Detalhe da ILUSTRAÇÃO 1 - A Fundação da Villa de Santos - 1545
Reprodução: (com a correção do espelhamento
indevido) da enciclopédia
Grandes Personagens da Nossa História, Editora Abril Cultural, São Paulo, 1969
A fundação de Santos na ótica de Benedito Calixto
Caleb Faria Alves (*)
Santos é uma das raras cidades paulistas das
quais dispomos de uma grande quantidade de imagens referentes ao seu período colonial, imperial e também da primeira república. Essas imagens foram
inicialmente produzidas por um dos primeiros grandes pintores do estado de São Paulo, Benedito Calixto de Jesus
[1]. Dedicado a temas históricos e a paisagens, suas telas são registros raros e
preciosos das cenas e dos eventos marcantes do passado dessa cidade, bem como de vistas urbanas e de marinhas à época em que ele viveu.
Uma das características que mais ressalta aos olhos nas suas telas e paisagens
históricas é o movimento nelas sugerido, tanto no espaço quanto no tempo. Esse movimento nos permite inserir Calixto no debate que
tomou grande vulto na virada do século em São Paulo, a respeito dos eventos ocorridos nos primórdios da colonização portuguesa, e que envolvem a
fundação da cidade de Santos e os fatos marcantes da história paulista. Este artigo é dedicado a uma análise dos painéis pintados por Calixto no
Palácio da Bolsa do Café, em Santos, em 1922, através da qual pretendemos situar a sua posição frente a esse debate e o seu
papel enquanto um dos construtores dessa história.
Esse painel é, sem dúvida, um de seus mais conhecidos e importantes
trabalhos. Constitui-se de três telas: a primeira, Porto de Santos em 1822; a segunda, Fundação da Villa de Santos - 1545; e a
terceira, Porto de Santos em 1922. Dois anos após a morte de Calixto, seu amigo e colega do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo,
Júlio Conceição, realizou um levantamento de suas telas no qual assinala 28 quadros identificados como "desdobramentos
da tela Santos de 1822" [2].
Ao observarmos o conjunto todo fica evidente que o foco de atenção de Calixto é a
transformação urbana sofrida por Santos ao longo de toda sua história, com destaque para três momentos de especial importância para a pátria: o
momento do descobrimento, isto é, a fundação da cidade e a sua emancipação à categoria de vila; a independência (1822); e o ano em que pinta
os painéis (1922), data na qual se comemora o centenário da independência. As telas apontadas por Júlio Conceição como desdobramentos desses
painéis são closes do mesmo, e referem-se a edifícios de interesse público, igrejas e capelas, a câmara, vistas do porto, uma fazenda,
edifícios de empreendimentos empresariais importantes e um carro de boi.
A tradição dos grandes panoramas das nossas praias, cidades e florestas
está, obviamente, ligada aos artistas viajantes e aos membros da Missão Francesa. Mas o que os pintores do Rio de Janeiro demoraram décadas, ou
mesmo séculos, para produzir, em termos de visões diferenciadas das mesmas vistas [3],
Calixto realizou sozinho nos seus quadros. Uma diferença grande, entretanto, se impõe, os viajantes produziram testemunhos do que viram,
enquanto Calixto pinta baseando-se em documentos históricos. Calixto faz as vezes, assim, de um falso viajante. Desse modo, as suas telas adquirem
um caráter diferenciado em relação àquelas de seus predecessores. Enquanto os trabalhos desses aventureiros podem ser considerados documentos
originais, porque produzidos em tempo real aos acontecimentos retratados, mesmo levando em conta todas as orientações de composição a que
estivessem condicionados, Calixto, não sendo testemunha, produz teses sobre a história.
Calixto participa ativamente do momento de nascimento de uma nova abordagem da
história que recoloca em outras bases a presença e a importância do estado de São Paulo para a história pátria, orientada por uma perspectiva
científica. São Paulo, por essa época, ainda não tinha plena convicção nem consenso a respeito dos fatos que marcaram, e com os quais poderia
representar, o seu desenvolvimento. O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo foi fundado apenas em 1895 e com o objetivo diferenciado em
relação ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no qual se inspira.
"Havia, nesse novo estabelecimento, a
intenção de imprimir uma marca ao mesmo tempo comum ao modelo ilustrado e civilizado idealizado pelo IHGB, e, por outro lado, bastante diversa da
forma original, já que se buscava destacar primordialmente uma suposta especificidade paulista. 'A história de São
Paulo é a história do Brasil', era uma frase sem dúvida de efeito, mas que ao abrir o primeiro volume da revista do
grêmio paulista representava, antes de mais nada, uma clara provocação"
[4].
O instituto paulista nasce, ademais, com forte inclinação republicana e o brasileiro
carregava anos de serviços prestados ao Império.
A participação do pintor nesse debate se dá através dos seus pincéis e de seus
escritos. Calixto foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e também membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico de
Santos, contribuindo com vários textos a respeito, principalmente, das cidades litorâneas e dos primeiros colonizadores vindos ao Brasil.
Não há, entretanto, uma relação de primazia dos textos sobre as telas. As suas
pesquisas históricas ora servem aos textos, ora apenas às telas, e freqüentemente a ambos. O painel para o Palácio da Bolsa do Café é extremamente
revelador no que diz respeito às construções históricas de Calixto, à sua maneira de equacionar a história de São Paulo e sua importância para a
história nacional. A análise dessa obra pode contribuir para entendermos melhor tanto as tendências artísticas quanto a perspectiva dos membros
desses institutos na virada do século (N.E.: de XIX para séc. XX) em São Paulo.
