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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
Iconografia santista (2)

Esta análise foi publicada na Revista USP nº 41, de março/maio de 1999, editada pela Coordenadoria de Comunicação Social da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista (páginas 48-61):


William John Burchell: Rua Direita. Santos (1826)
Reproduzido de Gilberto Ferrez. O Brasil do Primeiro Reinado Visto pelo Botânico William John Burchell 1815/1829. Rio de Janeiro, Fund. João Moreira Salles/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981
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A cidade de Santos: iconografia e história

Benedito Lima de Toledo (*)

A iconografia da cidade de Santos foi grandemente enriquecida com a divulgação dos trabalhos de dois artistas ingleses que aqui estiveram na terceira década do século XIX, Landseer e Burchell. Até data relativamente recente, o trabalho desses artistas era desconhecido.

Landseer integrou a comitiva de sir Charles Stuart vinda ao Brasil nas negociações para reconhecimento da Independência. Burchell era botânico e residiu algum tempo em Santos. Ambos eram extraordinários desenhistas e suas obras se caracterizam por grande rigor documental.


Charles Landseer: Cidade de Santos (1825)
Reproduzido de Landseer. São Paulo, Cândido Guinle de Paula Machado, 1972
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A Landseer devemos uma vista de Santos tomada provavelmente da Ilha Barnabé, que abarca toda a cidade. Vemos a face Norte da Cidade, voltada para o mar. No extremo esquerdo, figura o Outeiro de Santa Catarina coroado pela capela do mesmo nome. Ao pé do outeiro, ergue-se a Casa do Trem, construção que subsistiu ao arrasamento do outeiro, constituindo-se, portanto, em importante referencial urbano. No outro extremo, pode-se distinguir o Convento de Santo Antônio do Valongo.

Bem ao centro da composição, destaca-se o conjunto do Convento do Carmo, com sua torre ladeada pela igreja conventual e pela terceira. É possível identificar o forte da vila, construção de pequeno vulto, atrás da qual ficava o Colégio dos Jesuítas e a Matriz. Ao longe, é perceptível o Mosteiro de São Bento e, no coroamento do morro do mesmo nome, a Igreja de Monteserrate.

As construções voltadas ao mar são desenhadas com pormenores. Estamos diante do melhor registro da cidade de Santos, tal como se apresentava no período colonial.


William John Burchell: Mosteiro Beneditino. Santos (1826)
Reproduzido de Gilberto Ferrez. O Brasil do Primeiro Reinado Visto pelo Botânico William John Burchell 1815/1829. Rio de Janeiro, Fund. João Moreira Salles/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981
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O botânico Burchell morou durante dois meses em uma casa junto ao Rio das Pedras, estudando a flora da Serra do Mar. Os desenhos que realizou da cidade de Santos são datados e situam-se entre outubro e dezembro de 1826. Registram pontos notáveis da Cidade, com a Capela e Outeiro de Santa Catarina, o Convento de Santo Antônio do Valongo, o Mosteiro de São Bento e a marinha do porto de Santos.


William John Burchell: Marinha do Porto de Santos (1826)
Reproduzido de Gilberto Ferrez. O Brasil do Primeiro Reinado Visto pelo Botânico William John Burchell 1815/1829. Rio de Janeiro, Fund. João Moreira Salles/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981
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Esta última peça constitui um minucioso documento da cidade que, de certo modo, complementa a perspectiva realizada por Landseer. Há, ainda, um desenho aquarelado, particularmente importante por nos apresentar a Rua Direita, a rua mais importante da cidade. Esse desenho permite-nos ver pormenores arquitetônicos significativos para o entendimento da arquitetura e das vias de comunicação desse núcleo urbano.

O conjunto da obra desses dois artistas ingleses é particularmente importante por seu rigor e riqueza de pormenores.


