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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (4)

Texto publicado na Edição Comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos, do jornal santista A Tribuna, em 26 de janeiro de 1939 (grafia atualizada aqui):


...de todos os lados, de todas as tocas, de todas as calhas, surgiam dezenas, centenas de ratos, de todos os tamanhos, rodeando o velho, trepando-lhe pelas pernas...
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Quem era o velho Munguata, o maior protetor de animais que Santos teve

Revivendo, na crônica da cidade, a existência do excêntrico amigo de bichos e bicharocos

Quem não conhecia, na Santos de 1880, seo Maneco Munguata? Era um homem predestinado, todos o conheciam e estimavam, apesar das suas extravagâncias, homem de uma bondade que tocava o absurdo, figura humanizada da caridade.

Não contente em dividir quanto tinha e não tinha entre os que precisavam, levava os extremos do seu carinho a todos os animais, até mesmo os imundos. Contam que já naquela época fora cogitação da Câmara instituir a "Carrocinha dos cachorros", para aliviar a cidade das maltas de cães errantes que infestavam as ruas, mas o protesto do seo Munguata, aos jornais, ao presidente da Câmara e aos políticos conservadores, impedira a consumação daquele "crime".

Quando ele morreu, um cão de estimação que possuía, apaixonado com o desaparecimento do amigo e dono, não quis mais viver também, e, deitando-se sobre a sua campa, no Paquetá, deixou-se morrer à fome, obstinadamente, embora tentassem impedi-lo disso muitas vezes.

Gatos estropiados, cães cegos e paralíticos, aves doentes e lepradas, animais de toda a casta, quem os tivesse velhos, doentes, imprestáveis, mandava-os diretamente à casa de seo Munguata, ou mandava soltá-los junto à sua porta, uns por pena, muitos por pilhéria, e o bom velho santista recolhia-os todos, como num seio de Abraão, para a cura ou para a morte descansada e suave.

Foi assim, nessa caridade amplísima, que ele se tornou a figura mais curiosa de Santos, na época, tornando-se o pai dos ratos, os imundíssimos e detestáveis bicharocos, que assombravam a cidade, a cada passo, com o fantasma da bubônica [1].

Quem passasse pela escuridão da antiga Rua dos Quartéis, a atual Xavier da Silveira, naquele tempo em que não havia cais, e as águas vinham marulhar nos lodos da velha rua, junto às raras casas daquele ponto, veria todas as noites, pelas oito horas, um quadro estranho e verdadeiramente dantesco.

Dois negros chegavam, tirando aos ombros um varal de onde pendia uma grande vasilha de comida e restos de cozinha, depositavam no lajedo velho da calçada a carga trazida, e o seo Munguata, que os seguia pouco atrás, aproximava-se, chafurdava as mãos na lavagem sórdida, pronunciando com sua voz cava e soturna, alguns nomes, aparentemente cabalísticos:

- Timóteo! Catarina! Sizenando! Lofredo! Tó... tó... tó...

Seguia-se um segundo de impressionante silêncio e, subitamente, um pouco ao longe, um guincho longo e fino, soava na treva, por detrás dos muros, como um toque de corneta liliputiana.

Era a trombeta dos murideos [2]... o toque de reunir dos ratos santistas.

Um primeiro ratão surgia, indeciso, e de repente, de todos os lados, de todas as tocas, de todas as calhas, de todas as raízes, e de todos os muros, surgiam dezenas, centenas, talvez milhares de ratos, de todos os tamanhos, rodeando o velho, trepando-lhe pelas pernas acima, escalando a vasilha, cuinhando [3], lastrando [4], ondeando o passeio largo, saltarelhando em disputa aos melhores lugares.

- Seu maganão! Você ontem não veio! E você, Catarina! E você, seo Timóteo!... Ah... seus malandros!

Aquela vara imensa era uma família para ele, e seo Munguata afagava os pequeninos amigos, paternalmente, com pena de que o mundo não os compreendesse assim... como ele compreendia.

Quando julgava terminado o festim de todas as noites, seo Munguata batia as palmas, era o "até amanhã"... e a rataria, em massas, cuinhando, desaparecia como por encanto.

Isso durou anos. Depois, a cidade expandiu-se, veio o cais, veio a Saúde Pública, e o velho Munguata desapareceu com a cidade velha, levando com ele um uso em que não teve sucessor. Os homens da sua Santos o esqueceram. O velho Munguata ficou apenas na tradição, que é o baú velho do progresso. Teriam-no esquecido seus protegidos, os ratos?

N. E.:

[1]  Bubônica - doença infecciosa caracterizada por bubões, causada por um micróbio transmitido às pessoas pelas pulgas provenientes de ratos atacados da moléstia.

[2]  Murídeo - espécime dos Murídeos, família de mamíferos roedores que abrangem os ratos.

[3]  Cuinhando - onomatopéia relativa aos porcos (o som "cuim"), embora aqui aplicada aos ratos, que são tratados como suínos, como quando o autor emprega a palavra vara para se referir aos ratos.

[4]  Lastrando - propagando-se, espalhando-se.