ILUSTRAÇÃO 1 - A Fundação da Villa de Santos - 1545
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A
painter by the sea,
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP
A Fundação da Villa de Santos - 1545 e a Genealogia Paulista
Comecemos com uma descrição desses três painéis pela tela central, A Fundação da
Villa de Santos - 1545 (Ilustração 1), o mais complexo do conjunto por causa dos vários dados históricos que evoca.
Inicialmente chama-nos a atenção o fato de que Santos se apresenta como vilarejo já razoavelmente desenvolvido, com um certo número de construções,
ou seja, Calixto apresenta Braz Cubas, o conhecido fundador da cidade, mais como propulsor oficial do que já existia do que
como um fundador propriamente dito. Um segundo ponto em evidência é a confirmação da edificação da Igreja da Misericórdia
por parte de Braz Cubas, representado pelas obras em destaque no segundo plano da tela. As outras edificações são: à esquerda dessa igreja, a
Casa do Conselho, e à direita, mais ao fundo, a capela de Santa Catarina, construída sobre o
outeiro do mesmo nome por Luiz Góes e sua esposa, d. Catarina de Aguilar.
Observando o painel da esquerda para a direita vemos os seguintes personagens: no
alpendre da Casa do Conselho e na escada que leva ao pátio estão os "homens bons na vereança" e fidalgos da época. No pátio, ao pé da escada, vemos
lanceiros e alabardeiros, e logo atrás desses um grupo de personagens, que se estende até o lado esquerdo de Braz Cubas, composto pelos primeiros
governadores das capitanias de São Vicente e Santo Amaro: capitão Antônio de Oliveira, capitão Gonçalo Afonso, capitão Jorge Ferreira, capitão
Antônio Rodrigues de Almeida, capitão Francisco de Morais Barreto etc., e também pelo primeiro juiz pedâneo da cidade, Pedro Martim Namorado, e pelo
juiz Cristovão Aguiar Altero.
Os religiosos que aparecem em frente ao pelourinho são o pároco Gonçalo Monteiro, e ao
seu lado os dois franciscanos que fundaram a primeira igreja de Santo Antônio em São Vicente. Mais à direita na tela, segurando um livro, está o
escrivão e tabelião Pedro Fernandes, irmão de Pascoal Fernandes. Em seguida figuram vários dos primeiros povoadores de Santos: vemos Luís de Góes
pousando a mão direita sobre o ombro de seu filho, Serapião de Góes, e ao lado dele Pascoal Fernandes e Domingos Pires; as damas, atrás desse grupo,
são: d. Catarina de Aguilar, mulher de Luiz Góes, e outras matriarcas da genealogia paulistana; e à sombra do velho ingazeiro "Iguassu", está
sentado "mestre Bartholomeu", e de pé, o seu filho.
Os povoadores do planalto estão representados através dos personagens em
segundo plano no lado direito. Em destaque aparece João Ramalho e a seu lado o "almotacéu de São Vicente", Antônio Rodrigues, sua mulher,
filha do chefe índio Piquerobi, e sua filha, Antônia Rodrigues, que casou com Antônio Fernandes. Os índios que aparecem em ambos os lados do painel
são, na esquerda, prestando tributos e trazendo oferendas nativas, índios tupis e guaianazes; no lado direito, ainda presos ao trabalho escravo,
segurando apetrechos de trabalho, os índios carijós. As demais figuras que aparecem no fundo são fidalgos, mulheres e operários
[5].
É evidente a preocupação de Calixto com a genealogia paulista nesse painel, pois não
se trata de um público qualquer, mas de uma rica descrição da composição social da vila, das famílias e suas descendências e da sucessão do poder
político, religioso e administrativo. Há ainda um outro elemento no qual Calixto empenhou seus conhecimentos históricos sobre as famílias
vicentinas: o friso que emoldura o painel. Nos quatro cantos deste, ele destaca o nome de quatro donatários e de suas respectivas donatarias: no
canto superior esquerdo podemos ler o nome de Martim Affonso de Souza e da Capitania de São Vicente; em segundo
lugar, no mesmo lado, no canto inferior, aparece o nome da condessa de Vimieiro e da Capitania de Itanhaém; no canto superior direito, o marquês de
Cascaes e Capitania de Santo Amaro; e, abaixo dele, no quarto canto, o marquês de Aracaty e Capitania de São Paulo.
A ordem de leitura, começando por Martim Affonso, é a mesma da sucessão de posse e de
nomenclatura das terras às quais pertenceu a cidade. Os vários nomes das capitanias, portanto, sugerem que as terras originais de Martim Affonso
receberam denominações distintas ao longo do tempo. Esse dado parece estranho se atentarmos para o fato de que ao tempo da condessa de Vimieiro,
herdeira de Martim Affonso, existiu uma outra capitania com o nome de Capitania de São Vicente, possuída pelos descendentes de Pero Lopes, dando a
entender que ela herdou as terras e outros herdaram o nome da capitania, e mais estranho ainda porque o marquês de Cascaes se auto-intitulava
donatário da Capitania de São Vicente, e não de Santo Amaro, contrariamente ao que Calixto indica no seu painel.
Essa sucessão aparentemente estranha se explica pelo fato de que Calixto acreditava
que os descendentes de Pero Lopes, entre eles o marquês de Cascaes, donatário da Capitania de Santo Amaro, vizinha ao Norte à de São Vicente, haviam
usurpado os direitos dos legítimos descendentes de Martim Affonso, entre eles a condessa de Vimieiro.
