Cena das duas favelinhas que estão encravadas e esquecidas no bairro nobre e sofisticado
A resistência de Vila Ogarita...
Há pelo menos 40 anos os moradores de Vila Ogarita sonham
com a posse da terra. E lutam por isso. A história desse aglomerado de chalés, encravado na Ponta da Praia, envolve os mais variados casos e
problemas, que vão desde entraves burocráticos e demora na tramitação de processos, até atos inexplicáveis das administrações municipais.
No final da década de 40, a Vila Ogarita não passava de um extenso matagal de quase 35.500 metros quadrados, que
deveria ser loteado pela Companhia de Melhoramentos de Santos. Primeiro revés: a empresa não aceitou a tarefa, porque surgiu uma questão quanto a
possíveis diferenças de metragem.
Américo Rutigliano, ligado à família Marinange, logo encontrou uma saída: alugar os lotes, por meio de
contratos, por prazo indeterminado. E os atuais moradores de Vila Ogarita, atraídos pela promessa verbal de que em dois anos os lotes seriam
postos à venda, assinaram um contrato simplesmente absurdo.
Imaginem só: de acordo com esse documento, os locatários teriam que fazer, nas suas custas, consertos, limpezas
e todos os demais serviços e obras exigidos pelo Poder Público. O contrato vai bem mais longe: os moradores teriam que policiar a invasão de
terras e pegar taxas e impostos vigentes ou que viessem a ser criados, além de serem obrigados a renunciar ao direito sobre qualquer melhoria que
implantassem (inclusive a própria casa), sem qualquer indenização, em caso de abandono dos lotes.
As cláusulas eram todas desse tipo, absurdas, e Noel Gomes Ferreira, hoje presidente da Sociedade de
Melhoramentos da Ponta da Praia, foi o único que se recusou a assinar o contrato. Deu um jeito, foi adiando o assunto e conquistou um trunfo que
lhe garantiu a independência para lutar em defesa de Vila Ogarita.
A única preocupação dos locatários era cobrar o aluguel. Enquanto isso, os moradores transformavam a vila,
abriam as ruas que não existiam e as valas para canalizar o esgoto das casas. A primeira grande vitória do núcleo foi a instalação da iluminação
pública, mas mesmo assim cada poste da Light custou Cr$ 150,00, taxa equivalente ao aluguel mensal.
Água encanada só chegou à vila em 1951. Depois de muita insistência, a família Marinange finalmente concordou
com a abertura da Rua Vasco da Gama, por onde passaram as primeiras tubulações de água.
E com a mesma disposição, os locatários foram cobrar a promessa de que em dois anos seria aberta a venda dos
lotes. A resposta surgiu como um grito de guerra: quem não estivesse satisfeito, que se mudasse, logicamente obedecendo todas as cláusulas
abusivas do contrato. Pior que isso só em 1961, quando os locadores apresentaram outro contrato, mais absurdo ainda.
A Sociedade de Melhoramentos se mexeu para que ninguém assinasse tal contrato, e a situação permaneceu entre
dúvidas e incertezas, até que em fevereiro de 1964 o prefeito José Gomes finalmente baixou decreto expropriando a área e declarando-a de interesse
social, pela Lei 2.818.
No mês seguinte, aconteceu a revolução e a paralisação total das atividades da SM, já que as autoridades
resolveram investigar a vida daquele presidente tão ativo. Nada se provou contra ele, que correu para garantir que o interventor Ridell assinasse
o decreto 2.979, que regulamentava a Lei 2.818. Restavam apenas três dias para a posse do novo prefeito, Sílvio Fernandes Lopes.
Essa barreira também foi vencida e as coisas começaram a melhorar a partir de então: além de lotear Vila Ogarita,
foram elaborados os pré-contratos de cessão de área do terreno, que são os documentos de posse que os moradores dispõem até hoje.
Tudo indicava que só restava à Prefeitura saldar a dívida referente à desapropriação e fazer os acordos,
revendendo a terra para os moradores. Mas ocorreram novos lances, desde a tentativa de anulação da desapropriação, até a falta de dinheiro por
parte da Prefeitura.
O certo é que, passados todos esses anos, as 100 famílias de Vila Ogarita continuam esperando uma solução. No
ano passado, o secretário de Assuntos Jurídicos, Luís Antônio de Oliveira Ribeiro, dizia que em setembro tudo estaria resolvido. Depois, adiou
esse prazo para 30 de maio e agora fala que talvez em julho a Prefeitura liquide o restante da dívida.
Vila Ogarita, cansada de tanta luta e atropelos, só faz esperar.
Cena das duas favelinhas que estão encravadas e esquecidas no bairro nobre e sofisticado
...e cenas que não estão nos postais
Coisas da vida? Em plena Ponta da Praia, bairro nobre e tão
valorizado, há nada menos que duas favelinhas. Uma delas fica em plena Praça Winston Churchill, e a outra na Avenida Portuária, altura do Armazém
42. Em ambas, a força para lutar, a resistência e a busca por dias melhores.
Cena das duas favelinhas...
Falta de água e
luz, lixos e ratos marcam o dia-a-dia dessas duas favelinhas. Naquela da Avenida Portuária vivem cinco famílias e muitas crianças. Só na "casa" de
Maurício Roque das Neves são seis menores, com idades entre 11 e dois anos. Ele, que ficou paraplégico devido a um acidente de trabalho, já não
sabe para quem apelar. Quer a ajuda do prefeito, de alguém que se convença que nem cachorro merece passar tanta miséria.
Logo cedo manda um filho para lá, outro para cá. Vão pegar água ou catar restos de coisas para vender ou comer.
Crianças sem infância, desde cedo trabalhando, mas que ainda guardam um sorriso para quem lhes dá atenção. E guardam também o carinho que dividem
com os cachorrinhos e gatos, companheiros fiéis.
O gesto desesperado de Tiully, mãos na cabeça, surge reforçando suas palavras de que está cada vez mais difícil
sobreviver. Há um ano mora na favelinha da Praça Winston Churchill, dividindo os problemas com o marido, carrinheiro. Tem 58 anos, de idade, mas
aparenta muito mais: os anos vividos em Santos, desde que chegou do Rio Grande do Norte, consumiram sua beleza. O sofrimento maltratou seu rosto,
suas mãos e seu corpo, mas ela apenas pergunta: "O que se há de fazer?" |