Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0373.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/22/07 15:32:27
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Gobá e sua maldição

Esta história, ambientada na praia de Boracéia, no então distrito santista de Bertioga, foi contada pelo pesquisador e historiador Francisco Martins dos Santos no jornal santista A Tribuna, na edição de domingo, 1º de junho de 1952:

A maldição de Gobá
(uma página da vida real praiana)

Francisco Martins dos Santos (*)


- "João Jacob vê ao longe, na linha negra do morro da Juçá, a cara sangrenta de Gobá"
Ilustração e legenda publicadas com a matéria original

Era noite de Reis. A restinga andava cheia de sombras e de rumores. Boracéia inteira esperava a Reisada e os caiçaras já se reuniam no rancho de Pedro Gobá.

Violeiros e cantores chegavam ao tejupar do companheiro para a festa da tradição e ele mesmo ainda não chegara. Pedro Gobá andava doente do espírito; Mariazinha, a irmã de João Jacob, seu amor de longo tempo, fugia dele, evitava-o desde alguns dias, sem dizer por quê, o praiano não sossegava. Agora, com a festa daquela noite, Gobá contava vê-la e falar-lhe, para uma explicação e, naquele momento, oito horas da noite, ainda rondava a casa da moça, metido no escuro das veredas de murta, sem resultado. Abatido e cheio de presságios, só então fora chegando para o próprio rancho, debatendo-se em conjeturas.

Pouco mais tarde, organizava-se o bando e, através do silêncio da restinga, punha-se em marcha o farrancho tradicional, a caminho do bairro. A fila dos violeiros e cantadores de Reis seguia, como todos os anos, pela escuridão dos caminhos, onde as jurubebas escalonadas pareciam fantasmas de alabardeiros e mandacarus solitários simulavam sombras de outras gerações, assistindo às manifestações daquelas.

Gobá seguia à frente do bando, como primeiro cantador, e sua voz, muito amargurada, erguia-se para o alto do céu, ao zing-zing das violas:

- Ó de casa nobre gente
- Ó de casa nobre gente...

- Binde à porta e oubireis
- Binde à porta e oubireis...

Oh... ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó.

- Que das banda do Oriente
- Que das banda do Oriente...

- São chegados os trêis Reis
- São chegados os trêis Reis

Oh... ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó.

- Meu sinhô dono da casa
- Meu sinhô dono da casa...

- Ponde azeite na candeia
- Ponde azeite na candeia...

Oh... ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó.

- Binde abri a bossa porta
- Binde abri a bossa porta...

- Pra nos da bossa ceia
- Pra nos da bossa ceia...

Oh... ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó. ó.

O coro fanhoso dos caiçaras secundava o canto de Gobá com aquele Ohóóóóóó em terças, prolongado, melancólico, a se espalhar pelo silêncio.

Perto de cada rancho repetia-se o canto e os ranchos, convencionalmente fechados e às escuras, à batida dos cantadores se abriam de repente e se iluminavam para recebê-los e presenteá-los, na altura das posses de seus donos - pinga boa, rapadura, melancia, batata-doce, aipim, laranjas, pitangas, carambolas, ovos, café com garapa, arroz-doce, peixe frito, tudo quanto houvesse então.

Agora tocava a vez do rancho de João Jacob, o irmão de Mariazinha, onde ela morava, e Gobá, emocionado, tinha tremuras na voz:

- Ó de casa nobre gente...

- Binde à porta e oubireis...

Quando as portas se abriram, Mariazinha saiu disfarçadamente pelos fundos; esquivava-se, estranhamente, do namorado das vésperas.

Pedro Gobá percebeu a saída da moça e, rapidamente, pondo outro a cantar em seu lugar, saiu esgueirando-se pelo lado do bando, internando-se pela sombra do frutal, a contornar o rancho.

No escuro do relento ele divisou o vulto claro de Mariazinha e correu até onde ela estava:

- Mariazinha! Por que fizesteis isso?

A voz de Gobá tinha doçuras nas palavras que dizia, era quase chorosa.

Assustada e nervosa, Mariazinha repeliu-o:

- Me dêxe, Gobá! Me dêxe!

Pedro Gobá insistiu, alucinado pelo amor:

- O que foi que eu bos fiz, Mariazinha! Já não gostais de mim? Eu bos ispero amenhã no Pontal, quereis?

