Na última década, a população da Ponta da Praia simplesmente dobrou: dos 19.367
habitantes registrados pelo Censo de 1970, passou-se para 41.811 em 1980. De repente, muita gente começou a optar por esse bairro, que se
distingue dos demais, entre outras coisas, por registrar temperaturas dois ou três graus abaixo da média de Santos.
Isso mesmo, para quem não sabe, o vento que sopra do mar, de Sudeste para Leste, faz com
que lá seja o lugar mais fresco de Santos. Muitos que ouvem isso logo atribuem conotação pejorativa ao termo fresco, já que se trata de um
dos bairros mais valorizados da orla da praia e concentra dezenas de mansões.
Mas, deixando as brincadeiras de lado, ninguém pode negar que o bairro tem muitos
atrativos: a simples vista do mar refletindo o sol é um espetáculo inesquecível, sem contar as cenas pitorescas que proporcionam os navios
entrando e saindo do estuário e os barcos de pesca ancorados junto à Ponte dos Práticos.
Há ainda o Aquário, o Museu de Pesca, o ferry-boat, mas tem também lugares que
não constam de cartões postais, como as favelinhas de Vila Ogarita. Nessa vila, os moradores dão exemplo de força e resistência, pois há mais de
40 anos lutam pela posse da terra. O problema vem se arrastando por anos e anos, e por causa de toda essa situação a vila não foi urbanizada.
Vento que sopra do mar faz da Ponta da Praia um bairro de temperatura amena
O Nenê nunca falhava. Ficava de prontidão, observando
o mar. O bagre que passasse estava perdido: num gesto rápido ele arremessava a lança e o peixe já vinha sangrando, colorindo de vermelho a água
verde e límpida.
Pois é. Naquele tempo, uns 50 anos atrás, o mar era tão transparente que o Nenê conseguia enxergar o
peixe no fundo e pescar com a maior tranqüilidade da Ponte dos Práticos. Só que, na época, a ponte era de madeira e rangia sob os passos seguros
do prático Quíncio Peirão, que dá nome a uma das ruas do bairro onde viveu e ganhou fama.
Que diferença a Ponta da Praia dos primeiros anos do século! Muitas chácaras, mato, campos de várzea e crianças
que tiveram uma infância de fazer inveja a qualquer um. Viviam soltas naquele imenso descampado urbano, e os meninos que freqüentavam o Saldanha
(fundado em 1903) nadavam tão bem a ponto de seguirem num barquinho caipira e virá-lo quando estavam bem no meio do canal do Estuário. Pura farra
quando caíam no mar, com barco e tudo.
Quem enche os olhos de alegria contando passagens como essa é Áttila Cazal, que cresceu na Ponta da Praia ao
lado de figuras não menos conhecidas como o almirante Ernesto Mello Júnior, Ariosto Guimarães, Ari Vieira Barbosa, Álvaro Moraes Barros, Oscar de
César Matos, Quintino Barroso Rato, Waldo e Muriel Silveira, Hans Meyer, Alfredo de Oliveira Santos, o Fumaça, e o Altino Carvalho, do
Cartório de Protestos.
Os que ainda estão vivos podem provar que na Ponta da Praia do final da década de 1920 só existiam a Avenida
Bartolomeu de Gusmão e a Avenida Rei Alberto I. Essa última nascia na Avenida Bartolomeu de Gusmão, fazia uma curva por trás da Escola de
Aprendizes de Marinheiro (hoje Museu de Pesca) e terminava no ferry-boat, onde uma única balsa, bem menor do que as de hoje, garantia o
acesso a Guarujá. E a tal balsa dava conta do recado muito bem, diga-se de passagem.
E essa avenida que cresceu com o bairro não tinha mais do que uns seis metros de largura, e ostentava enormes
valas nos cantos. Mais: naquele saudoso tempo a Prefeitura cuidava bem das vias públicas, pois mantinha dois funcionários exclusivamente para
fazer a manutenção da Rei Alberto.
