Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 17 — Noticia
etnográfica do gentio tupinambá que povoava a Bahia
Capítulo
CLXXIV
Em que se declara o que os tupinambás fazem do contrário
que mataram.
Acabado de morrer este preso, o espedaçam logo os velhos da aldeia, e tiram-lhe as tripas e fressura
[principais órgãos internos: fígado, coração, pulmões], que mal lavadas, cozem e assam para comer; e reparte-se a carne por todas as casas da aldeia e pelos hóspedes que vieram de fora para ver estas
festas e matanças, a qual carne se coze logo para se comer nos mesmos dias de festas, e outra assam muito afastada do fogo de maneira que fica muito
mirrada, a que este gentio chama moquém, a qual se não come por mantimento, senão por vingança; e os homens mancebos e mulheres moças
provam-na somente, e os velhos e velhas são os que se metem nesta carniça muito, e guardam alguma da assada do moquém por relíquias, para com
ela de novo tornarem a fazer festas, se se não oferecer tão cedo matarem outro contrário.
E os hóspedes que vieram de fora a ver esta festa levam o seu quinhão de carne que lhe deram do morto, assada do moquém para as suas
aldeias, onde como chegam fazem grandes vinhos para, com grandes festas, segundo sua gentilidade, os beberem sobre esta carne humana que levam, a
qual repartem por todos da aldeia, para a provarem, e se alegrarem em vingança de seu contrário que padeceu, como fica dito.
Acontece muitas vezes cativar um tupinambá a um contrário na guerra, onde o não quis matar para o trazer cativo para a sua aldeia, onde o faz
engordar com as cerimônias já declaradas para o deixar matar a seu filho quando é moço e não tem idade para ir à guerra, o qual mata em terreiro,
como fica dito, com as mesmas cerimônias; mas atam as mãos ao que há de padecer, para com isso o filho tomar nome novo e ficar armado cavaleiro, e
mui estimado de todos.
E se este moço matador, ou outro algum, se não quer riscar quando toma novo nome, contentam-se com se tingir de jenipapo, e deixar crescer o
cabelo e tosquiá-lo, com as cerimônias atrás declaradas; e os que se riscam quando tomam nome novo, a cada nome que tomam fazem sua feição de lavor,
que para eles é grande bizarria, para que se veja quantos nomes tem. |