A caiçara fez um muchocho e, desprendendo-se da mão do antigo namorado, correu para dentro do rancho, sem lhe dizer palavra.

Pedro Gobá, com o coração sangrando e aos saltos, voltou para junto dos companheiros, que, naquele momento, iam ingressar no rancho de João Jacob. Percebera que Mariazinha ia chorando quando se desprendeu de sua mão, e aquilo, sem uma explicação, amargurava-o. Tinha tanta vontade de falar longamente com ela, para se explicarem, para saber o porquê de tudo aquilo que não compreendia. Começou a rir com os outros e a beber pinga com eles, para disfarçar e afogar os maus pensamentos, chegando a se embriagar, ele que nunca se embriagara até aquela idade.

Pela manhã, nem o sol se levantara por cima dos cabeços da serra e, apesar do cansaço de uma noite em claro, Pedro Gobá já estava no Pontal de Boracéia, à espera de Mariazinha, na esperança de que ela fosse ao seu encontro, com a antiga desculpa de ir buscar água à cachoeirinha. Não perdera totalmente a esperança. Quem sabe se ela lhe explicaria tudo?! Esperou horas; desesperou de esperá-la:

- Mariazinha num bêio... num bem nunca mai!...

Sentia ele que era o fim daquele amor e o princípio de coisa ainda pior; só não sabia decifrar o porquê do que se passava.

A ausência daquela manhã se eternizou; Mariazinha nunca mais procurou o local dos antigos encontros. Por fim, aquela esquivança estranha da antiga namorada foi passando aos próprios companheiros de Gobá, aqueles caiçaras como ele, companheiros de mar, de descantes e folias. Alguns passaram a evitá-lo ostensivamente, outros disfarçando, com olhares de pena.

Sem que houvesse concorrido para isso, e sem atinar com a razão do que acontecia, isolado cada vez mais, sem família, sem ninguém ali, sem um confidente sequer, Gobá foi sentindo crescer a revolta em seu coração, fruto do desespero e do ódio que o assaltavam.

- Ingratos! - pensava ele - era assim que lhe pagavam tantos anos de generosa e fiel colaboração nos trabalhos e nas festas? Era assim?...

Mas um dia, quando ele passava por cima do jundu carregando o mingacho e a vara, alguns camaradas se agrupavam na borda de uma canoa de voga; eram antigos companheiros de cantigas e caceadas. Gobá sorriu para eles e notou-lhes o sorriso contrafeito em paga do seu; já ia adiante, quando ouviu alguém do grupo dizer:

- Coitado! co'a lepra no corpo!

Pedro Gobá voltou no mesmo pé, o sangue fervendo na cabeça.

- Leprento são bossas mãi, seos coisa atôa! Tomai pra bóis e pras bossa famía!... - e, forte como era, espalhou-se em bofetadas entre aqueles frangotes da praia, que não eram homens para ele.

Gobá retomou o caminho, mas aquelas palavras ficaram bailando em seu ouvido, e uma delas ainda mais - a lepra!

- Birge Maria! Leprento?!

Ah! O horror da doença triste...

O caiçara só então começou a compreender o afastamento de Mariazinha e de todos. Só então pôde notar certos sintomas em si mesmo, nas extremidades das orelhas. Lembrava-se de umas feridas esquisitas que tivera, anos atrás, e que o preto Leandro, o feiticeiro de Una, fizera desaparecer com chás do mato e uns banhos de ervas. Lembrava-se das palavras do negro, na última vez que o tratara com as suas mezinhas.

- Tão moço, Cristo!

Pedro Gobá refugiou-se em seu rancho, mas até ele, escondido entre o maciço das pitangueiras, antigo confidente dos seus amores, parecia-lhe um sarcasmo à sua desdita, porque nele era onde melhor ecoavam, agora, as palavras fatais do antigo companheiro, e onde ia torturá-lo, no mais fundo do coração, o timbre sonoro e fresco da voz de Mariazinha, a chamá-lo como outrora, a pedir-lhe coisas e a jurar-lhe amor.

Até a viola amiga, em que descantava, imperando nos violeios e desafios, até ela já não lhe servia aos desabafos. Na sua tristeza experimentara tangê-la com os versos tristes que traduziam a sua dupla dor e não conseguira cantá-los:

- O meu ranchinho, entristeceu...
Abandonado, sofre tanto quanto eu...

