A carrocinha dos cachorros
(uma reminiscência santista)
Francisco Martins dos Santos (*)
Um caso curioso, ocorrido há dias, em plena rua Euclides da
Cunha, deu origem a esta reminiscência. Um cão enorme, raçado de fila, de latido grosso, reconhecido terror dos cães menores da vizinhança,
ao ser assediado pelos laçadores da "Apreensão de Animais", nem esperou ser laçado, caminhou e saltou ele mesmo, espontaneamente, para dentro da
célebre "Carrocinha", entre o espanto dos laçadores, que tiveram a "fraqueza" de o considerarem laçado, e as gargalhadas críticas dos
circunstantes...
Estarão decadentes também os cães?
Ela e eles eram assim...
Ilustração de Máximo Azevedo Marques, publicada com essa legenda, com a matéria original
Vieux temps!
Como diria o nosso Fontes: os olhos no passado...
Oh Santos do Camarinha, do Santos Alfaiate, do Santos Botija, do
João Burro, do Dois contos e quinhentos, de tantos tipos de rua!... Santos pitoresca do
bondinho de burro, do entrudo, dos Democráticos, dos Fenianos, dos
Tenentes do Diabo, do velho XV, do Bar Chic, do Culty, do Pathé! Quanta
saudade para os daquele tempo!... Como já vão longe, aqueles dias, aquela gente, e aquelas coisas!...
Foi no princípio do século (N.E.: século XX).
A Tribuna ainda era rosada, ainda se punha por baixo das portas dos assinantes, bem de madrugada, pelas mãos dos estafetas do José de Paiva;
Olímpio Lima era o espantalho dos políticos da terra, e o Velho Tinoco (Valentim de Morais), em suas célebres Rabujices,
implicava com tudo e com todos, através das suas críticas em versos, sempre no mesmo canto do jornal.
O grande Circo Americano tinha acabado de passar pela cidade, alegrando o último
entrudo e assaltando casas quietas "a título de brincadeira", mas aliviando-as sempre de alguma coisa. Era o tempo do famoso Eduardo
das Neves, o cancioneiro do Brasil, e do Benjamim de Oliveira, o grande palhaço, e apareciam nas ruas da cidade os primeiros histriões montando
burros ao contrário... e gritando jocosamente para a molecada que os acompanhava, para que esta lhes respondesse em coro:
- O palhaço o que é?... É ladrão de mulhé!...
- Hoje tem marmelada?... Tem sim sinhô!...
- O raio só suspende a lua?... Bravo o palhaço que saiu na rua!...
As bobagens que o povinho apreciava e que eram como que o prelúdio das funções.
Um carroção repleto de volantins e trapezistas do grande Circo corria a cidade,
rendendo homenagens cabotinas ao Brasil, ao Americano e a Santos Dumont.
O Americano era o grande clube de futebol, o mais forte e o mais aristocrático de
Santos, ao lado do Internacional, sendo comuns os charivaris no Bar Chic, e as cenas de capoeira, entre os
associados dos dois grêmios, nas noites de festa.
Santos Dumont, pouco antes, vencera em Paris o grande Prêmio Deutch,
outorgando-lhe o título de Pai da Aviação, pela conquista da dirigibilidade, e assim, os versos e as cantigas da gente do circo, a rodar pela
cidade, abrangiam os três temas - Americano - Brasil - Santos Dumont:
- Adeus oh verde e branco
adeus clube Americano
nós temos futebolistas
pra defender-te todo o ano...
- Adeus verde e amarelo
Adeus pátria brasileira
Nós temos navios de guerra
Pra defender nossa bandeira...
- A Europa curvou-se ante o Brasil
e clamou parabéns em meigo tom
Lá no céu brilhou mais uma estrela
Apareceu o balão "Santos Dumont"
Santos Dumont, um brasileiro,
O mais falado no mundo inteiro!...
Tudo isso foi tão conhecido e cantarolado por aquelas gerações de 1904!...
Pois foi naquele tempo, e naquela Santos, recém-saída do século dezenove, que apareceu
a Carrocinha dos Cachorros, e com ela o preto Camilo, um laçador famoso, ex-vaqueiro no sertão, já passando dos cinqüenta anos, que viera
fazer escola para os futuros campeões do laço da Prefeitura.
As opiniões se chocavam, umas contra, outras a favor da inovação, destinada a livrar a
cidade dos animais vagabundos, não apenas cachorros, e quando a carrocinha apareceu foi um estouro em Santos.
Em 1894 já haviam tentado estabelecê-la, mas o velho Munguata,
o impertérrito protetor dos ratos, dos gatos, dos cães e de todos os animais, conseguira impedir a sua criação, promovendo contra aquilo um
movimento de opinião que fôra como uma avalanche caída sobre o projeto. Mas o velho Munguata morrera, e quase dez anos depois aparecia ela,
por fim, arrastando atrás dos seus laçadores uma procissão de meninos, moleques e molecões, penalizados da sorte dos animaizinhos laçados, em gritos
e vaias constantes, toda vez que surgia à vista um cão e que o laço errava o objetivo.