William John Burchell: Capela de Santa Catarina. Santos (1826)
Reproduzido de Gilberto Ferrez. O Brasil do Primeiro Reinado Visto pelo Botânico William John Burchell 1815/1829. Rio de Janeiro, Fund. João Moreira Salles/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981
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Na segunda metade do século XIX a cidade mereceu um registro fotográfico de primeira qualidade devido ao fotógrafo Militão de Azevedo. Como se recorda, esse fotógrafo tinha seu ateliê em São Paulo, onde, além da atividade usual entre os profissionais da época, realizou fotografias da cidade, tendo adquirido notoriedade o seu Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo 1862-1887. Esse conjunto de fotografias (cerca de 60) constitui a melhor documentação disponível da cidade, sendo referência obrigatória para todos os estudiosos do assunto.

Menos conhecido é o conjunto de fotografias que realizou da cidade de Santos, contemporâneas das realizadas para o Álbum Comparativo e com características em tudo semelhantes. Retrata os logradouros públicos de forma despojada, ou seja, não há preocupação em criar atmosfera que favoreça a cidade, nem efeitos especiais. Pode-se encontrar pontos em comum com fotógrafos parisienses da época, como Charles Marville, a quem devemos uma documentação sistemática das extensas intervenções em Paris ao tempo de Haussman.


Militão de Azevedo: Colégio dos Jesuítas, Santos
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À semelhança do que realizou na capital, as fotografias referem-se a logradouros mais significativos, sendo que a natureza da cidade induz à documentação da paisagem. Assim, o fotógrafo realizou vistas panorâmicas tomadas de pontos de outro lado do canal e dos morros à volta.

Além disso, um exame mais acurado permitiu ver que algumas fotos foram tomadas do mesmo ponto e em seqüência, permitindo sua justaposição. Numa dessas associações, o resultado é uma panorâmica em tudo semelhante ao desenho que Burchell realizou do porto, com a Igreja de Jesus Maria José em primeiro plano.


Militão de Azevedo: Porto de Santos (conjunto de duas fotografias)
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As fotos de Militão constituem um utilíssimo instrumento para estudo da estrutura urbana de Santos, de sua arquitetura, do equipamento urbano e até de formas com que a população utilizava sua cidade, embora este último não fosse o objetivo do fotógrafo. O porto aparece com seus belos veleiros ancorados e a casa da Alfândega.


Militão de Azevedo: Convento e Igreja do Carmo, Santos
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A rua que apresenta as melhores edificações e melhor calçamento é a Rua Direita. Nela vemos a cadeia antiga, próximo ao conjunto do Carmo, que as fotos mostram ser uma sólida construção de pedra e cal, edifício setecentista que sobreviveu sem significativas modificações.

O Mosteiro de São Bento, datado de 1649, é visto em sua forma original, sem as alterações posteriores. A pequena e atarracada Igreja de Jesus, Maria, José, que viria a ser demolida em 1902, é mais um exemplo da solidez das construções litorâneas.

Mas, dos edifícios religiosos, o mais significativo é o antigo Colégio dos Jesuítas, do qual talvez essa foto seja o único registro a sobreviver. Esse edifício foi projetado pelo irmão Francisco Dias, que foi mestre de obras da Igreja dos Jesuítas em Lisboa (São Roque) e foi enviado ao Brasil com o objetivo de projetar os colégios da Companhia. Francisco Dias chegou a Salvador em 1577 e imediatamente assumiu a direção dos trabalhos. Além do Colégio de Salvador, projetou o do Rio de Janeiro (1585), Olinda (1592) e Santos (1598).

Após a expulsão dos jesuítas, o Colégio de Santos conheceu outras destinações, entre elas a de alfândega. Uma planta existente no Arquivo Militar do Rio de Janeiro, datada de 1821, de autoria provável do brigadeiro João da Costa Ferreira, mostra o edifício em ruínas, mas ainda é possível ver sua configuração. Esse desenho e a foto de Militão permitem fazer uma reconstituição desse notável edifício que a cidade de Santos perdeu.