Os soluços e o pranto agora embargavam-lhe a voz; não podia nem mais cantar; e Pedro Gobá tornou-se arredio do próprio rancho, que o irritava com a sua solidão e seu silêncio. Ao fim de pouco tempo, ele era como um cururuá, só aparecia à noite, cortando os caminhos, a evitar toda gente.

No íntimo do caiçara travava-se uma terrível luta; desencadeava-se nele uma tempestade surda, em que o amor, o ódio, o despeito, a conformação, a vingança, o perdão, a calma, e o desespero, se entrechocavam, brutalmente, rugindo. Gobá sentia a necessidade de fugir dali, para longe, onde esquecesse a Boracéia e boraceanos, onde o esquecessem também; foi até o alto do morro, mas, olhando lá para cima, toda a beleza dos arredores, todo o encanto do seu rincão de tantos anos, perdeu a coragem para se arrancar dali, porque, no fundo de tudo aquilo, lá estava um vulto de mulher a lhe acenar com o passado, como se ainda houvesse esperança.

Foi então para o alto da costeira e ficou remirando as águas que rugiam em fluxos e refluxos, em escaladas violentas, atirando respingos e salsugens, rebolcando escachoando pela rocha, cobrindo de espumas brancas as itapevas eriçadas de marisco. Olhos fixos no boqueirão, pensava ele que bastaria um salto sobre aquelas águas em desespero, para dar fim a tudo; se era verdade que estava com tal doença e que Mariazinha não o queria mais, que lhe importava a vida? Mas a idéia do suicídio recuava em sua mente, não vencia a obsessão do amor. Na própria água revolta, como no céu, no sol, nos morros, em tudo, ele via sempre, sempre, a imagem de Mariazinha, e agora zombando dele, sorrindo para outro, oferecendo-se a outros braços. Estourava...

Incapaz do suicídio, Pedro Gobá sentiu vencer em seu coração a idéia da vingança. Sentiu que era a única forma de amainar a sua tempestade íntima e de extinguir, talvez, aquele amor que o torturava. Aquela união desprezada, aquele sangue escarnecido, aquela mocidade condenada, precisavam, exigiam um desagravo, e o ódio amoroso surgiu, impante, onde o amor lírico dominara até aqueles dias.

***

Alguns meses decorreram sobre a festa de Reis. Era de tarde. Mariazinha já se despreocupara da ameaça que para ela constituía a presença de Gobá em Boracéia; naquele momento apanhava a cumbuca de barro e seguia em busca de água na cachoeirinha.

Tinha de andar trezentos metros para além do bairro, e já defrontava o bosque de embiuvús que ensombrava a fonte, quando um vulto saltou do mato diante dela.

- Gobá! Birge santa! - a caiçarinha encolheu-se, espavorida.

O antigo namorado parecia um espectro, um fantasma do que fora; estava magro, ossudo e trazia as feições alteradas pela emoção, os seus olhos muito abertos, as narinas infladas. Pedro Gobá envolveu Mariazinha em seus braços, beijou-a freneticamente e carregou-a para dentro do mato.

Mariazinha gritava, reagia, esperneava, e seus gritos soavam entre o maciço de folhagem.

Um moleque da vizinhança, por coincidência, também ia à fonte àquela hora, encher um púcaro de barro, e pôde ver, assustado, uma parte da cena.

***

João Jacob, o gigantesco irmão de Mariazinha, naquele momento estava sentado junto à soleira do rancho, pitando sossegadamente, olhando o céu azul pela aberta das pitangueiras, olhando os longes do mar, onde os Alcatrazes apareciam enevoados como uma visão. Carapirás sonolentos pairavam na altura e bandos de trinta réis brincavam acima da rebentação, enchendo o silêncio de grasnidos.

Era sempre ali, naquela soleira amiga, que João Jacob assistia o cair das tardes, incansável em sua contemplação, embevecido naquelas tintas incomparáveis dos crepúsculos de Boracéia, ouvindo o passaredo em seus últimos bulícios pela ramaria.

Do pequeno frutal do sítio vinha, em volutas, o aroma virginal das baúnas em flor, como se fosse uma bênção do grande Deus que ele adorava na sua natureza.

Parceu subitamente, a João Jacob, ouvir o seu nome gritado, muito ao longe. O caiçara deu de ombros; decerto era impressão; mas o nome soou de novo, mais de perto, mais forte e mais prolongado:

- Jão Jacóóóóóóóóó!...

