Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
PRIMEIRA PARTE - ROTEIRO GERAL DA COSTA BRASÍLICA
Capítulo XXXII
Em que se declara quem são os aimorés, sua vida e
costumes.
Parece razão que não passemos avante sem declarar que gentio é este a quem chamam aimorés, que tanto dano têm feito a esta capitania dos Ilhéus,
segundo fica dito, cuja costa era povoada dos tupiniquins, os quais a despovoaram com medo destes brutos, e se foram viver ao sertão; dos quais
tupiniquins não há já nesta capitania senão duas aldeias, que estão junto dos engenhos de Henrique Luís, as quais têm já muito pouca gente.
Descendem estes aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos quais nos tempos de atrás se ausentaram certos casais, e foram-se para umas
serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os puseram seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os que destes
descenderam, vieram a perder a linguagem e fizeram outra nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este Estado do Brasil. E
são estes aimorés tão selvagens que, dos outros bárbaros, são havidos por mais que bárbaros, e alguns se tomaram já vivos em Porto Seguro e nos
Ilhéus, que se deixaram morrer de bravos sem quererem comer.
Começou este gentio a sair ao mar no Rio das Caravelas, junto de Porto Seguro, e corre estes matos e praias até o Rio Camamu, e daí veio a dar
assaltos perto de Tinharé, e não descem à praia senão quando vêm dar assaltos. Este gentio tem a cor do outro, mas são de maiores corpos e mais
robustos e forçosos; não têm barbas nem mais cabelos no corpo que os da cabeça, porque os arrancam todos; pelejam com arcos e flechas muito grandes,
e são tamanhos flecheiros, que não erram nunca tiro; são mui ligeiros à maravilha e grandes corredores.
Não vivem estes bárbaros em aldeias, nem casas, como o gentio, nem há quem lhas visse nem saiba, nem desse com elas pelos matos até hoje; andam
sempre de uma para outra pelos campos e matos, dormem no chão sobre folhas e se lhes chove arrimam-se ao pé de uma árvore, onde engenham as folhas
por cima, quanto os cobre, assentando-se em cócoras; e não se lhe achou até agora outro rasto de gasalhado. Não costumam estes alarves fazer roças,
nem plantar alguns mantimentos; mantêm-se dos frutos silvestres e da caça que matam, a qual comem crua ou mal assada, quando têm fogo; machos e
fêmeas todos andam tosquiados e tosquiam-se com umas canas que cortam muito; a sua fala é rouca da voz, a qual arrancam da garganta com muita força,
e não se poderá escrever, como vasconço.
Vivem estes bárbaros de saltear toda a sorte de gentio que encontram e nunca se viram juntos mais que vinte até trinta flecheiros; não pelejam com
ninguém de rosto a rosto; toda a sua briga é atraiçoada, dão assaltos pelas roças e caminhos por onde andam, esperando o outro gentio e toda a sorte
de criatura em ciladas detrás das árvores, cada um por si, de onde não erram tiro, e todas as flechas empregam, e se lhe fazem rosto, logo fogem,
cada um para sua parte; mas corno vêem a gente desmandada, fazem parada e buscam onde fiquem escondidos, até que passem os que seguem e dão-lhes nas
costas, empregando suas flechas à vontade.
Estes bárbaros não sabem nadar, e qualquer rio que se não passa a vau basta para defesa deles; mas para o passarem vão buscar a vau muitas léguas
pelo rio acima. Comem estes selvagens carne humana por mantimento, o que não tem o outro gentio que a não come senão por vingança de suas brigas e
antiguidade de seus ódios.
A capitania de Porto Seguro e a dos Ilhéus estão destruídas e quase despovoadas com o temor destes bárbaros, cujos engenhos não lavram açúcar por
lhe terem morto todos os escravos e gente deles, e a das mais fazendas, e os que escaparam das suas mãos lhes tomaram tamanho medo, que em se
dizendo aimorés despejam as fazendas, e cada um trabalha por se pôr em salvo, o que também fazem os homens brancos, dos quais têm morto estes
alarves de vinte e cinco anos a esta parte, que esta praga persegue estas duas capitanias, mais de trezentos homens portugueses e de três mil
escravos.
Costumam-se ordinariamente cartearem-se os moradores da Bahia com os dos Ilhéus, e atravessavam os homens este caminho ao longo da praia, como
lhes convinha, sem haver perigo nenhum, o que estes aimorés vieram a sentir, e determinaram-se de virem vigiar estas praias e esperar a gente que
por elas passava, onde têm mortos, e com estes muitos homens e muitos mais escravos; e são estes salteadores tamanhos corredores, que lhes não
escapava ninguém por pés, salvo os que se lhe metiam no mar, onde eles não se atrevem a entrar, mas andam-nos esperando que saiam à terra até a
noite, que se recolhem; pelo que este caminho está vedado, e não atravessa ninguém por ele se não com muito risco de sua pessoa; e se se não busca
algum remédio para destruírem estes alarves, eles destruirão as fazendas da Bahia, para onde vão caminhando de seu vagar.
E como eles são tão esquivos inimigos de todo o gênero humano, não foi possível saber mais de vida e costumes, e o que está dito pode bastar por
ora; e tornemos a pegar da costa, começando dos Ilhéus por diante. |