Encontro
O cais fervilha de gente. Marinheiros
de todos os quadrantes, operários da Docas, estivadores suarentos, conferentes e funcionários das firmas interessadas nos embarque e nos
desembarques.
Passam guardas da alfândega, vencedores de maçãs e de laranjas, passageiros de boina à cabeça com
máquinas fotográficas a tiracolo. Passam e repassam sobre a calçada do cais, falando, gritando, praguejando, apregoando...
O sol tira dos telhados de zinco dos armazéns chispas que parecem furar os olhos, de tão
luminosas. O suor escorre de todos os pescoços e trescala de todos os corpos.
Aquela moça argentina tem manchas úmidas nas axilas, desbotando a seda verde do vestido.
Aquele estivador negro tem a camisa ensopada nos sovacos, que se mostram quase a nu, erguidas as
mãos à cabeça para segurarem a saca de café que vai para bordo.
Um marinheiro ruivo procura a sombra do armazém, na calçada alta, porque o calor que sai das
pedras ao sol passa através da sola das botinas grossas.
Na polia de um guindaste que geme e roda de cá para lá, a graxa derreteu e vem correndo, aos
pingos, negra, braço de ferro abaixo, como gotas de suor que a máquina suasse.
Na popa do Itaité, quatro novilhas de raça que vêm do Rio Grande do Sul põem fora a língua
vermelha e arfam ruidosamente.
De espaço a espaço, uma gaivota fecha as asas e mergulha, atrás de peixe ou pelo prazer do banho
na tarde sufocante.
A bola de ferro do guindaste desaparece na boca da escotilha do Tambaú, e logo sobe,
retesado o cabo de aço, com uma lingada de sacos de açúcar mascavo, rescendendo a melado.
Uma locomotiva vem em marcha à ré: vuque-vuqe-vuque-vuque. Um homem levanta a mão, o
maquinista diminui a marcha, vai encostando nos vagões parados: plaque-plaque-ploque-pléque...
Vão batendo uns nos outros os pratos dos pára-choques, desde o primeiro vagão onde a máquina
engatou até o último, cento e cinqüenta metros para trás. A máquina espirra vapor d'água pela sereia: pi-i-i-í, e arranca para a frente,
pondo fumaça aos bufos, pelos dois lados - vuque-vuque-vuque-vuque...
O cais está quase todo tomado pelos vapores, desde o armazém 1, onde o Itapoan descarrega
carvão de Imbituba, até o Frigorífico, onde o Augustus descarrega turistas de vários países do mundo.
- O serviço juntou todo hoje, hein? - observa a motorista de uma lancha da Bocaina a um
amarrador de navios.
- É verdade! Parece o tempo de antes da guerra da Alemanha!
As dalas vão carregando, na correia sem fim, uma a uma, as sacas para bordo, silenciosas, sem
praguejar como os homens que em longa fila carregam também sacas à cabeça, desde os portões que abrem para a Rua
Xavier da Silveira até as cobertas dos navios. Desde os portões, onde se enfileiram enormes caminhões com reboques, longas carroças da C.U.T.,
abarrotados de "Santos - a bandeira brasileira - Estado de São Paulo - Café do Brasil".
No fundo do porão do West-Imboy, o calor parece ter o peso daquela quartelada que os
estivadores levantaram faz pouco, para deixar escancarada a boca da escotilha.
Parece que não é o sol que jorra pela abertura, mas os próprios travessões maciços da quartelada
inteira, feitos luz por algum encantamento mau, que descem do alto e pesam sobre os ombros e a cabeça dos estivadores.
Algum barril de aguardente deve ter vazado ali por perto, porque o ar da 4ª coberta está cheio de
evaporações de álcool, como um botequim do cais. Aquele cheiro se mistura com o acre odor de couros mal curtidos, amontoados a um canto - os de boi
por baixo, os pelegos de carneiro por cima.
- Isto vira o estômo!
Agenor careteia, arrumando um fardo.
Desce nova lingada com três volumes enormes. Vem descendo sobre a cabeça dos homens. Eles pulam
para os lados, ajeitam a lingada, ainda suspensa, para que a carga fique em lugar certo.
O guindaste desce os fardos em pequenos arrancos, e mal eles encostam no chão, mal se afrouxa o
estropo, já um estivador os desprende do gato, onde enfia outro estropo vazio, que sobe pelos ares, levado pelo guindastes em busca de nova carga
sobre a calçada do cais.
Volta outra lingada de três fardos, bate no vime, ao tentar entrar na escotilha. O guindaste
guincha, ergue a carga, procura posição. Um homem ajuda, junto ao vime - empurra a lingada para o meio do buraco, e o motorneiro executa a manobra
de descida. O homem levanta a mão, o guindaste uiva e estaca. Os fardos rodopiam no ar, suspensos sobre as cabeças dos estivadores que estão no
fundo do West-Imboy. Cada volume daqueles pesa 150 quilos: algodão em bruto, comprimido.
O homem segura o cabo de aço, trepa em cima de um fardo, e o guindaste geme e vai descendo o homem
e o algodão pela boca da escotilha.
- Ei! Sostenta isto, Remualdo! - grita Agenor, porque a lingada fez um rodopio e
pendeu para um lado. Mas logo encostou no chão, o estropo afrouxou, o homem pulou de cima do fardo.
- Já cabei de carregá as banana do Saverne, pessoá. Agora vim ajudá voceis
neste americano.
- Ah! É você, Praxedes? - e Romualdo pendura o cabo vazio no gancho do guindaste.
- Agenor! - Praxedes abre os braços - tanto tempo! Des-que fui preso não via você, negro
feio!