João Jacob levantou a avantajada estatura; estranhava aquele chamado nervoso de criança. Esperou mais um pouco.

Segundos depois desembocava na restinga, perto dele, o Zimbo, o moleque da vizinhança, ofegante da corrida, a indicar a ponta do morro:

- Correi... Joã Jacó... correi... bossa irmã... Gobá pegô ela na cachoeirinha!...

João Jacob, horrorizado, imaginando mil coisas em tropel, atirou-se em corrida desabalada, como aquelas ondas grandes do mar alto, castigando a góga branca e macia que forrava o chão da restinga, na direção indicada.

Quando o praiano chegou ao bosque de embiuvús, viu logo o rumo do leproso; as roupas estraçalhadas da irmã o indicavam; e quando ele acudiu, penetrando no bosque, Mariazinha estava extenuada, inteiramente à mercê do antigo namorado, prestes a consumar sua vingança.

João Jacob despejou sobre o leproso todo o peso da sua cólera; a força monstruosa do caiçara caiu sobre o antigo cantador das festas de Boracéia, em golpes violentos, no peito, na cabeça, nos braços, nas pernas, no rosto, em todo o corpo do camarada, até que ele tombou como uma posta de carne sangrenta, sobre as folhas secas.

João Jacob arrancou da própria camisa, deu-a à irmã, fê-la recompor-se da melhor forma e mandou que ela fosse andando para casa; apanhou do chão o leproso, praguejando de raiva, e arrastou-o pelo pulso, para o caminho da Juréia.

Alguns camaradas haviam acorrido ao local, alertados pelo mesmo menino. João Jacob passou pelo meio deles, solene, compassado, quase sem se aberceber da sua presença, arrastando o corpo ensangüentado de Gobá; chegou ao caminho, galgou o morro, espiado de longe pelos caiçaras, e, lá no alto, quando Gobá deu uns primeiros sinais de vida, colocou-o de pé junto ao barranco, deu-lhe uma última bofetada, expulsando-o para sempre de Boracéia:

- Ídebos daqui, mardito! Nun quero mais a bossa cara, seo leprento dos diabo!... Bái daqui coisa ruim!...

João Jacob empurrou-o. Pedro Gobá rolou pela encosta contrária, parando mais abaixo, num descanso do morro; ali, penosamente, levantou-se, apoiado ao barranco, o rosto coberto de uma pasta de barro e sangue, os cabelos atirados para os olhos; parecia uma visão de pesadelo; voltou-se ainda uma vez para o alto do morro, onde a figura gigantesca de João Jacob, imóvel, parecia uma escultura, levantou sobre a cabeça a mão crispada e rouquejou com as forças que lhe restavam:

- Canáia! A mardição de Gobá há de bois caí inriba, Jão Jacó!...

Faltavam-lhe as forças; o caiçara não resistiu; rolou novamente a encosta, como um fardo.

***

O tempo andou sobre aqueles fatos. Cinco, dez, quinze, vinte anos passaram. Boracéia mudou bastante; o bairro cresceu; já havia uma venda com fonógrafo para alegrar as noites caiçaras; já havia umas casas melhores, de tijolo e telha, e uma nova geração substituía a antiga, envelhecida ou morta, agora mais numerosa e mais comunicativa talvez. As festas continuavam as mesmas, apenas com maior freqüência.

O rancho de João Jacob era agora uma das casas de tijolo do bairro, com puxado de pau a pique barreado, para a cozinha, todo pintado de azul e branco. João Jacob estava então com cinqüenta e dois anos e tinha a cabeça pampa; casara havia dezenove anos, pouco depois daqueles fatos da irmã, e perdera a mulher dois anos depois, ficando-lhe da união uma única filha, a Joana, que toda gente chamava pelo diminutivo, e que era o maior encanto da sua vida.

Mariazinha, a irmã de João Jacob, era agora uma mulher madura, com seus quarenta anos carregados de más recordações, taciturna e cismarenta. Naquele tempo, não fora a doença do namorado, que um vizinho descobrira e lhe contara, prevenindo-a, para que ela prevenisse depois o irmão, decerto teria casado com Pedro Gobá; depois, nunca mais tivera amor a ninguém, nem tivera coragem de se aproximar de moço algum, perseguida por sombra íntima que nunca pudera afugentar. Limitara-se sempre a tratar do irmão, servindo-o antes do casamento e depois, na viuvez, cercando-o de conforto, ajudando-o na criação da filha, para quem servira de verdadeira mãe.