Isso mesmo, dois homens para conservar aquela que era a única pista de acesso à balsa. O preto Gregório e o
português Joaquim trabalhavam diariamente, das 7 às 16 horas, e tinham a cautela de tapar com pedregulhos qualquer buraquinho que surgisse. O
Gregório, além de conservar a pista, vivia armando laços para pegar gambá e lagarto. Esses bichos eram tão comuns quanto o mato que avançava
Macuco adentro. Quantas vezes "seu" Gregório não almoçou gambá assado? Não se sabe como agüentava o cheiro, mas uma coisa ele afirmava: valia a
pena a tortura, porque a carne é tão boa quanto a de galinha.
Um bairro quase desabitado, uma escola imponente e o saudoso Vasco da Gama - Pois naquela Ponta da Praia
desabitada, tranqüila e praticamente isolada, se destacava o imponente prédio da Escola de Aprendizes de Marinheiro. A Marinha iniciou a
construção em 1908 e, a 5 de maio do ano seguinte, a unidade foi inaugurada. Dois pavimentos, rija, majestosa, como chamava atenção a escola!
Um retrocesso: num tempo em que nenhum cristão vivo poderia lembrar (mas os livros estão aí para não deixar a
história se perder), bem ali onde foi construída a escola ficava o Forte Augusto, que cruzava fogo com a Fortaleza Velha (do outro lado do canal,
na Praia da Pouca Farinha). Quer dizer, chamar de forte poderia ser até um exagero, pois não passava de uma murada de pedras, armada com peças de
artilharia.
O Forte Augusto, vá lá, entrou em atividade a partir de 1734, mas acabou em ruínas e foi desativado em fins do
século XIX.
Voltemos à Ponta da Praia de fins da década de 1920. Entre as avenidas da praia e a Rei Alberto I ficava o Hotel
Carlino, o único lá para aquelas bandas. Nessa segunda avenida, não havia nada além do hotel, uma Estação Rádio-Telegráfica e um estábulo, onde a
criançada bebia leite fresquinho, tirado na hora.
De frente para a praia, as construções também eram pouquíssimas. Entre elas, deixou muitas saudades o barzinho
de "seu" Salu e dona Elsa, que ficava pegado ao Hotel Carlino. Aos domingos, ela caprichava no almoço e a moçada que treinava no Saldanha ia toda
para lá. Comia, conversava e adorava aquele casal.
Nos fundos do bar, com entrada pelo lado, havia um conjunto de cinco ou seis casas. Seguindo em direção ao
ferry-boat se deparava com a majestosa escola, que contrastava com o barracão de madeira, sede do Saldanha, que existia logo depois. No mais,
a casa do prático Quíncio Peirão e dezenas de chácaras de japoneses, que ocupavam todo o restante da área, até o atracadouro da balsa.
E saibam que essas chácaras abasteciam toda Santos de verduras. Dava gosto ver as plantações dos japoneses
sempre viçosas, bem cuidadas.
Campos de várzea não faltavam, e quem consegue esquecer o glorioso Esporte Clube Vasco da Gama, o Vasquinho?
Tinha seu campo "particular" na atual Rua República do Peru. E a Diná Rentróia, recolhendo velhas histórias do pai, conta: "Era um campo rodeado
de valas de águas limpas (juro) onde a criançada pegava peixinhos. Sobre essas lembranças estão as atuais mansões imponentes, vizinhas do rei do
futebol, Pelé. Os artilheiros do Vasquinho, hoje respeitáveis avós, jamais esquecerão isso".
As brincadeiras no mar, as festas juninas e os bangue-bangues de Rogers - E os garotos da época que
passaram a infância no Saldanha também não esquecem muita coisa. O clube brilhava, tinha grandes remadores e nadadores e ostentava entre os
integrantes de sua equipe ninguém menos que o ex-campeão sul-americano de saltos ornamentais, Herman Palmeira Martins, o Maninho, e sua
esposa Lourdes, ex-campeã brasileira na mesma categoria.
A meninada de 14, 15 ou 16 anos nadava feito peixe e se divertia jogando bola em pleno mar. Entre uma braçada e
outra, a bola rolava de mão a mão, sob o comando decidido de Ariosto Guimarães, o grande ídolo da turma.
Mas quem conta outras boas histórias da Ponta da Praia de antigamente é a Diná. Em conversa com ela, o pai
reconstituía muito da vida do bairro, da dele e da sua.
