HISTÓRIA
O ocaso da cidade vermelhaA partir de
meados dos anos 90, Santos iniciou uma gradual migração para forças consideradas de centro-direita
Luiz Fernando Yamashiro
Da Redação
"Santos sempre foi cidade difícil. Ao contrário de cidade do
Interior, onde as pessoas se apascentam na modorra daquele cotidiano sem grandeza, Santos sempre pareceu aos meus olhos se debater no fogo de suas
contradições. Foi a cidade mais vermelhamente comunista do Brasil".
No limiar do século 21, a Santos retratada pelo escritor Nelson Salasar
Marques parece uma peça de ficção. Não é. De fato, a cidade que neste ano praticamente sepultou a esquerda nas eleições municipais já foi chamada,
um dia, de Porto Vermelho - em alusão à efervescência sindical e à resistência a regimes ditatoriais, como o Estado Novo de
Getúlio Vargas (1937-1945).
No entanto, se a vitória de Barack Obama (N.E.:
presidente dos Estados Unidos, que assumiria o cargo em 20 de janeiro de 2009)
é considerada por analistas uma guinada à esquerda na terra do Tio Sam, Santos vem percorrendo o caminho inverso há mais de uma década. Após cometer
o pecado de eleger um prefeito negro e de oposição aos militares em 1968, plena ditadura, os santistas ainda conduziram por duas vezes o PT
ao Paço Municipal antes de iniciar, em meados dos anos 90, uma gradual migração para forças consideradas de centro-direita.
No pleito de 2008, o vermelho desbota de vez: juntas, as três candidaturas de esquerda - PT, PSB e
PSOL - não atingem um terço dos mais de 190 mil votos que reelegem João Paulo Tavares Papa, do PMDB, à Prefeitura. A Cidade, definitivamente, mudara
de cor.
Mudou a esquerda? - Para explicar a mudança, aplica-se a teoria do Caos: um muro que cai na
Alemanha pode desviar o curso da história no litoral brasileiro.
Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Instituto de
Pesquisas A Tribuna (IPAT), Alcindo Gonçalves relaciona o fim da cidade vermelha à crise que atinge os partidos de esquerda desde a queda do muro de
Berlim, em 1989. Cita também a volta da democracia ao Brasil, que teria "esfriado" a polarização direita-esquerda no Município.
Mas é na política local que, segundo ele, está o fator decisivo para a mudança de rumo: o racha no
PT, dividido em trincheiras lideradas por Telma de Souza e David Capistrano Filho. "A briga, durante o mandato do David, desgasta a imagem do
governo e do partido e influi na eleição do Beto Mansur, em 1996, que era oposição frontal a eles", avalia.
A partir dali, continua Alcindo, o PT municipal "se perde, não se renova, não tem um discurso
claro" e sofre novas derrotas. O quadro é agravado a partir de 2005, quando escândalos como o mensalão - suposta compra de votos de
congressistas para aprovar projetos do Governo Lula - desgastam a legenda em nível nacional. "O efeito disso em
Santos, onde predomina uma classe média, foi devastador. Tanto é que, em 2006, deputados petistas como Telma, Mariângela Duarte (federais) e Fausto
Figueira (estadual) não se reelegem".
Ou mudou a cidade? - Para a também cientista política e professora universitária Clara
Versiani dos Anjos, junto com a derrocada mundial da esquerda, Santos passa a vivenciar uma desarticulação dos movimentos sindicais, sufocados pela
ditadura militar a partir dos anos 60.
Já na década de 90, transformações econômicas - como a privatização do Porto - provocam a migração
de parte da população a municípios vizinhos e consolidam Santos como uma cidade majoritariamente de classe média.
Clara acredita que a esquerda local foi incapaz de adequar seu discurso a essas mudanças. "Em
2004, por exemplo, já não tinha tanto sentido você falar em policlínicas quando boa parte do eleitorado tinha planos privados de saúde".
No início de agosto de 1983, santistas lotaram a Praça Mauá e ocuparam as escadarias do Paço
para comemorar o restabelecimento da autonomia
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Ex-vereador responsabiliza ditadura
Vereador de 1977 a 1982, Luiz Norton Nunes registrou em ata o momento
em que, segundo ele, as cores da cidade começaram a mudar: o vácuo entre 1969 e 1984, quando, declarado área de segurança nacional, o Município
perdeu a autonomia política (a população ficou privada do direito de eleger seu prefeito e o interventor era escolhido pelo
regime militar).
Ao final de um simpósio sobre a autonomia dos municípios realizado na Câmara Municipal em 1980, o
então líder do PMDB relata em sua carta de princípios: "As cidades ingressam em acelerado processo de empobrecimento assim que seus moradores não
podem mais escolher livremente seus dirigentes, e a população deixa de se interessar e de participar do processo político, preferindo manter-se
alienada".
