Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
PRIMEIRA PARTE - ROTEIRO GERAL DA COSTA BRASÍLICA
Capítulo XX
Que trata da grandeza do Rio de São Francisco e seu
nascimento.
Muito havia que dizer do Rio de São Francisco, se lhe coubera fazê-lo neste lugar, do qual se não pode escrever aqui o que se deve dizer dele,
porque será escurecer tudo o que temos dito, e não se pode cumprir com o que está dito e prometido, que é tratar toda a costa em geral, e em
particular da Bahia de Todos os Santos, a quem é necessário satisfazer com o devido. E este rio contente-se por ora de se dizer dele em suma o que
for possível neste capítulo, para com brevidade chegarmos a quem está esperando por toda a costa.
Está o Rio de São Francisco em altura de dez graus e um quarto, o qual tem na boca da barra duas léguas de largo, por onde entra a maré com o
salgado para cima duas léguas somente, e daqui para cima é água doce, que a maré faz recuar outras duas léguas, não havendo água do monte. A este
rio chama o gentio o Pará, o qual é mui nomeado entre todas as nações, das quais foi sempre muito povoado e tiveram uns com outras sobre os sítios
grandes guerras, por ser a terra muito fértil pelas suas ribeiras, e por acharem nele grandes pescarias.
Ao longo deste rio vivem agora alguns caetés, de uma banda, e da outra vivem tupinambás; mais acima vivem os tapuias de diferentes castas,
tupinaés, amoipiras, ubirajaras e amazonas; e além delas vive outro gentio (não tratando dos que comunicam com os portugueses), que se atavia com
jóias de ouro, de que há certas informações. Este gentio se afirma viver à vista da Alagoa Grande, tão afamada e desejada de descobrir, da qual este
rio nasce. E é tão requestado este rio de todo o gentio, por ser muito farto de pescado e caça, e por a terra dele ser muito fértil como já fica
dito; onde se dão mui bem toda a sorte de mantimentos naturais da terra.
Quem navega por esta costa conhece este rio quatro e cinco léguas ao mar pelas aguagens que dele saem furiosas e barrentas. Navega-se este rio com
caravelões até a cachoeira, que estará da barra vinte léguas, pouco mais ou menos, até onde tem muitas ilhas, que o fazem espraiar muito mais que na
barra, por onde entram navios de cinqüenta tonéis pelo canal do Sudoeste, que é mais fundo que o do Nordeste. Da barra deste rio até a primeira
cachoeira há mais de 300 ilhas; no inverno não traz este rio água do monte, como os outros, nem corre muito; e no verão cresce de dez até quinze
palmos. E começa a vir esta água do monte, de outubro por diante até janeiro, que é a força do verão nestas partes; e neste tempo se alagam a maior
parte destas ilhas, pelo que não criam nenhum arvoredo, nem mais que canas-bravas de que se fazem flechas.
Por cima desta cachoeira, que é de pedra viva, também se pode navegar este rio em barcos, se se lá fizerem, até o sumidouro, que pode estar da
cachoeira oitenta ou noventa léguas, por onde também tem muitas ilhas. Este sumidouro se entende no lugar onde este rio sai de debaixo da terra, por
onde vem escondido, dez ou doze léguas, no cabo das quais arrebenta até onde se pode navegar, e faz seu caminho até o mar.
Por cima deste sumidouro está a terra cheia de mato, sem se sentir que vai o rio por baixo, e deste sumidouro para cima se pode também navegar em
barcos, se os fizerem lá; os índios se servem por ele em canoas, que para isso fazem. Está capaz este rio para se perto da barra dele fazer uma
povoação valente de uma banda, e da outra para segurança dos navios da costa, e dos que o tempo ali faz chegar, onde se perdem muitas vezes, e podem
os moradores que nele vivem fazer grandes fazendas e engenhos até a cachoeira, em derredor da qual há muito pau-brasil, que com pouco trabalho se
pode carregar.
Depois que este Estado se descobriu por ordem dos reis passados, se trabalhou muito por se acabar de descobrir este rio por todo o gentio que nele
viveu, e por ele andou afirmar que pelo seu sertão havia serras de ouro e prata, à conta da qual informação se fizeram muitas entradas de todas as
capitanias sem poder ninguém chegar ao cabo; com este desengano e sobre esta pretensão veio Duarte Coelho a Portugal da sua capitania de Pernambuco
a primeira vez, e da segunda também teve desenho; mas desconcertou-se com S. A. pelo não fartar das honras que pedia.
E sendo governador deste Estado Luís de Brito de Almeida, mandou entrar por este rio acima a um Bastião Álvares, que se dizia do Porto Seguro, o
qual trabalhou por descobrir quanto pôde, no que gastou quatro anos e um grande pedaço da Fazenda d'el-rei, sem poder chegar ao sumidouro, e por
derradeiro veio acabar com quinze ou vinte homens entre o gentio tupinambá, a cujas mãos foram mortos, o que lhe aconteceu por não ter cabedal da
gente para se fazer temer, e por querer fazer esta jornada contra água, o que não aconteceu a João Coelho de Sousa, por que chegou acima do
sumidouro mais de cem léguas, como se verá do roteiro que se fez da sua jornada.
À boca da barra deste rio corta o salgado a terra da banda do Sudoeste, e faz ficar aquela ponta de areia e mato em ilha, que será de três léguas
de comprido. E quando este rio enche com água do monte, não entra o salgado com a maré por ele acima, mas até a barra é água doce, e traz neste
tempo grande correnteza. |