Mariazinha era a confidente da sobrinha, e muitas vezes perdia-se de saudade do seu tempo, vendo a moça troçar com os rapazes praianos, pondo-lhes fogo nos corações.

Joaninha saíra como a tia, bonita, vivaz, comunicativa, encantando a todos e reinando sem contraste nas festas grandes de todo ano; gostava, em segredo, de um moço de Maresias, novo e forte, redeiro de seu pai, cantador de boa água, que aparecera por ali havia menos de um ano e já era estimado por todo o bairro.

O caiçara tinha a mesma idade dela ou pouco mais, vinte anos, mas era corpulento e criterioso, de muito amor ao trabalho, e tudo isso lhe dava um aspecto de mais idade. Pedrinho, como o chamavam, vivia na boca de todos, homens e mulheres, simpatizado e querido, mais ainda pelas meninas casadoiras, que se despeitavam com a preferência que ele dava à Joaninha. Só o conheciam por aquele nome, e, como era costume, ninguém lhe indagara nunca o de família, nem mesmo se tinha família em algum lugar.

João Jacob só não gostava do nome do rapaz, por lhe trazer penosas lembranças, mas escondia aquela cisma. Já Mariazinha, a despeito de tudo que passara, começara a querer bem ao moço, exatamente por causa do nome, aquele nome que lhe trazia tão fundas recordações e que já amara mais do que a todos os outros. E foi ela mesma quem se incumbiu de aproximar os dois jovens e de pedir a João Jacob que consentisse na união de ambos, como eles queriam.

João Jacob levou dois dias pensando no caso e terminou cedendo. Se havia qualquer coisa a lhe soprar no ouvido, ele não soube precisar o que fosse, e assim, não tivera coragem para se opor à amizade da filha defendida tenazmente pela irmã.

Joaninha e Pedrinho se uniram, meses depois, sem leis nem sacramentos, como era de uso naquelas praias, quando as pessoas eram de bem, celebrando-se a união numa alegre festa de bodas com a participação de toda a gente de Boracéia. Depois, ficaram morando ali mesmo, na casa de tijolo de João Jacob.

***

A vida decorreu normal por algum tempo. Oito meses passaram sobre o enlace. Joaninha já estava muito pesada, a pouca distância do parto que lhe devia dar o primeiro fruto do seu amor e o primeiro neto a João Jacob.

O mar andava ingrato, o peixe vinha sendo escasso nas últimas pescarias. Redes, tresmalhos, espinhéis, tarrafas e picarés davam mais trabalho do que renda; atravessavam uma fase única na história pesqueira de Boracéia; só as caceadas no mar largo compensavam o trabalho dos pescadores. Os viveiros estavam proibidos; cercos, covos, paris, juquiás, só clandestinamente podiam ser armados nos rios; só restava mesmo aquela alternativa, a exploração dos pesqueiros de fora.

Em conseqüência, numa daquelas manhãs, camaradas de Pedrinho vieram bater-lhe à porta; era uma combinação da véspera; iriam todos a uma pescaria grossa junto ao costão dos Alcatrazes; três dias de adibertimento. O tempo estava bom; João Jacob, Mariazinha e Joaninha acompanharam o caiçara até a praia. Num instante, a canoa de voga, enorme, pesada, azul e branca, como a casa de João Jacob, deslizou sobre os rolos e aproou sobre a rebentação.

Pedrinho, de pé junto à popa da embarcação, lançava um adeus risonho à companheira, e cantava sorrindo o estribilho daquela modinha tão querida de toda Boracéia:

- Adeu meu povo
Já vou m'imbora
Não daqui...
lá de fora...

Minutos depois, a canoa dos rapazes era um ponto pequenino na imensidão do mar. No grupo da praia, que ali permanecia imóvel, o olhar fincado naquele ponto escuro que se afastava cada vez mais, aparecendo e desaparecendo, a única pessoa inquieta era Joaninha, pela gravidez e por um presságio qualquer que ninguém levaria a sério. Foi preciso João Jacob tomar a iniciativa da volta, enlaçando-a paternalmente pelo ombro e levando-a, praia acima, com palavras de conforto ao seu nervosismo:

- Pedrinho logo de borta, Joaninha! Os Arcatráis tão ali mêmo e o má tá de jazigo!

