperiente observador", como quer Ihering (Dicionário, p. 152).

Ainda, há a ressaltar a construção sintática da frase alii exeunt in mures, onde, empregado verbo de movimento, a preposição in rege caso acusativo, mures, com a signifcação de entre, o que autoriza a tradução, no vernáculo, de "uns (uns bichos, umas lagartas) saem entre os ratos" e não, como registrou Ihering, ao traduzir, ou copiar, "saem ratos" (Cartas, X, 1933, p. 121; Cartas, III, 1958, apêndice I), com o sentido de "transformarem-se em ratos".

Mesmo que Anchieta, mencionando a "saída dos ratos" entre as larvas que se fazem borboletas e as que se transformam em mariposas (as primeiras, Lepidopteros Ropaloceros ou seja, de hábitos diurnos, e antena clavada; e as segundas Heteroceros ou crepusculares, de antenas filiformes ou pectinadas etc.) cometesse falta, cientificamente anatematizada, não lhe caberia balda de "inexperiente observador", com que foi aquinhoado por Ihering.

Nenhum escritor, ou simples redator de cartas e informações, dos nossos primórdios, superou o Taumaturgo na atilada e objetiva perspicácia com que viu e sentiu as coisas brasílicas que foi dominado, na preocupação de informar, pela predominante pedagógica.

De toda a produção, literária ou não, Anchieta fez mensagem. Em qualquer setor, campo ou domínio, essa é a constante anchietana, vinda de sua formação cultural e espiritual. A catequese - o maior propósito da Companhia de Jesus -, foi a grande aspiração. Anchieta nunca deixou de ser catequista. Quer como missionário dedicado à conquista das almas indígenas, quer ao dar conteúdo às manifestações literárias ou ao se limitar ao simples registro das impressões do que havia na Terra, à qual se afeiçoou com tanto interesse e amor!

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