Norton, que militou na advocacia sindical por quase 30 anos, lembra que as entidades eram o
principal foco de mobilização política na era pré-militar. "Depois, além da repressão, as leis ficaram mais abrangentes e os sindicatos ficaram com
um campo de ação muito restrito".
FRUSTRAÇÃO |
"Ficou claro que o capitalismo não trouxe a felicidade prometida. Temos que encontrar
outro caminho" |
Luiz Norton Nunes, vereador à Câmara durante seis anos |
Oportunidade - Hoje, apesar de filiado ao PSB, o ex-vereador vê a esquerda dividida e cada
vez com menos espaço, em um período marcado pela individualidade. "As questões coletivas perderam força. Agora, infelizmente, é cada um por si".
No entanto, vislumbra na atual crise do capital especulativo uma oportunidade de a humanidade
repensar suas escolhas. "Ficou claro que o capitalismo não trouxe a felicidade prometida. Temos que encontrar um outro caminho, e a esquerda terá um
papel decisivo nisto".
COMENTÁRIO
De Moscou Brasileira á repressão do regime militar
sobre sindicatos
De Alessandro
Atanes [*]
A cidade de Santos já foi conhecida por Barcelona Brasileira, Moscou Brasileira,
Cidade de Prestes, Cidade Vermelha e, traduzindo o latim da bandeira, cidade da Liberdade e da Caridade. São epítetos que simbolizam
cores políticas da cidade de esquerda ou, no mínimo, progressista.
Dois trabalhos históricos recentes analisaram esse aspecto do imaginário da cidade: as obras
Operários sem Patrões: Os trabalhadores de Santos no entreguerras (Unicamp, 2003), de Fernando Teixeira Silva, e Porto vermelho: A maré
revolucionária (1930-1951) (Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2001), de Rodrigo Rodrigues Tavares. É Tavares quem avisa que esses epítetos
tiveram diferentes usos, tanto pelo movimento sindical como por intelectuais ou pelo aparato repressor. O Partido Comunista Brasileiro, por exemplo,
como estratégia de crescimento em todo o Brasil, evitava relacionar Santos com Moscou em seus documentos. Já a polícia não hesitava em usar termos
como "cidade vermelha" ou "Moscou brasileira" para insuflar resistências contra a expansão do ideário comunista no resto do país.
Foi Jorge Amado um dos responsáveis pela entrada de parte dessas expressões no imaginário da
cidade em Agonia na Noite (1954), segundo volume da trilogia Subterrâneos da Liberdade, em que o mundo do trabalho em Santos, Salvador
e Rio de Janeiro é transformado em palco da luta entre comunismo e capitalismo. No episódio em Santos, baseado em fatos reais,
estivadores comunistas se recusam a embarcar café em um navio nazista cujo destino era a Espanha fascista
governada por Franco.
Na década seguinte, Pablo Neruda, comunista como Jorge Amado, escreveria Santos Revisitado,
poema de A barcarola (1967) em que registra suas impressões sobre o trabalho dos estivadores: "Terra maldita, espero/que arrebentes um dia,
de alimentos, de sacos mastigados/e de eterno suor de homens que já morreram/e forma substituídos para continuar suando". Em Sombras sobre
Santos. O longo caminho de volta (Prefeitura de Santos, 1988), que tem como epígrafe o poema de Neruda, os jornalistas Ricardo Marques da Silva
e Mauri Alexandrino registram a repressão da ditadura militar a trabalhadores, sindicatos e intelectuais da cidade.
Ao fim do "longo caminho", durante a redemocratização, são escritos os romances Ensina-me a ler,
de Juarez Bahia, e Barcelona Brasileira, de Adelto Gonçalves. O primeiro, publicado em 1989, traça as memórias de um intelectual progressista
de Santos entre as ditaduras do Estado Novo e a que se iniciou em 1964; o segundo, embora só publicado no Brasil em 2002, apresenta uma trama de
assassinato em meio às greves anarquistas de 1917, escrita no início dos anos 80, cujo protagonista é um poeta, médico e anarquista, baseado em
Martins Fontes. Em comum entre as duas obras, o conteúdo extremamente político desse momento posterior à
censura oficial.
Na década de 90, durante os governos petistas, a Prefeitura de Santos publica, entre outros, uma
série de livros sobre a história dos trabalhadores portuários, o que reacende o simbolismo da "cidade vermelha". Na década seguinte, já no século
21, pesquisas como as de Tavares e Silva ampliam esses estudos.
Em tempos neoliberais, enquanto os historiadores ampliam os estudos sobre a cultura do trabalho, a
ficção se volta para as relações entre porto e cidade. É o caso de Alberto Martins, autor dos poemas de Cais (2003) e da novela História
dos ossos (2005), do livro de mesmo nome, em que o Cemitério do Paquetá, privatizado, é derrubado para dar espaço a um
pátio de contêineres, cena improvável na vida real, mas emblemática da pressão das operações portuárias sobre o tecido urbano de Santos.
[*]
Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela USP com dissertação sobre as obras de ficção que tratam do porto de Santos. |