***

Dois dias decorreram sobre a partida do praiano. No terceiro dia, logo pelo meio, começou a formar-se o mau tempo. Relâmpagos enormes zangarrearam pelo espaço e nuvens carregadas vieram do Sul em tropel, tocadas por susuéste violento. Carapirás e trinta-réis passavam em revoada, grasnindo; bandos de biguás, assustados, como esquadrões em fuga, debandavam para os pousos interiores. Centenas de graussás e tatuíras corriam pela areia, às tontas, à procura das tocas; o vento soprou em lufadas cada vez mais violentas e as mandus e procelárias vieram gritar sobre a praia; eram os primeiros sintomas do temporal em caminho.

Pouco depois, o mar já estava em cima do jundu, como se o empurrassem lá de fora, levantado, revolto, em bramidos; e a chuva, os trovões, os coriscos, os raios, desabaram em cambulhadas surriantes.

O temporal reinava, afinal, em toda a extensão de Boracéia e vizinhanças. Nenhum sinal de vida em torno daqueles ranchos que se ocultavam dos ventos do mar, atrás dos maciços vegetais da restinga. Um manto de névoa escassa parecia escapar do vendaval e permanecia sobre as casas e os ranchos, isolando-os uns dos outros, envolvendo-os em tristeza.

A noite foi chegando; Pedrinho não voltava. Joaninha cheia de susto, com a gravidez adiantada, passava mal, rezava e chorava ao lado da cama:

- Birge santa do Bão Parto... protegei meu Pedrinho!

As horas passavam; a aflição na casa de João Jacob era grande. Uma vela de sebo ardia no pequeno oratório e figuras vermelhas bailavam pelo chão intervalando as sombras, nos movimentos da chama. Joaninha continuava em pranto, e João Jacob, de onde estava, na sala grande, mordendo o pito, seu companheiro de todos os momentos, consolava-a a seu modo:

- Têje quéta, Joaninha! Pedrinho tá nas tóca de pedra dos Alcatráis! Ele não é bobo nem nada!... mais siguro do que nóis! Bâmo deitá... amenhã ele tá i logo cedinho!...

João Jacob consolava a filha, mas, intimamente, estava mais inquieto do que as duas. Se aquele temporal houvesse apanhado os rapazes em viagem, que seria do genro? E logo naquela noite, naquela data!... Fazia vinte e dois anos!...

A tormenta tripudiava sobre a coberta de telha vã. O mar parecia querer tragar a terra, sacudindo-a e rugindo, secundando o escarcéu dos trovões que continuavam, enquanto o vento passava uivando pelas frinchas e pelas moitas de taquara. Parecia o fim do mundo.

O que mais torturava a João Jacob, e só ele se lembrava disso, era aquela estranha coincidência... fazia naquela noite exatamente vinte e dois anos que Pedro Gobá o amaldiçoara; nunca pudera esquecê-lo; tinha sempre na mente aquele quadro do morro, aquela cara empastada de barro e sangue, aquele gesto, aquela frase cheia de ódio do leproso expulso. Jamais conseguira subtrair-se à certeza de que aquela praga pegaria, porque fora dita num momento de amargura e raiva. Perdera a mulher, mas tinha a impressão de que não fora aquele, ainda, o resultado da praga, apesar de tanto tempo decorrido.

E João Jacob pitava, pitava nervosamente, disfarçando os seus cuidados, para não desesperar a filha.

Joaninha e a tia, com o passar das horas e o cansaço, acabaram dormindo; Jacob continuava na esteira, a virar o corpo, sem conseguir dormir e sem largar o pito, o ouvido atento às vozes lá de fora, que as paredes da casa apenas atenuavam.

Subitamente, o praiano teve a impressão de ouvir um gemido fundo envolvido no vento; sentiu um arrepio pelo corpo. Seria impressão?

- Benza-me Deus!... - o caiçara persignou-se.

Nova lufada de vento bateu de rijo na casa e novo gemido passou, agora mais nítido, mais longo, mais forte:

- Âããããããããã!...

João Jacob levantou-se de um salto. Não havia mais dúvida; era ele, o Pedrinho, era ele, naufragado, ferido, tentando atingir sua casa... enquanto pensava em tropel, Jacob acendia o candieiro, enfiava-se no pala de lona grossa, enterrava o chapéu na cabeça, tomava da lanterna de pescaria, acendia-a, e atirava-se para fora do rancho, com a decisão de um homem do mar. Uma lufada de vento escancarou a porta ao abri-la e encheu a casa, derrubando uns quadros de santo e a folhinha... mau sinal! Joaninha gemeu lá dentro; em pesadelo, decerto. João Jacob estacara ao gemido da filha, mas ao sentir-lhe o silêncio, fechou de todo a porta atrás de si.