A arquitetura civil está fartamente documentada, com muitos lances de sobrados com comércio no térreo e residência no pavimento superior. Há tropas de mulas pelas ruas, além de animais pastando no vasto campo situado em frente à Casa de Câmara e Cadeia, um edifício de proporções elegantes que havia sido concluído em 1865. O conjunto de fotos de Militão de Azevedo constitui, portanto, um valioso instrumento para estudo da cidade de Santos.


Militão de Azevedo: Casa de Câmara e Cadeia. Santos.
Ao fundo, Igreja de São Francisco de Paula da Santa Casa de Misericórdia
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No Arquivo Histórico Municipal de Santos há um documento intitulado "Mappa da Cidade de Santos e de S. Vicente. Seos edificios publicos. Hoteis, Linhas ferreas e de Bonds, Igrejas, Passeios, Publicado por J. Martin Editor. 1878". Jules Martin era um litógrafo interessado em assuntos urbanos e que viria apresentar à Câmara Municipal de São Paulo a idéia de se construir, em São Paulo, uma via unindo o Triângulo à Cidade Nova, hoje conhecida como Viaduto do Chá.

Na sua oficina realizou vários trabalhos de cartografia relativos a São Paulo. Se suas peças não primavam pelo rigor, não há que negar, porém, que eram pitorescas como essa acima referida. No mapa de Santos estão representados edifícios em perspectiva e indicação de sua situação, o que torna esta peça muito útil. Talvez o objetivo fosse realizar um mapa turístico que acabou se tornando um documento histórico.

Para se compreender a estrutura urbana de Santos, muito útil é um documento intitulado "Planta da Villa de Santos na epoca da Independencia. 1822. Organizada de accordo com os documentos por B. Calixto. Desenhada pelo Architecto Sizenando Calixto". Com esse minucioso documento em mãos, melhor poderemos apreciar a portentosa tela pertencente ao acervo do Museu Paullista da Universidade de São Paulo intitulada Panorama de Santos (136 x 300 cm) que devemos ao mesmo Calixto. A vocação para historiador e pintor está presente em ambos os documentos. É de se supor que o trabalho cartográfico terá precedido o do pintor que, em seus três metros de tela, nos apresenta uma vista a vol d'oiseau de um núcleo urbano desenvolvendo-se em um rico quadro natural.

A vila é cortada por alguns ribeirões que descem dos outeiros, onde se localizavam as nascentes. Esse sistema poderia ser a base do abastecimento da vila em sua primeira fase. Três são os ribeirões que comparecem na planta de Calixto: o Ribeirão do Carmo ou Itororó, passando ao lado do Convento do Carmo; o Ribeirão São Jerônimo, que desemboca ao lado da Igreja de Jesus, Maria, José; e o Ribeirão de São Bento, o qual, nascendo junto ao mosteiro desse nome, dirige-se ao mar, passando frente ao Convento de Santo Antônio, no bairro do Valongo.

A estrutura da Cidade que se depreende desses documentos é bem característica das cidades do mundo colonial português. Paralelamente à linha costeira, desenvolve-se a Rua Direita, onde vão se situar os principais edifícios da vila, oficiais, religiosos ou particulares. Esse eixo da Rua Direita é arrematado pelo Outeiro de Santa Catarina, em cujo topo erguia-se a capela daquela invocação, a mais antiga da vila e que desapareceu com o arrasamento daquele outeiro.


Militão de Azevedo: Rua Direita, Santos
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Paralelamente à Rua Direita, e para o interior, duas ruas são indicadas, ainda pontilhadas, na planta de Calixto: a Rua Áurea e a Rua do Rosário, ambas articulando-se com antigos caminhos que estariam, certamente, em sua origem. O extremo ocidental da cidade é balizado pelo Convento de Santo Antônio do Valongo. Perpendicularmente às três vias referidas, um conjunto de ruas desce em direção à costa e, ainda uma vez, vinculadas a antigos caminhos. O resultado é um núcleo urbano formado por um reticulado ortogonal.