A condessa por várias vezes impetrou recursos nos tribunais da época para reaver seus
direitos e foi bem-sucedida em várias ocasiões, recuperando temporariamente os direitos sobre Santos. Porém o marquês sempre conseguia reverter a
situação a seu favor e reaver a posse das terras. Os subterfúgios utilizados pelo marquês foram: contestar os marcos originais de delimitação
territorial das capitanias; contestar a legitimidade da linhagem dos descendentes de Martim Affonso, uma vez que entre os mesmos se encontrava um
membro bastardo; e aliciar os membros das câmaras, do governo geral, e o próprio rei, a seu favor.
O marquês defende, num processo contra a condessa, que a ilha de São Vicente, citada
originalmente como limite ao Norte da donataria de Martim Affonso, é a ilha conhecida hoje como Ilha Porchat, também
chamada à época de Ilha do Mudo, e que divide as baías de Santos e São Vicente, municípios vizinhos localizados na
mesma ilha de São Vicente. Consegue o marquês, assim, incluir Santos em suas propriedades, reduzindo as terras da condessa desse ponto até a Ilha do
Mel, hoje porto de Paranaguá. A Capitania de São Vicente continua existindo, mas Santos pertencia agora à capitania vizinha, a de Santo Amaro.
Com o tempo, o marquês teria usurpado também o nome da donataria vizinha, passando a
autodenominar-se donatário da Capitania de São Vicente, abandonando a nomenclatura original das terras de seu ancestral (Capitania de Santo Amaro).
A condessa de Vimieiro adotou o nome de Capitania de Itanhaém porque transferiu a sua sede para a cidade assim denominada.
Mais tarde, como a Vila de São Paulo havia tomado partido do marquês nas suas
disputas, foi recompensada com o título de cabeça da capitania, e esta passou a denominar-se Capitania de São Paulo, e Santos ficou então sob sua
jurisdição.
Essa confusão de nomes e limites teria passado desapercebida a muitos historiadores,
segundo Calixto, e suas posições causaram certa querela no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Calixto, ao recusar a associação do nome
do marquês à Capitania de São Vicente, colocando-o como donatário da Capitania de Santo Amaro, e também a inclusão da condessa na galeria dos
donatários ilustres, evidencia uma situação de ilegitimidade, de injustiça.
Esta situação contrasta com a perfeita ordem do momento da fundação da cidade, quando
tudo parece em completa harmonia. O momento da fundação transcorre numa celebração que faz transparecer a hierarquia de autoridade na vila, que pode
ser lida nos cargos dos personagens dispostos em seqüência de subordinação, da esquerda para a direita, inicialmente os vereadores, em posição mais
elevada, no alpendre, depois os capitães e os juízes, em seguida os povoadores, pairando à frente de todos o capitão-mor, Braz Cubas, e os
religiosos.
Aqui e ali figuram ainda fidalgos e outros povoadores de menor importância, e os
soldados. A presença no mesmo grupo dos ex e futuros capitães de ambas as donatarias sugere uma convivência e sucessão pacífica, reforçando a
presença da ordem pública com o seu reconhecimento e respeito por todos. Esse momento teria sido seguido por outro de instabilidade no que diz
respeito à ordem pública, conforme as figuras no friso o sugerem.
O painel pode ser visto, assim, como um empenho de Calixto no sentido de recuperar a
verdadeira linhagem santista e paulista, o papel histórico legítimo dos herdeiros de Martim Affonso, e também como uma denúncia da usurpação dos
direitos desses descendentes com conivência do poder real.
Uma das provas mais evidentes desses fatos, segundo Calixto, era justamente
a obediência desses primeiros povoadores e seus descendentes ao tronco genealógico de Martim Affonso, através da incontestável aceitação da
autoridade de Braz Cubas, capitão-mor de Martim Affonso, desconhecendo os povoadores e demais autoridades de Santos qualquer obediência aos
descendentes de Pero Lopes [6].
ILUSTRAÇÃO 2 - Porto de Santos em 1822
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A
painter by the sea,
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP
Porto de Santos em 1822 e Porto de Santos em 1922: a paisagem urbana
Comparando os três painéis, percebemos que a rica composição de personagens, presente
na cena central, contrasta incrivelmente com a absoluta ausência de qualquer figura humana, ou de qualquer indício de atividade nos painéis
laterais. O meio físico é isoladamente destacado frente ao social, e este último é representado em primeiro plano em relação às construções apenas
no painel central. Calixto parece querer salientar que o meio faz o homem, apresentando um encadeamento entre um elemento inicial, a terra, um
segundo, o homem, e, finalmente, as edificações por ele construídas.
Esse meio está mais detalhado nos dois painéis laterais e sua análise revela a relação
proposta por Calixto entre os homens e a natureza. O primeiro deles (Ilustração 2) apresenta uma composição bastante rara no
que diz respeito à divisão entre água e terra. Geralmente, os paisagistas escolhem ou o ponto de vista próximo ao espelho d'água, descortinando no
horizonte a faixa litorânea, ou a perspectiva oposta, de uma localidade elevada os olhos descansam montanha ou cidade abaixo até encontrarem o mar.
Calixto pinta uma porção de terra, outra de água fluvial, mais uma de terra insular, e
o mar ao fundo, só então o céu desponta. A própria porção de terra de onde se avista a paisagem é uma ilha.
