Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
PRIMEIRA PARTE - ROTEIRO GERAL DA COSTA BRASÍLICA
Capítulo XIX
Que trata de quem são estes caetés, que foram moradores
na costa de Pernambuco.
Parece que não é bem que passemos adiante do Rio de São Francisco sem dizermos que gentio é este caeté, que tanto mal tem feito aos portugueses
nesta costa, o que agora cabe dizer deles.
Este gentio, nos primeiros anos da conquista deste estado do Brasil, senhoreou desta costa da boca do Rio de São Francisco até o Rio Paraíba, onde
sempre teve guerra cruel com os potiguares, e se matavam e comiam uns aos outros em vingança de seus ódios, para execução da qual entravam muitas
vezes pela terra dos potiguares e lhes faziam muito dano. Da banda do Rio de São Francisco guerreavam estes potiguares em suas embarcações com os
tupinambás, que viviam de outra parte do rio, em cuja terra entravam a fazer seus saltos, onde cativavam muitos, que comiam sem lhes perdoar.
As embarcações de que este gentio usava, eram de uma palha comprida como a das esteiras de tábua que fazem em Santarém, a que eles chamam periperi,
a qual palha fazem em molhos muito apertados, com umas varas como vime, a que eles chamam timbós, que são muito brandas e rijas, e com estes molhos
atados em umas varas grossas faziam uma feição de embarcações, em que cabiam dez a doze índios, que se remavam muito bem, e nelas guerreavam com os
tupinambás neste Rio de São Francisco, e se faziam uns a outros muito dano. E aconteceu por muitas vezes fazerem os caetés desta palha tamanhas
embarcações que vinham nelas ao longo da costa fazer seus saltos aos tupinambás junto da Bahia, que são cinqüenta léguas.
Pela parte do sertão, confinava este gentio com os tapuias e tupinaés, e se faziam cruéis guerras, para cujas aldeias ordinariamente havia
fronteiros, que as corriam e salteavam. E quando os caetés matavam, ou cativavam alguns contrários destes, tinham-no por mor honra, que não quando
faziam outro tanto aos potiguares nem aos tupinambás. Este gentio é da mesma cor baça, e tem a vida e costumes dos potiguares e a mesma língua, que
é em tudo como a dos tupinambás, em cujo título se dirá muito de suas gentilidades.
São estes caetés mui belicosos e guerreiros, mas mui atraiçoados, e sem nenhuma fé nem verdade, o qual fez os danos que fica declarado à gente da
nau do bispo, a Duarte Coelho, e a muitos navios e caravelões que se perderam nesta costa, dos quais não escapou pessoa nenhuma, que não matassem e
comessem, cujos danos Deus não permitiu que durassem mais tempo; mas ordenou de os destruir desta maneira.
Confederaram-se os tupinambás seus vizinhos com os tupinaés pelo sertão, e ajuntaram-se uns com os outros pela banda de cima, de onde os tapuias
também apertavam estes caetés, e deram-lhe nas costas, e de tal feição os apertaram, que os fizeram descer todos para baixo, junto do mar, onde os
acabaram de desbaratar; e os que não puderam fugir para a serra do Aquetiba, não escaparam de mortos ou cativos. Destes cativos iam comendo os
vencedores quando queriam fazer suas festas, e venderam deles aos moradores de Pernambuco e aos da Bahia infinidade de escravos a troco de qualquer
coisa, ao que iam ordinariamente caravelões de resgate, e todos vinham carregados desta gente, a qual Duarte Coelho de Albuquerque por sua parte
acabou de desbaratar.
E desta maneira se consumiu este gentio, do qual não há agora senão o que se lançou muito pela terra adentro, ou se misturou com seus contrários
sendo seus escravos, ou se aliaram por ordem de seus casamentos. Por natureza, são estes caetés grandes músicos e amigos de bailar, são grandes
pescadores de linha e nadadores; também são mui cruéis uns para os outros para se venderem, o pai aos filhos, os irmãos e parentes uns aos outros; e
de maneira são cruéis, que aconteceu o ano de 1571 no Rio de São Francisco estando nele algumas embarcações da Bahia resgatando com este gentio, em
uma de Rodrigo Martins estavam alguns escravos resgatados, em que entrava uma índia caeté, a qual enfadada de lhe chorar uma criança sua filha a
lançou no rio, onde andou de baixo para cima um pedaço sem se afogar, até que de outra embarcação se lançou um índio a nado, por mandado de seu
senhor, que a foi tirar, onde a batizaram e durou depois alguns dias.
E como no título dos tupinambás se conta por extenso a vida e costumes, que toca a maior parte do gentio que vive na costa do Brasil, temos que
basta o que está dito até agora dos caetés. |