Os próprios jornais glosaram o aparecimento do antipático e antidemocrático
paquiderme de grades, e A Tribuna, impenitente por seus poetas da redação, entre eles o Velho Tinoco (Valentim de Moraes), lançou
de pronto o primeiro samba que se ouviu no Brasil, e que a criançada, a sociedade e o povo inteiro decoraram e cantaram durante muito tempo.
Era o "Quem quiser ter seu cachorrinho":
Quem quiser ter seu cachorrinho
Não o deixe andar na troça |
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bis |
Porque assim ele fica livre
Desses homens da carroça |
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Bravos, bravos a especulação
É uma obra da Nação |
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E viva a prata, e viva o ouro
E viva a banha do cachorro... |
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E viva a prata, e viva o ouro
E viva a banha do cachorro... |
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Quem quiser um peixe gostoso
Vá comer no frége-mosca |
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bis |
Porque é feito com a banha
Do cachorro mais medroso... |
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bis |
Bravos, bravos a especulação... etc... |
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A música era bonita e a crítica pegou, atingindo os desenhistas que entravam a
caricaturar a carroça, os laçadores e os edis que haviam concorrido para a criação da geringonça...
O pobre do Camilo, por ter sido o primeiro laçador mestre da nefanda
instituição, nunca foi perdoado; pelo contrário, foi sempre o mais atingido, sendo mesmo constantes os choques entre o preto e os donos de animais
perseguidos, chegando a haver disputa e bofetões em plena rua, corte de laços a canivete, a navalha, ameaças de tiro, o diabo!... O pobre negro
sentia isso, mas, que fazer? Fôra sempre boiadeiro, não sabia mais nada; seu destino era laçar, e laçava, e laçaria sempre, houvesse o que houvesse,
até cair...
Isso pensava ele, mas o destino rondava. Um dia, o Guarani, um desses cães de
caiçara, meio russo, meio amarelo, mas da estimação de um dos chefes políticos de Santos, esperou o Camilo na esquina da Rua Amador Bueno com a
da Constituição... Parecia realmente coisa deliberada, porque o cachorro desde cedo se plantara bem no meio da rua, na encruzilhada, a olhar, de
orelha em pé, para os lados da Praça José Bonifácio, de onde surgia sempre a Carrocinha.
Ela, o Santo Ofício dos cachorros, apareceu de fato, lá pelas dez horas, o Camilo à
frente, uns dez ou quinze metros à frente, como um toureiro pisando a praça, olhando por cima, varrendo a distância com a sua empáfia. Os olhos
miúdos do negro fuzilaram quando deram com o Guarani fincado no meio da via pública, como uma estátua.
O negro laçador sabia de quem era o cão, e por isso mesmo, talvez, andava de olho
nele: tinha uma íntima ojeriza pelos políticos e pelos grandes, fazendo então seus projetos de mostrar ao figurão que seu cachorro
também ia para as grades, como os outros... nem que saísse logo depois.
O Guarani, estranhamente, esperou-o a pé firme. Que era afinal um cachorro para a
bravura de um boiadeiro? O Camilo avançou, armou o laço e zás... atingiu em cheio, o pescoço do cão... Naquele instante, o Guarani avançou como
louco sobre o laçador, saltando-lhe ao peito e derrubando-o, de costas contra o chão. O outro laçador ficara acovardado ante a fúria do animal e
rondava o companheiro sem socorrê-lo, enquanto o cachorro estraçalhava as roupas e as carnes do Camilo, em vários lugares, aos berros e gritos de
socorro do ex-boiadeiro.
Naquela altura, uma pequena multidão já se aglomerava em torno, torcendo pelo cachorro
e vaiando, vaiando os laçadores; mas a vaia cresceu e estouraram tremendas gargalhadas, quando o Guarani, abandonando o Camilo ensangüentado e quase
nu, deu uma corrida atrás do outro laçador, fazendo-o trepar depressa na carroça e depois tomou, calmamente, o rumo da casa do patrão,
carregando o laço como troféu e latindo alegremente.
Quanto ao laço, foi preciso o cidadão Intendente (o
ilustre dr. Galeão Carvalhal, que sucedera ao dr. Malta Cardoso) mandar buscá-lo à casa do
dono do herói da jornada, que, por sinal, era seu grande amigo e velho companheiro de lutas republicanas, lamentando particularmente o caso
havido com o seu cão...
***
Dias mais tarde, ainda todo em ligaduras e com o
chapéu muito enterrado na cabeça, quase cobrindo os olhos, para esconder-se da galhofa das ruas, o preto Camilo aparecia novamente ao povo, mas
agora na boléia da Carrocinha, de onde nunca mais sairia, até os últimos tempos em que foi visto em tal serviço.
Camilo foi o marco inicial, e caricato, da pitoresca instituição santista, que hoje se
apresenta em nova edição, mecânica, motorizada, mas quase com o mesmo aspecto e com laçadores mal vistos e ridicularizados pelo povo, tal como
antigamente, e que às vezes nem sabem o que fazer dos laços, para gáudio dos cachorros.
(*) Fundador do Instituto
Histórico e Geográfico de Santos. |