Poucos retrataram, de um ponto de vista elevado e frontal, o encontro da água com a
terra numa cena litorânea, nessa ordem, com o porto e as grandes naus à frente. Esse ponto de vista permite que se dê um grande destaque para o
traçado urbano da cidade de Santos. A costa da ilha de São Vicente é bastante regular e paralela aos limites superior e inferior da tela, dando
quase a idéia de um retângulo encimado por alguns pequenos montes.
O traçado das ruas, quase todas paralelas, com poucas vias sinuosas, e também os
percursos das águas e dos caminhos que atravessam a ilha, apontam, de maneira simétrica, para o horizonte, para o ponto de fuga da tela. A extrema
regularidade das linhas é quebrada pelos montes, pelo pequeno pedaço da Ilha de Santo Amaro ao fundo à esquerda, e pelos acessórios postos na mesma
direção (a vegetação em primeiro plano à esquerda da paisagem).
Para a paisagem à direita (Ilustração 3) Calixto escolheu um
ponto de vista diferente e que, exceto pelo porto, pouco lembra uma cidade litorânea. A paisagem é tomada do
Morro do Pacheco, na própria ilha. Avista-se dali a face Norte da ilha, com destaque para o canal que aparece do lado
esquerdo da tela e dobra à direita mais adiante, passando entre as ilhas de São Vicente e Santo Amaro, ao encontro do mar, formando um "L" de cabeça
para baixo. O mar, à direita do ponto que estamos, não aparece. Alguém que desconhecesse a cidade de Santos e visse a cena provavelmente suporia
tratar-se de um porto fluvial.
Do lado direito, aparecem novamente acessórios em forma de vegetação, uma árvore mais
alta e uma porção de terra descendente da direita para a esquerda. Simétrico, porém invertido, ao acessório da paisagem Santos em 1822, no
outro extremo.
Se examinarmos cuidadosamente o traçado urbano de Santos nessa segunda paisagem
urbana, verificaremos que a cidade parece planejada. Os quarteirões são incrivelmente simétricos, salvo poucas exceções. Entre os edifícios há dois
que se destacam, a catedral e o palácio da Bolsa do Café. Fora isso, o único elemento que sugere alterações na representação é o próprio porto e
seus armazéns. É uma cidade linear, serena, com quarteirões perfeitamente dispostos como num tabuleiro de xadrez.
Estes três painéis são ladeados por um friso onde estão desenhadas figuras de aves
brasileiras e, nos cantos, emblemas e frases. Os desenhos das aves lembram os registros que os viajantes faziam da nossa fauna, numa espécie de
inventário de animais, e as frases têm evidente inspiração positivista. Começam na esquerda com "trabalho e ordem" e finalizam na direita com
"evolução e progresso".
ILUSTRAÇÃO 3 - Porto de Santos em 1922
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A
painter by the sea,
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP
De costas para o mar: o vitral e os grandes períodos do desenvolvimento do Brasil
Encimando os painéis há um grande vitral de nove metros (Ilustração
4), também desenhado por Calixto, que complementa, como mostraremos, a idéia de processo histórico. Estranhamente ausente do levantamento de
Júlio Conceição sobre trabalhos de Calixto relacionados a este painel, ele é fundamental para a compreensão do mesmo. O vitral também está dividido
em três cenas, cada uma representando um dos três "grandes períodos do desenvolvimento do Brasil";
segundo a concepção de Calixto, são eles: "A Penetração e Conquista do Sertão pelos Bandeirantes", "A Lavoura e Abundância", "A Indústria e o
Comércio".
Ao contrário do primeiro, não há localização precisa das cenas nem se trata de
panoramas. São alegorias dos "grandes períodos". Na cena central, um bandeirante encontra com a mãe d'água e algumas ninfas num quadro bucólico de
descoberta em meio à generosa natureza. Apesar da presença dos animais peçonhentos e perigosos, a mãe d'água convida o bandeirante oferecendo-lhe
seus tesouros, como se não houvesse perigo algum. O bandeirante parece destemido a enfrentar e sobrepujar os perigos da selva representados pelas
cobras e jacarés.
Na cena da lavoura, uma deusa da abundância ou fertilidade recompensa o esforço do
agricultor com a fartura. Na cena consagrada à indústria e ao comércio, estão representadas algumas figuras em meio a colunas clássicas, insinuando
o aprendizado dos ofícios por um operário que segura uma roda, diretamente das deusas da ciência, trajando as togas gregas.
Há uma relação proposta entre os três grandes momentos da nação e os três grandes
momentos da evolução urbana de Santos. O período da busca bandeirante dos tesouros da terra é um momento de descobertas e ocupação de território; o
período seguinte, da agricultura, é de desenvolvimento e estabelecimento de pequenos núcleos fixos; e o terceiro é quando há o grande crescimento
urbano impulsionado pela indústria e pelo comércio. Uma fase servindo de impulso à outra e todas elas se refletindo na cidade de Santos, num
percurso que vai do natural ao urbano, da descoberta e ocupação ao estabelecimento de grandes contingentes humanos, intermediado pela agricultura.
O conjunto, painéis e vitral, converge a atenção do observador para o painel central
descrito anteriormente, o da fundação da vila de Santos, cuja cena é destacada por Calixto como ponto culminante de todo o processo histórico
analisado. Esse painel contrasta com os que o ladeiam, como já frisamos. No entanto, a relação com a idéia de crescimento urbano continua presente e
é enfatizada através das obras de construção da Igreja da Misericórdia e dos demais edifícios ao fundo. O destaque escolhido para o pequeno núcleo
inicial é justamente o da ampliação do mesmo, ou seja, da construção de mais um edifício. Podemos reparar que a idéia de "processo", de uma obra em
andamento, é reforçada pelo destaque dado por Calixto aos andaimes, necessários ao trabalho de alvenaria, que se apóiam nas paredes da futura
igreja.
