Curupiras, Igpuiaras e Boitatás
Imagem de Maria Rosa Rodrigues, publicada no livro
Cubatão e as manifestações dos íncolas
Há muito os íncolas já utilizavam Cubatão como ponto de
ligação entre o litoral e o planalto. Esses índios que por aqui passavam deixaram-nos lendas que ainda hoje subsistem. Eram tribos que se espalhavam
pela Serra do Paranapiacaba até o Planalto, foram os primeiros habitantes da hoje Cidade de Cubatão, e José de Anchieta, em meados do século XVI, já
descrevia alguns aspectos folclóricos dessa civilização.
Em um documento datado de 1560 (N.A.: citado Luiz da
Câmara Cascudo: Antologia do Folclore Brasileiro, Ed. Martins, S. Paulo), José de Anchieta conta: "Havia
espectros noturnos ou antes demônios, os quais costumam os índios aterrar-se..."
Fala do Curupira, demônio que aterrorizava os íncolas na mata. Ainda conta:
"É cousa sabida pela boca de todos, corre que há certos demônios, a quem no Brasil
chamam Curupira, que acometem aos índios no mato, dão-lhe açoites, machucam-nos e matam-nos. São testemunhas disto os nossos irmãos, que viram
algumas vezes, os mortos, por eles. Por isso, costumavam os índios deixar em certos caminhos que por ásperas brenhas vão ter ao interior da terra,
no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes como uma espécie de oblação,
rogando fervorosamente aos Curupiras que não lhes façam mal".
Em suas observações dos espectros, das crenças íncolas, Anchieta continua:
"Há também nos rios outros fantasmas a quem chamam Igpuiára, isto é, que moram n'água,
que matam de medo aos índios. Não longe de nós há um rio habitado por cristãos e que os índios atravessaram outrora com pequenas canoas, que fazem
de um só tronco ou de cortiça, onde eram muitos afogados por eles antes que os cristãos para lá fossem".
Anchieta falava do Rio Cubatão, como hoje é chamado.
O Boitatá, demônio da floresta segundo a crença cabocla, também foi registrado pelo
jesuíta:
"Há também outros, máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e
dos rios e são chamados Baetatá, que quer dizer Cousa de Fogo. Não se vê outra coisa senão um facho cintilante correndo daqui para ali, acomete aos
índios e mata-os, como os Curupiras, o que seja isso, ainda não se sabe com certeza".
Não muito tempo ouvia-se dizer que o Boitatá (como o chamam agora) fora visto correndo
pelos bananais dos sítios de Piaçagüera, aterrorizando os bananeiros sitiantes. Esse fato foi narrado por um popular local, que diz também ter visto
o demônio de fogo.
Em seu documento, Anchieta termina dizendo:
"Há também outros espectros do mesmo modo pavoroso que não só assaltam os índios, como
lhes causam dano, o que não admira, quando por estes e outros meios semelhantes, que longo fora enumerar, que o demônio torna-se formidável a estes
Brasis, que não conhecem a Deus, a exercer contra eles tão cruel tirania".
Apenas como lembrete, saliento que em línguas nativas a palavra arte - enquanto
categoria geral da estética - não tem eqüivalente; daí a dificuldade de caracterizar na cultura íncola a manifestação do folclore ou ainda da arte
popular. O que ocorre nas citações acima é a miscigenação da cultura íncola à cultura lusitana, resultando assim a criação de novos símbolos e
conseqüentemente uma nova interpretação do comportamento íncola dentro da concepção folclórica estabelecida no conceito ocidental herdado de berço
europeu.
Apesar de haver em línguas nativas várias palavras para designarem todos os tipos de
artesanato, habilidades e comportamentos que unificam-se sob o nome de "arte indígena", a idéia de uma arte dos povos ditos primitivos é uma
criação dos antropólogos influenciados por filósofos da arte. Sob essa denominação estão reunidas danças rituais, cerâmica, música, pintura e
enfeite corporal, fábulas, artefatos mágico-cerimoniais e objetos de uso diário. E ainda, o motivo principal que leva esses povos a criar e consumir
coisas artísticas raramente é o prazer estético, em geral é de ordem mágica, utilitária ou educativa.
Estudos antropológicos de tais comportamentos e artefatos íncolas organizados
esteticamente revelaram-nos as artes esquecidas por civilização nossa. É o caso da pintura corporal, ou dos arranjos de penas, há poucas décadas
considerados brinquedos de "povos infantis". Essas artes não se fundiram significativamente com as européias e africanas, formadoras de nossa
tradição artística (de nossa raiz cultural folclórica). |