Outras telas de Calixto atestam a íntima relação da cidade com o mar, como a intitulada Banca de Peixe e Mercado das Canoas. O porto, os veleiros são freqüentes em suas telas. Fica evidente que Calixto se valeu de fotos de Militão. O pintor realizou, mesmo, transposição integral para a tela de algumas dessas fotos que, nesse processo, ganhavam as intensas cores que caracterizam as telas desse artista. Calixto não chegou a conhecer os desenhos de Landseer e Burchell, que poderiam ter sido de grande utilidade em seu louvável empenho em resgatar a história e a evolução da cidade de Santos.

Algumas plantas existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa constituem documentos fundamentais para o estudo da estrutura urbana de Santos. Refiro-me a um plano elaborado pelo brigadeiro João Massé de cerca de 1714, segundo os registros daquele arquivo. Há duas plantas, ligeiramente diferentes, com a mesma designação: "Planta da Villa de Santos E de seu Porto, com suas Fortificaçoens dessinadas de novo". Quanto às fortificações, há duas folhas respectivamente com as legendas: "Planta de hua Fortaleza dessinada de novo na Villa de Santos, cuja explicação vay em hum papel a parte". Na outra lê-se "Fortaleza de Itapema, no Rio defronte da Villa de Santos".

(É oportuno lembrar que a expressão "de novo" significa tratar-se de projeto novo. Coisa semelhante acontece em relatos de viajantes que ao chegar pela primeira vez a uma localidade escreviam "estivemos em tal localidade de novo".)

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"Mappa da Cidade de Santos e de S. Vicente. Seos edificios publicos. Hoteis, Linhas ferreas e de Bonds, Igrejas, Passeios. Publicado por J. Martin Editor. 1878"
(Arquivo Histórico Municipal de Santos)
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João de Massé era capitão de engenheiros e, segundo Souza Viterbo, "em 1712 passou com o posto de brigadeiro ao Brasil para examinar e reparar as fortificações daquele Estado" [1]. São bem conhecidas duas plantas suas, uma da cidade do Rio de Janeiro, datada de 1713, e outra de Salvador, datada de 1715. A primeira pertence ao Serviço Geográfico do Exército e a segunda ao Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. São plantas desenhadas em escala. Augusto da Silva Telles chama a atenção para o fato de ser a primeira do Rio de Janeiro com essa característica.

Em seu plano, Massé propunha a construção de um muro defensivo unindo o Morro do Castelo ao da Conceição, com cerca de 300 braças de extensão, destinado a proteger a cidade do lado do continente. Observando-se essas plantas, vêm-nos à mente as observações feitas pelo geógrafo Aroldo Azevedo em estudo datado de 1956: "Tudo parece indicar que os aglomerados criados, que resultaram de um propósito deliberado das autoridades coloniais, obedeciam, em suas origens, a um plano regular e geométrico, se bem que adaptado às características topográficas. Sem demora, porém, deixava-se de lado essa preocupação urbanística e a expansão passava a se realizar de maneira espontânea, sem obedecer a nenhuma diretriz, daí resultando a irregularidade no traçado das ruas, tortuosas quase sempre" [2].

Para exemplificar sua tese, o geógrafo refere-se a uma planta do século XVIII de Salvador que "mostra claramente que o centro primitivo, na Cidade Alta, era regular e as ruas cortavam-se em ângulo reto, constituindo um verdadeiro tabuleiro de xadrez, bem ao contrário do que se passava no resto da cidade" [3].

Aroldo Azevedo refere-se, ainda, a uma observação de Tomás Davatz, para quem "as cidades brasileiras, conforme pude apreciar, obedecem no traçado das ruas e praças a um plano regular" [4], o que o geógrafo considera uma generalização indevida.