Braz Cubas está em pé sobre a pequena plataforma que sustenta o pelourinho, símbolo do
poder público e da justiça durante o período escravista. Aqui também nota-se uma nova perspectiva temporal, a sucessão dos governadores, dos
trabalhadores, dos antigos e novos povoadores, e, acima de tudo, na formação de uma genealogia paulistana, como bem o percebeu D'Alvin, a partir da
mistura entre as raças, nas figuras de João Ramalho e Piquerobi, o primeiro retratado, e o segundo representado por sua filha, que desposou Antônio
Rodrigues.
No conjunto, emerge uma equação cujos protagonistas são a linhagem paulista, o meio
físico e a manifestação do resultado desse encontro ao longo de alguns séculos de convivência, nos quais é possível distinguir o progresso e o
desenvolvimento através de marcos significativos, a fundação, a agricultura e o estabelecimento da indústria e do comércio. A cidade é o lugar por
excelência da consolidação dessas conquistas, o centro decisório, o catalisador. O seu crescimento linear, regular, constante, é uma espécie de
prova desse progresso. Benedito Calixto apresenta Santos como o berço do país. Os lapsos de tempo servem para permitir o acabamento dessa vocação
construtiva inicial de um poder público obreiro.
Curioso nisso tudo é que Santos não recebe destaque enquanto cidade litorânea, parece
haver uma distância entre a cidade e o mar. Os pontos de vista de Calixto, panoramas da cidade de Santos que realizou, são tomados sempre do Oeste
para o Leste: a cidade parece vista de uma montanha, margeando um rio ou um lago, como se tivéssemos que descer encosta abaixo e atravessar o canal
para adentrá-la.
A cidade começa e se desenvolve, assim, de costas para o oceano. A Serra do Mar está
implícita. É dali que temos as melhores vistas panorâmicas de Santos e de toda a ilha de São Vicente. A cidade se apresenta mais como abrigo e ponto
de chegada de quem desce a serra do que de quem vem pelo mar. Nesse sentido, o que se valoriza é o porto exportador e não importador. Exportador dos
nossos produtos agrícolas. Convergência e conseqüência de um processo de desenvolvimento que aconteceu no interior.
ILUSTRAÇÃO 4 - Vitral representando os três grandes períodos do desenvolvimento do
Brasil, segundo Calixto
Imagem publicada com o texto
O traçado urbano em xadrez
É importante ressaltar, para entendermos melhor os painéis de Calixto, que sua obra é
contemporânea à elaboração de uma série de projetos de reurbanização da cidade de Santos, e que esses projetos compartilham, entre si e com as telas
de Calixto, uma série de elementos visuais recorrentes, denunciando, assim, todo um hábito visual presente naquela época, ligado à idéia de um
traçado de ruas bastante uniforme.
Como a maior parte das cidades portuguesas, Santos não se
desenvolveu, entretanto, dessa maneira simétrica. Segundo carta de Tomé de Souza destinada ao rei em 1 de junho de 1553, "estas
duas vilas de São Vicente e Santos não estão cerquadas e as casas de tal maneira espalhadas que não se podem cercar senão com muito trabalho e perda
os moradores, porque tem casas de pedra e cal e grandes quintais e tudo feito em desordem, por onde não lhe vejo melhor telha que em cada ua delas
que fazer-se no sítio em que puder e mais convinhavel para sua defensão, cada ua seu castelo, e desta maneira ficarão bem, segundo a qualidade da
terra e tudo deve-se logo prover nisto que com razão de ver fazer, doutra maneira estão mal"
[7].
Para Sérgio Buarque de Holanda, as cidades portuguesas se caracterizavam
pela ausência de rigor, "sua silhueta se enlaça na linha da paisagem" [8].
A cidade espanhola seguiu um caminho completamente diferente: "[...]
o próprio traçado dos centros urbanos na América Espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem
agreste: é um ato definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo, impõem-lhe antes o acento
voluntário da linha reta. O plano regular [...] foi simplesmente um triunfo da aspiração de ordenar e dominar o mundo conquistado. O traço
retilíneo, em que se exprime a direção da vontade a um fim previsto e eleito, manifesta bem esta deliberação."
[9].
Não queremos com esses trechos de textos antigos questionar a veracidade das telas de
Calixto, mas ressaltar o surgimento de uma nova visão com relação ao meio urbano e natural, ligada ao traçado retilíneo e regular. Essa nova
concepção urbana está diretamente ligada aos intoleráveis níveis de degradação ambiental a que a cidade estava sujeita.
As condições sanitárias eram alarmantes e as epidemias que assolavam o
local eram constantes e sempre levavam consigo grande número de habitantes [10].
Contam os viajantes, que por ali passaram, que o cheiro e a imundície eram insuportáveis e uma grande multidão pobre e doente perambulava pelas
ruas. Uma reforma urbana que alterasse esse quadro se impunha como necessidade e como questão de saúde coletiva, sendo amplamente discutida nos
órgãos públicos e na imprensa.