O praiano caminhou às tontas, contra a violência do vento que amacegava a restinga. Ouvia agora, mais distintos, os estertores humanos; vinham do jundu, de além da cortina de murteiras; avançou tateante para o lado de onde eles vinham. A lanterna pouco adiantava naquelas trevas, com aquele vento e com aquele aguaceiro; seus pés venciam a custo a trama dos perrichis e ariticuns da cabeça da praia; repetiam-se os gemidos ali pertinho dele; acabou tropeçando num corpo; suspendeu a lanterna:

- Pedrinho! Birge do céu!...

A lanterna posta junto ao rosto do náurago acabava de revelar o genro; faltava-lhe uma perna, quase toda, o sangue escorria ainda, da enorme ferida.

João Jacob tremia. Tomou a cabeça do moço entre as mãos; sofria o gigante de Boracéia ante o espetáculo de morte, em que qualquer dedicação ou esforço seria inútil:

- Pedrinho! Meu fio!

Pedrinho entreabriu os olhos, viu Jacob e um sorriso cansado, desfalecido, descerrou-lhe ligeiramente os lábios; falou num fio de voz:

- O cação... Ja... có... o ca...ção!

João Jacob notou que o genro chorava. Pensou naquele momento que bem podia morrer em lugar dele... já não fazia falta a ninguém... e Pedrinho estava apenas começando, ia ser pai também... A... os cações! Ele bem conhecia aqueles monstros, os cambébas, e reconstituía mentalmente a tragédia do moço, derrubado pelo mar, atacado pelas feras... horrível!...

Pedrinho falava alguma coisa. João Jacob aplicou melhor o ouvido, encostando o rosto à boca do moribundo; notou que ele murmurava o nome da filha e queria dizer sua última mensagem, talvez:

- Joa... ni...nha!... Joa... ni... nha!

- Coi... ta...do do... meu... pai... num... sa... be... que seu fio... casou... num sa... be... que... seu... fio... morreu!...

- Não Pedrinho! Não fales assim! - murmurou Jacob.

Um estertor prolongado escapou dos lábios de Pedrinho. João Jacob chamou-o à vida; quis carregá-lo para casa, e o genro abanou penosamente a cabeça, desaprovando seu gesto com o complemento de um sorriso triste.

- Pedrinho... não morrei, Pedrinho!... Não podeis morrê agora, Pedrinho!...

O caiçara delirava, nem sabia mais o que fazer, se ficava, se corria, se chamava alguém, se chamava a filha; mas não havia tempo, o genro estava mesmo morrendo.

- Pedrinho! Quem é bosso pai? Quereis que João Jacob chame ele?... Onde é que ele , Pedrinho?!

Pedrinho teve uma reação, suspendeu o busto nos antebraços:

- Meu... pai... Jacó... mora... nas... Maresi...as... é... Pe... dro... Go...bá!...

O moribundo pronunciou aquele nome e deixou-se cair sobre a praia, murmurando como numa prece:

- Pe... dro... Go... bá... meu... pai!...

João Jacob teve um urro de dor e desespero; sentiu uma descarga imensa nos músculos:

- Meu Deus do céu!

Naquele instante, uma faísca riscou a treva; um raio enorme estrondeou pelo firmamento, como uma gargalhada. João Jacob viu, ao longe, na linha negra, iluminada, do morro da Juréia, a cara sangrenta de Gobá, rindo dele, rindo do sangue agora misturado com o seu, rindo de suas lágrimas agora identificadas com as que ele vertera um dia. Era a maldição que se realizava...

O neto de João Jacob seria também o neto de Gobá, do leproso, e ambos iam chorar agora a mesma fatalidade, a mesma morte.

João Jacob sentou sobre os calcanhares, sucumbindo. Pedrinho estava morto e, lá de longe, vinha um grito fino de mulher, misturado no vento:

- João Jacóóóóóóóóó!...

E João Jacob, abandonado no chão, ao lado do cadáver do genro, chorava pela primeira vez.

(*) Fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Santos.


Imagem: reprodução parcial da matéria original

QR Code - Clique na imagem para ampliá-la.

QR Code. Use.

Saiba mais