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Pormenor da "Planta da Villa de Santos na epoca da Independencia. 1822. Organizada de accordo com os documentos por B. Calixto. Desenhada pelo Architecto Sizenando Calixto"
(Arquivo Histórico Municipal de Santos). Clique na imagem para ampliá-la
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As cidades portuguesas surgidas após a Reconquista, construídas em sítios elevados e cercadas de muros, apesar da irregularidade do terreno, apresentavam plano regular, seguindo um modelo geométrico. É o caso de Monsaraz, Redondo e Vila Viçosa. Essas observações são de Manuel Teixeira, que afirma, ainda, que o principal elemento estruturador dessas cidades é a Rua Direita, que cruzava a cidade longitudinalmente, unindo as duas portas da vila ou a porta principal ao castelo da vila, situado no outro extremo. Uma pequena praça abria-se à margem dessa rua, onde vamos encontrar a igreja, a câmara e outros edifícios públicos. Ruas secundárias eram traçadas paralela e perpendicularmente, formando um modelo urbano regular.

Esse autor conclui que "mesmo em áreas urbanas aparentemente espontâneas havia um certo grau de planejamento e continham referências a formas mais eruditas de estrutura urbana que viriam a ser plenamente desenvolvidas no século seguinte" [5].

Nas cidades costeiras, freqüentemente ocorria um esquema semelhante. Em cada extremo de uma baía era implantada uma fortificação e, unindo as duas, surgia a Rua Direita e a pequena praça com as características acima descritas. Mário Chicó, de outra parte, chama a atenção para cidades da Índia, que tiveram que ser construídas rapidamente e onde foram adotados modelos de cidades renascentistas, a exemplo de Damão e Baçaim [6].

Tendo presentes as plantas elaboradas por João de Massé, podemos fazer algumas considerações: a configuração triangular do núcleo inicial de Salvador foi decorrência das peculiaridades do sítio sobre o qual foram estabelecidas as linhas de fortificação. É a interpretação de Jorge Enrique Hardoy, que acrescenta: "Dentro de ellas fueran trazadas cuatro calles longitudinales y tres transversales. La calle Direita dos Mercados era el eje principal, y unia a las dos puertas de la ciudad" [7]. À margem dessa Rua Direita abrem-se as praças, configuração bem conhecida.


Benedito Calixto: Panorama de Santos (1822), óleo sobre tela (136 x 300 cm)
Acervo Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A painter by the sea,
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP

Na planta do Rio de Janeiro, a importância da Rua Direita fica mais evidente. Para ela se abrem o Largo do Carmo, a Casa dos Governadores, a Casa da Moeda, o Armazém da Alfândega e outros edifícios notáveis. Em 1787, John White afirma que "a rua é larga, bem construída, e possui um grande número de belas lojas. Todas as outras são muito inferiores a ela". É a impressão que nos transmite o belo desenho que nos legou o austríaco Thomas Ender.

Examinando-se a "Planta da Villa de Santos", vemos que Massé adota soluções semelhantes às que propôs para o Rio de Janeiro. A planta é desenhada em escala, havendo à margem um "Petipé de 120 Brassas". Foi projetado um muro defensivo, à semelhança do Rio de Janeiro, para prevenir ataques vindos de terra. Toda a cidade estrutura-se em torno da Rua Direita. A matriz, o Conjunto do Carmo, o Colégio dos Padres da Companhia abrem-se para esse eixo.

Para defesa são previstos dois redutos servindo de atalaia. Um no topo do Outeiro de Montesserrate e outro no Morro de São Bento. Duas fortificações são propostas: uma no Outeiro de Santa Catarina, que implicaria o desaparecimento da capela ali existente. Essa fortificação obedece a princípios constantes nos tratados de fortificação da época. É uma fortaleza abaluartada com todos os complementos. Não chegou a ser construída. A outra fortificação é a Fortaleza de Itapema, que viria a ser construída "no Rio defronte da Villa de Santos".

É preciso lembrar que Massé desfrutava de grande prestígio na corte por seus conhecimentos de engenharia militar, como pode ser constatado no episódio de sua indicação de 1727, por ordem de El-Rei, para sensor do tratado de fortificação, conhecido como O Engenheiro Portuguez de Azevedo Fortes, o mais notável de seu tempo. Deve-se notar que a fortaleza projetada para Santos data de 1714 e rege-se pelo método abaluartado.