Através desses planos, percebe-se que a cidade que habitava a imaginação dos moradores
de Santos abrangia o espaço para os passeios de bicicleta, restaurantes, cafés e bares. Deveria parecer européia, mais precisamente, parisiense. Os
sinais da modernidade pululavam nos projetos que eram discutidos, e, entre os mais requeridos, estavam os sanitários públicos: as plantas das praças
continham sempre vários mictórios. Sonhava-se com chafarizes, ruas largas para as caminhadas, muito ar fresco para o deleite dos pulmões.
Os projetos elaborados pela comissão de saneamento denotam bem a expectativa que se
tinha com relação ao desenvolvimento futuro da cidade e também as projeções dos moradores, políticos, sanitaristas, engenheiros e demais pessoas
mais diretamente envolvidas no processo, a respeito do traçado urbano de Santos.
Um primeiro exemplo é o projeto de expansão da cidade proposto pela Câmara Municipal
de Santos em 1896 (Ilustração 5). A legenda é muito simples, contém três itens: quarteirões existentes, quarteirões
projetados; ruas existentes prejudicadas no projeto em xadrez. A particularidade que salta aos olhos é a ausência absoluta de qualquer via que não
seja retilínea, as poucas já existentes são as "prejudicadas no projeto".
Há uma predominância absoluta das linhas verticais e horizontais, sem qualquer
indicação de acidentes naturais, exceto as montanhas. As praças, indicadas pelos vários "P", estão dispostas de maneira regular e, com exceção de
duas, se encaixam perfeitamente no espaço de um quarteirão, não provocando o menor desvio.
No que diz respeito à cidade antiga, localizada no lado Norte da ilha, os quarteirões
não são tão simétricos quanto nas outras partes, mas o traçado foi alterado de modo a garantir a linearidade das ruas.
O projeto é de uma simplicidade e ao mesmo tempo de uma ingenuidade gritantes, pois é
absolutamente impraticável imprimir tal rede de vias numa topografia acidentada e irregular como a da ilha de São Vicente, com seus promontórios,
córregos e alagados.
Essa tentativa é uma entre muitas cuja execução, não sendo viável, foi abandonada. O
projeto finalmente aprovado e colocado em prática foi elaborado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento, F. Saturnino Rodrigues de Brito, em
1910. O triunfo da linha reta se mantém, mas dessa vez os acidentes naturais (rios, charcos, montes etc.) são equacionados.
Nas palavras do próprio Saturnino: "O
nosso projeto tem o caráter dos traçados reticulares não sistemáticos, com avenidas diagonaes que facilitem as communicações dos arrabaldes"
[11].
Um dos pontos de maior destaque nesse projeto é a separação do sistema de coleta de
esgoto do sistema de escoamento da água pluvial (os canais que ainda hoje cortam a cidade de Santos), responsáveis maiores pelas epidemias e pelo
mau cheiro.
Sobre esse complexo sistema de canais elaborados de acordo com as necessidades
regionais do escoamento da água imprimiu-se um sistema de vias retilíneo, mas com várias diagonais. Na planta há dois tabuleiros em xadrez que se
ligam, um que abrange a maior parte da ilha e outro que ocupa a Ponta da Praia, o primeiro no sentido Norte/Sul e o segundo no sentido Noroeste. A
defesa que Saturnino fez nos jornais a respeito de seu projeto associa diretamente o traçado retilíneo à solução mais eficiente e econômica para o
problema da água e da higiene.
Essas plantas revelam a preocupação dos munícipes e seus representantes em elaborar um
plano que solucionasse de maneira "racional" os problemas que os afligiam, através da linearidade no traçado urbano, com uma planta que fosse
passível de execução dadas as características naturais da ilha.
As telas de Calixto tematizam esse debate e apresentam a sua versão para a questão.
Obviamente, sua preocupação não era a de um urbanista, mas a de um artista e historiador que utiliza vários elementos comuns a essa discussão numa
equação pictórica própria que envolve a história de Santos e sua inserção na história da nação.
O ponto de vista escolhido para seus panoramas reforça a atenção do observador sobre o
traçado urbano. No Panorama de Santos em 1822 isto é evidente nos córregos e trilhas que apontam para o lado oposto da linha em relação ao
sítio original e que correm perpendiculares a ruas verticais já existentes, como se os acidentes naturais que condicionavam os caminhos dos
passantes sugerissem uma propensão natural à linearidade das vias, o que pode ser visto desde os tempos remotos da ocupação daquelas plagas.
O efeito é reforçado pela convergência de todos os traçados em direção ao ponto de
fuga, situado exatamente na linha central e que divide a tela ao meio no sentido vertical. A sensação causada é de repouso e conforto, os olhos
descem montanha abaixo, encontram a cidade plana cujo traçado aponta para o ponto de fuga no outro lado da ilha, num percurso sem desvios ou
acidentes. Parece espontâneo e lógico.
Já na sua apresentação de Santos em 1922, a ilha inteira está tomada pela regularidade
do xadrez. Se o ponto de vista em 1822 era quase que o melhor para a perspectiva desejada, pois a cidade era apenas um pequeno núcleo a Oeste da
ilha, em 1922 ele pode ser alterado, pois de qualquer ângulo que se observe a cidade o xadrez urbano é evidente.
A unidade dos painéis: o momento da fundação
A unidade do conjunto é trabalhada por Calixto através dos acessórios, os quais ele
utiliza como recurso para fazer convergir todas as telas numa só perspectiva, como se os traçados se unissem num único plano atemporal. Os
acessórios cumprem o papel de unificadores de todas as cenas numa única paisagem.
