Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 4 — Da
agricultura da Bahia
Capítulo
XLII
Em que se declara que coisa é farinha-de-guerra, e como
se faz da carimã, e outras coisas.
Farinha-de-guerra se diz, porque o gentio do Brasil costuma chamar-lhe assim pela sua língua, porque quando determinam de a ir fazer a seus
contrários algumas jornadas fora de sua casa, se provêm desta farinha, que levam às costas ensacada em uns fardos de folhas que para isso fazem, da
feição de uns de couro, em que da Índia trazem especiaria e arroz; mas são muito mais pequenos, onde levam esta farinha muito calcada e enfolhada,
de maneira que, ainda que lhe caia num rio, e que lhe chova em cima, não se molha.
Para se fazer esta farinha se faz prestes muita soma de carimã, a qual, depois de rapada, a pisam num pilão que para isso têm, e como é bem pisada
a peneiram muito bem, como no capítulo antes fica dito.
E como têm esta carimã prestes, tomam as raízes da mandioca por curtir, e ralam como convém uma soma delas, e, depois de espremidas, como se faz à
primeira farinha que dissemos atrás, lançam uma pouca desta massa num alguidar que está sobre o fogo, e por cima dela uma pouca de farinha da carimã
e, embrulhada uma com outra, a vão mexendo sobre o fogo, e assim como se vai cozendo lhe vão lançando do pó da carimã, e trazem-na sobre o fogo, até
que fica muito enxuta e torrada, que a tiram fora.
Desta farinha-de-guerra usam os portugueses que não têm roças, e os que estão fora delas na cidade, com que sustentam seus criados e escravos, e
nos engenhos se provêm dela para sustentarem a gente em tempo de necessidade, e os navios que vêm do Brasil para estes reinos não têm outro remédio
de matalotagem, para se sustentar a gente até Portugal, senão o da farinha-de-guerra; e um alqueire dela da medida da Bahia, que tem dois de
Portugal, se dá de regra a cada homem para um mês, a qual farinha-de-guerra é muito sadia e desenfastiada, e molhada no caldo da carne ou do peixe
fica branda e tão saborosa como cuscuz.
Também costumam levar para o mar matalotagem de beijus grossos muito torrados, que dura um ano, e mais sem se danarem, como a farinha-de-guerra.
Desta carimã e pó dela bem peneirado fazem os portugueses muito bom pão, e bolos amassados com leite e gemas de ovos, e desta mesma massa fazem
mil invenções de
beilhós, mais saborosos que de farinha de trigo, com os mesmos materiais, e pelas festas fazem as frutas doces com a massa desta carimã, em
lugar da farinha de trigo, e se a que vai à Bahia do reino não é muito alva e fresca, querem as mulheres antes a farinha de carimã, que é alvíssima
e lavra-se melhor com a qual fazem tudo muito primo. |