O projeto de Massé revela, ainda, preocupação com a função portuária. Ao longo da costa é criado um "Cays dessinado de novo com seu molho". Está prevista uma alfândega e um "Porto aonde dão fundo os navios".

Tudo indica que o brigadeiro de origem francesa, enviado por d. João V para "examinar e reparar as fortificações daquele Estado", tinha visão mais ampla do problema urbano e mantinha-se fiel à tradição portuguesa no planejamento de cidades. Teve, ainda, percepção para o futuro que estaria reservado a Santos como cidade portuária.

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João Massé: "Planta da Villa de Santos E de seu Porto, com suas Fortificaçoens dessinadas de novo" (c. 1714). (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). Clique na imagem para ampliá-la
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(*) Benedito Lima de Toledo é professor de História da Arquitetura da FAU-USP.


NOTAS:

[1] Souza Viterbo, Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses. Ed. Fac-símile. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988, p. 154.

[2] Aroldo de Azevedo, Vilas e Cidades do Brasil Colonial: Ensaio de Geografia Urbana Retrospectiva. Separata do Boletim de Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, n. 208, 1956, p. 72.

[3] Idem, ibidem, p. 72.

[4] Tomás Davatz, Memórias de um Colono no Brasil, apud Aroldo de Azevedo, op. cit. item 2, p.73.

[5] Manuel C. Teixeira, "Portuguese Traditional Settlements, a Result of Cultural Miscegenation", in The International Association for the Study of Traditional Environments Review. Berkeley, v. 1, n. 2, Spring, 1990.

[6] Mário Chicó, A Cidade Ideal do Renascimento e as Cidades Portuguesas da Índia, apud Manuel C. Teixeira, op. cit., item 5.

[7] Jorge Enrique Hardoy, La Urbanización en America Latina. Buenos Aires. Editorial del Instituto, 1969, p. 22.


João Massé: "Fortaleza de Itapema, no Rio defronte da Villa de Santos" (c. 1714)
(Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa)
Imagem enviada a Novo Milênio pelo jornalista Miguel Netto, de São Vicente


BIBLIOGRAFIA:

AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e Cidades do Brasil Colonial: Ensaio de Geografia Urbana Retrospectiva. Separata do Boletim de Geografia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, n. 208, 1956.

BARREIROS, Eduardo Canabrava. Atlas da Evolução Urbana da Cidade do Rio de Janeiro. Ensaio. 1565-1965. Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1965.

FERREZ, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender 1817. Rio de Janeiro. Fundação João Moreira Salles, 1976.

_______. O Brasil do Primeiro Reinado Visto pelo Botânico William John Burchell 1825/1829. Rio de Janeiro, Fundação João Moreira Salles/Fundação Nacional Pró-Memória, 1981.

HARDOY, Jorge Enrique. La Urbanización en America Latina. Buenos Aires. Editorial del Instituto, 1969.

LANDSEER. São Paulo. Cândido Guinle de Paula Machado, 1972.

PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Benedito Calixto: Memória Paulista. São Paulo, Projeto/Banespa/Pinacoteca do Estado, 1990.

SILVA TELLES, Augusto Carlos. Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil, Rio de Janeiro, MEC/DAC/Fename, 1975.

SOUSA VITERBO. Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses. Ed. Fac-símile. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988.

TEIXEIRA, Manuel C. "Portuguese Traditional Settlements, a Result of Cultural Miscegenation", in The International Association for the Study of Traditional Environments Review. Berkeley, v. 1, n. 2, Spring, 1990.

TOLEDO, Benedito Lima de. O Real Corpo de Engenheiros na Capitania de São Paulo, Destacando-se a Obra do Brigadeiro João da Costa Ferreira. São Paulo, João Fortes Engenharia/Ex-Libris, 1981.

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João Massé: "Planta de hua Fortaleza dessinada de novo na Villa de Santos, cuja explicaçãao vay em hum papel a parte" (c. 1714). (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa)
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