Se tomarmos as vistas isoladamente, elas parecem ter uma função meramente decorativa,
mas se atentarmos para o conjunto altera-se a percepção. Geralmente, os acessórios são dispostos em ambos os lados de um panorama ou cena, de modo a
chamar atenção para a cena principal através de um contraste de luz entre esse plano e o seguinte. No presente caso, os acessórios nos forçam a
entender os painéis em conjunto. Ao serem colocados em apenas um dos lados das paisagens periféricas, remetem para um equilíbrio visual que só pode
ser alcançado se tomarmos as três telas juntas. O acessório da esquerda se complementa e se equilibra no da direita. Ambos emolduram o conjunto todo
como se fosse uma paisagem só.
Esse equilíbrio é reforçado pela diferença entre os pontos de vista pelos quais a
cidade é retratada, pois de qualquer lado que seja observada ela sempre apresentará linhas horizontais e verticais em relação ao observador,
paralelas às linhas dos pontos cardeais Norte/Sul, Leste/Oeste, formando o mesmo tabuleiro em xadrez, na mesma direção escolhida pelos projetos
urbanos discutidos na época.
Num primeiro momento, no painel central, o traçado ainda é invisível, destacando-se
apenas o ímpeto construtor; no painel da esquerda ele está incompleto, mas insinuante; no outro, em 1922, já terminado, tomando toda a ilha. A
natureza, assim, é também inserida na perspectiva temporal. Não se trata da natureza tropical que envolve, estimula e intriga o observador, nem da
natureza provedora. É uma natureza que tem em si um plano, uma direção, e o desenvolvimento é justamente a comunhão da raça, da linhagem genealógica
legítima, do plano. O que está sendo retratado é a adequação de um ao outro, coincidência feliz e promissora.
As telas de Calixto, assim como as dos viajantes, devem ser entendidas em conjunto,
embora o efeito por ele almejado seja diferente. Os viajantes retratavam várias vistas como um esforço de registro da natureza, observar seus
trabalhos é como acompanhá-los em seu passeio. Calixto mantém esse efeito, mas acrescenta-lhe a dimensão temporal. A cidade apresenta-se mutante no
tempo, por isso não é solidamente estabelecida, não tem nada que denote eternidade, muito pelo contrário, ela se transfigura ao longo dos anos. Por
outro lado, a relação com o solo ainda é uma relação de sujeição, isto é, a cidade segue o traçado impresso "naturalmente" nos elementos da
geografia da ilha.
Nos pincéis de Calixto, a paisagem natural e a paisagem urbana não evocam experiências
díspares, não se contrapõem, elas se complementam em função de uma perspectiva histórica na qual natureza e sociedade devem existir em sintonia uma
com a outra. À natureza, que tem em si um princípio racional, sobrepõe-se a sociedade numa estrutura hierárquica ordenada, e o resultado é uma
cidade cuja urbanização traduz as qualidades dos dois primeiros elementos. A construção da cidade e seus prédios, e principalmente o seu traçado
urbano, são a resultante dessa conjugação, a prova de seu acontecimento, da sua eficiência, da sua racionalidade.
A sua visão de uma cidade moderna e organizada, portanto, não implica o rompimento com
o passado, mas, justamente, o oposto: a cidade é moderna porque credora do seu passado, isto é, credora da conjunção dos fatores que permitiram o
seu desenvolvimento. Os momentos celebrados nos painéis são aqueles nos quais essa conjunção de elementos é reforçada: a fundação da cidade,
independência e seu centenário, épocas retratadas em paisagens serenas, calmas, que evidenciam a organização social e urbanística.
Há, no entanto, um momento de perturbação dessa ordem, subentendida nos nomes dos
donatários ilustres realçados no friso, que denunciam as falcatruas do marquês de Cascaes contra a condessa de Vimieiro, como mostramos
anteriormente, momento esse associado ao período colonial, no qual o próprio rei teria tomado parte no conluio contra a condessa (Calixto, 1924).
À celebração da independência contrapõe-se a denúncia da colônia. Nessa perspectiva, a
fundação da cidade não tem sentido se for vista como um ato fechado em si mesmo, mas como o ponto de partida de um processo que é preciso entender e
impulsionar, ou acontece o seu desvio, como na colônia.
O recurso unificador dos acessórios faz com que as referências temporais sejam
relativizadas. Benedito Calixto está naturalizando um processo, como se as leis da natureza fossem tão verdadeiras que de qualquer ponto, no tempo
ou no espaço, dadas certas características, poder-se-ia adivinhar o desenvolvimento futuro ou o passado.
No painel central é onde se revelam essas características essenciais: esta cena
central parece mais um close de luneta tomado a partir de um dos pontos dos quais se avista Santos, assemelhando-se a um destaque ampliado da
paisagem, no qual se enfatiza a configuração do povo, ou linhagem, e a tomada de contato efetivo, ordenado, regulado pelo poder público, com a
terra, o meio natural.
Ao contrário do que se poderia imaginar a princípio, ou seja, de que Calixto estaria
contestando a exatidão da data ou da autoria da fundação da cidade, ao apresentar Santos já com algumas casas quando da chegada de Braz Cubas, ele o
está reforçando numa outra perspectiva, ou seja, está construindo a sua tese a respeito do momento da fundação. Não exatamente o da chegada do
primeiro português, do estabelecimento do primeiro engenho, câmara, construção do porto ou qualquer outro indício físico específico, mas o momento
em que três fatores se conjugam: um novo povo, uma natureza e um poder organizado e instituído. Para ele, esse encontro é o momento da fundação por
excelência.