Ele chegou a Santos com 17 anos, num dia de Natal, isso jamais esqueceu. Veio da Ilha da Madeira, Portugal,
morou em vários lugares em curto espaço de tempo, fez um pouco de tudo e se fixou na Ponta da Praia.
Lá, primeiro foi condutor de carro de boi. Depois, dono de estábulo. Na vacaria do "seu" Rentróia tinha um pouco
de tudo: galinhas, patos, porcos, verduras. E de todos os lugares vinham os fregueses, amigos que voltavam sempre, como recorda a Diná.
Os documentos, testemunhas fiéis que ela guarda até hoje, comprovam o rigor da fiscalização: carteira
profissional de condutor de carro de boi (1929); carteira de habilitação para dirigir carro de boi - cocheiro urano (1939); e registro de comércio
ambulante de leite (1940). Ela acrescenta mais: "Os fiscais sempre davam muito trabalho no controle da água misturada ao leite, e às vezes, "por
descuido", era melhor perder toda a mercadoria do que pagar as pesadas multas. E o produto era todo esparramado no chão".
A família morava na atual Avenida dos Bancários, naquele tempo nem avenida nem rua: uma grande chácara de
japoneses. Para se alcançar o Canal 6, era preciso seguir pela praia ou pedir licença para passar por baixo dos machucheiros e ir cuidadosamente
se esquivando dos enormes cachorros e evitar os temidos tiros de sal. Qualquer estranho poderia ser um ladrão, portanto todo cuidado era pouco.
Festas juninas? Bem, estas eram compartilhadas com amigos de bairros "longínquos", como Macuco e Aparecida. E
Diná não esconde a saudade dessas festas, comemoradas de pé no chão, na terra da Praça Coração de Maria, com bandeirinhas amarradas em bambus
colocados onde hoje estão os postes dos trólebus.
Ela recorda, ainda: "A música era ao vivo, com sanfona, violão, cavaquinho e o que viesse... E como tinha
músico! Só não podia chover. E a chuva era o que mais temíamos no dia de cinema, cortesia do Sesi. No telão (um enorme lençol) montado na
rua e sentados em cadeiras trazidas de casa, assistíamos aos bangue-bangues de Roy Rogers".
Diná nasceu, cresceu e viveu na Ponta da Praia. Uma vida povoada de histórias que o pai José Rodrigues contou.
Jamais esquece quando ele se referia à árvore que ainda está em frente ao Clube de Regatas Vasco da Gama. Só esta árvore e a velha escola para
marinheiros restaram intactas da Ponta da Praia de antigamente.
O povo inaugura linha de bondes e um navio horroriza a comunidade - Embora já em 1926 a Câmara tenha
aprovado o projeto de abertura da Avenida Afonso Pena, que iria ligar a Avenida Conselheiro Nébias ao Estuário, só uns 10 anos depois começa a ser
criada a maior parte das ruas da Ponta da Praia. A ocupação residencial aumenta, chácaras são subdivididas e, em 1939, começam a surgir casas ao
longo do Estuário.
Quem não se lembra dos bondes 4, 13 e Rápido? Todos iram para a Ponta da Praia, mas a história mais interessante
fica por conta do bonde 19. Embora o prolongamento dos trilhos até a Afonso Pena estivesse concluído, o início da circulação foi protelado pela
Cia. City. Os moradores não deixaram por menos: no dia 17 de setembro de 1937, às 18 horas, tomaram o bonde de assalto e obrigaram o motorneiro a
seguir até o final da Afonso Pena. O povo simplesmente inaugurou o prolongamento, sem esperar discursos, foguetórios ou coisa que o valha.
Dos casos mais recentes, um que ninguém esquece fica por conta do russo Vladimir Grieves e seu hotel flutuante
para curtas estadas. Ele aproveitou o antigo navio de passageiros Carl Hoepeck, mudou o nome para Recreio, transformou as cabinas em
quartos, montou sala para jogos, instalou iluminação especial e horrorizou a comunidade santista com tanta ousadia.
Mas o russo nem ligava, até que um dia um vendaval fez o velho navio encalhar. Tentaram removê-lo, mas só
conseguiram aproveitar a proa, usada depois na construção do navio Baleia Branca.
Ponta da Praia em 1927: quase desabitada, com apenas duas vias abertas,
chácaras e campos de várzea
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