ILUSTRAÇÃO 5 - Projeto de expansão da cidade de Santos
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(*) Caleb Faria
Alves é doutorando em Ciências Sociais pela FFLCH-USP.
NOTAS:
[1] Benedito Calixto de Jesus
foi pintor e historiador, nasceu em Itanhaém em 1853 e morreu em São Paulo em 1927. Morou a maior parte de sua vida em São Vicente e ficou conhecido
como grande marinhista e pintor de temas históricos. Começou a carreira como autodidata mas conseguiu meios, em 1883, para estudar na Academia
Julian, em Paris.
[2] Essas 28 telas são as
seguintes: "Rancho Grande - Terceira Igreja e Hospital da Misericórdia",
"Quatro Cantos e Casa das Beatas", "Largo da Matriz", "Collegio e Quartéis",
"Páteo da Cadeia", "Casa do Conselho", "Pelourinho e Arsenal de Marinha",
"Forte de Itapema", "Porto do Bispo", "Casa do trem",
"Capella de Santa Catharina", "Casa forte do tempo de Martim Affonso em São Vicente", "Ruínas da Capella
das Neves", "Ruína da Capela de Frei Gaspar", "Fazenda do Acarahú", "Aspecto do Porto de Santos"
- Câmara Municipal de Santos; "O porto de Santos, antes do caes" - Benjamim de Mendonça; "Praia do Consulado",
onde se observa o antigo mercado, as longas pontes de embarque/desembarque (anteriores à construção do caes, da estrada
de ferro ingleza, da Mesa de Rendas e das principais firmas commerciaes - Zerrenner, Bülow & Cia., Augusto Leuba &
Cia. e outras) - offerecido por Julio Conceição À Câmara Municipal de Santos; "Capela da Graça" - Arcebispo D. Duarte Leopoldo, São Paulo;
São Paulo, "Canto de Praia", onde em 1532 desembarcou Martim Affonso - xxx; "Porto
das Naus" - xxx; "Porto Tumyaru" - xxx; "Carro de Boi" (2) - Família Calixto;
"Convento de N. S. da Conceição" - Itanhaém - xxx; "Praia de Peruhybe e Trabalho de Saneamento" - 1902 - offerecido pelo auctor a
Júlio Conceição; "O vulcão em Santos", no Macuco, setembro de 1896 - Francisco de Andrade; "O carro de boi" - família B. Calixto; "Eva
no Paraíso" (Júlio Conceição, Benedito Calixto - Traços Biographicos, Empreza Graphica da Revista dos
Tribunaes, 1929). É preciso frisar ainda que Calixto já havia pintado outros panoramas da cidade de Santos ao longo de sua carreira, um dos
quais, inclusive, lhe valeu uma premiação na Exposição Geral de Belas Artes de 1898. (N. E.: alguns dos vínculos acima
podem levar a telas diferentes das citadas).
[3] A título de exemplo das
recorrências nas paisagens cariocas elaboradas pelos viajantes, podemos citar o que talvez seja a vista mais retratada: a Igreja da Nossa Senhora do
Outeiro, pintada por Thomas Ender, Ludwig Czerny, Pieter Godfred Bertchen, entre outros. Uma visão mais aprofundada sobre as paisagens dos viajantes
pode ser encontrada na obra O Brasil dos Viajantes, particularmente no terceiro volume: A Construção da Paisagem, de Ana Maria de
Moraes Belluzzo, São Paulo, Metalivros, 1994.
[4] Lilia K. Moritz Schwarcz,
Os Guardiões da Nossa História Oficial, Idesp, Série História das Ciências Sociais, nº 9, 1989, p. 45.
[5] A identificação dos
personagens e edificações foi baseada, principalmente, em Thomas D'Alvin, O Grande Pintor Brasileiro Benedito Calixto, Sua Vida e suas Obras,
in revista Portugal, 23 de junho de 1927, 2ª série, nº 102, pp. 338-44, e nº 103, pp. 371-75.
[6] Calixto escreveu uma obra
bastante aprofundada a esse respeito, na qual explicita a sua visão sobre a sucessão dos direitos nas capitanias de Santo Amaro e São Vicente:
Benedito Calixto, Capitanias Paulistas, São Paulo, Estabelecimento Gráfico J. Rossetti, 1924.
[7] Tomé de Souza apud
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 26ª edição, José Olympio, Rio de Janeiro, 1994, p. 75.
[8] Sérgio Buarque de Holanda,
op. cit. p. 76.
[9] Idem, ibidem, p. 62.
[10] Entre 1849 e 1904 a
febre amarela atinge a cidade 31 vezes, a varíola aparece em 1863, 1865, cinco vezes na década de 70, em 1887, 1888, 1892 e 1894. Outras doenças
constantes eram impaludismo, o sarampão e a tuberculose. Só a tuberculose matou mais de cem pessoas por ano entre 1892 e 1913. Para mais dados ver
Wilma Terezinha Fernandes de Andrade, O Discurso do Progresso: a Evolução Urbana de Santos, 1870-1930, tese de doutoramento apresentada à
Faculdade de História da FFLCH-USP, 1989. Nessa tese e no livro de Ana Lúcia Duarte Lanna, Uma Cidade na Transição - Santos: 1870-1913 (Hucitec
e Prefeitura Municipal de Santos, 1996), pode ser encontrada uma visão mais aprofundada das transformações urbanas sofridas por Santos no período.
[11] F. Saturnino Rodrigues
de Brito, A Planta de Santos, São Paulo, Typographia Brasil de Rothschild & Co., 1915, p. 11.
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