- Como vai, Praxedes?
- Diabo! Você tá zangado, home? Não se arrecebe assim os amigo!
- Tô cansado. Tá muito calô, Praxedes, descurpe.
Praxedes vai ajudar a empilhar os fardos, Agenor dirige-se ao lado oposto, rolando uma pipa para
fazer espaço para o algodão.
***
Na saída do trabalho, Praxedes veio procurar o amigo de outros tempos.
- Tu não é mais meu amigo, Agenor?
- Sô!
- Parece que porque eu tive preso tu foge de mim.
- Fujo nada. Tô mais é cansado. Trabaiei extraodenaro onte à noite no Avila Star.
Tô cansado.
Dirigem-se, lado a lado, para o ponto do bonde. Agenor espera que Praxedes se vá.
O 19 vem tinindo, cheio de trabalhadores, no elétrico e no reboque. Agenor segura-se a um
balaústre, firma-se em pé no estribo do reboque: té logo, Praxedes!
Mas este pula também no estribo, atrás dele.
- Ué, eu também moro por esta banda!
Agenor tira um níquel e dá ao cobrador:
- Duas, cobre aí.
- Brigado, não percisava se incomodá.
O bonde parou para que uma mulher gorda subisse. Ela procura lugar, de banco em banco, em vão.
- Não tem mais logaire! - avisa o cobrador, dando o sinal de partida.
A mulher gorda fica, aborrecida, à margem da linha.
- Que traste, hein, Agenor? A gente cum pressa p'ra armoçá...
- Pois é.
O bonde para de novo; uma outra turma de operários, de paletó jogado ao ombro, assalta os raros
balaústres desocupados, pisando no estribo os pés dos que já estão acomodados.
- Pise no chão, seu! Me esmigaia os calo!
O desastrado ri:
- Descurpe. Não tenho raiva dos seus calos. Não foi por querê.
O 19 corre pelo longo cais, sob o sol forte. Passa pelo Frigorífico e alguém observa: eu queria
tá ali dentro, agora!
Alguns riem. Um operário já velhote e prudente observa: aquilo é bom p'ra dá pumonia! Já
trabalhei lá e peguei uma que quase me levô!
O bonde vai tinindo, para que a carrocinha da padaria Estrela Nova saia dos trilhos. O padeiro
desvia a carroça para um lado, mas fica zangado com a assuada dos passageiros, e mostra o punho fechado para todos. Os operários vaiam, em gritos e
assovios.
No cruzamento da Avenida Rodrigues Alves desce um magote de homens.
Agenor espera a todo o momento que Praxedes desça. Mas o 19 percorre toda a Rua Senador Dantas, e
nada! Na avenida Pedro Lessa há já bastantes lugares nos bancos.
- Tem logá aqui, Agenor, Vamo sentá.
Puxa conversa.
- Sabe, eu tô morando com uma mulhé daqui! Se chama Luísa, o apelido dela é
Lú. Nunca mais sube da Graciema; tu tem visto ela?
Agenor tem um sobressalto.
- Eu? Eu não, Praxedes.
- Ué, home, não percisa ficá zangado, perguntei pur perguntá. Não tenho nada
c'oa vida dela. Vai vê que já tá na vida, aquela semvergbonha!
- Tu tá enganado, Praxedes, Garciema não é destas! É mulhé às dereitas,
tu é que enganô ela!
Praxedes ri:
- Foi um trabainho bem feito, confessa! Piei ela cumo a gente piava nhambu no
Jurubatuba, se lembra? Assim: pi-i-i - pi-i-i. Tu tem caçado muito, Agenor?
- Não tenho, não.
- Nem mulhé?
- Nem. Isto é... às veis.
Agenor vai despedir-se, porque o seu ponto de descida é aquele poste listado de branco, ali na
esquina do canal 5. Mas Praxedes também se levantou para descer:
- Ué! Nois moremos perto, hein?
Vão caminhando agora pelo areão. Parece que este sojeito tá brincando de me acompanhá
- pensa Agenor - Será que ele sabe de arguma coisa? Quem sabe se...
- Praxedes, tu tem visto a dona Maria dos Anjo?
- Eu não. Des-que fui p'ra cadeia não vi mais aquela bisca. Sabe da vida da gente
cumo quarqué rodinha de farmaça ou cumo um promotô!
Então, se não falô, ainda não sabe! É esquisito! E o negro tenta decifrar o mistério.
Não precisa: Praxedes parou junto ao chalé onde mora aquela mulher que provocou Agenor já três
vezes, antes da Graciema vir para ali.
- Moro aqui, Agenor. Tá servido de armoçá?
- Brigado. Bom porveito! Té logo!
Ora vejem! O Praxedes seu vizinho! E amigado com aquela mulhé... Hum...
aquilo é mulhé eu sei d'onde...
Vai entrar em casa. Praxedes ainda não entrou.
- Eu moro aqui, Praxedes. Semos vizinho.
O mulato ri:
- Que engraçado, hein? Quarqué dia eu e a patroa vamo te visitá,
Agenor.
***
Graciema se assusta: que cara é esta? Está aborrecido, Agenor?
Agenor senta-se junto à mesa onde o feijão fumega na terrina. Mete a mão calosa na cuia de queijo
Palmira que serve de farinheira, apanha um pouco e diz: tu percisa não falá com estes vizinho aqui do lado. Nem chegá no
quintar. Não dá trela p'ra mulhé, nem nada. Até nois arranjarmo otra casa.
- Que gente é? É gente ruim?
- Pior que ruim! É gente muito ordenara. Percisa tê cuidado.
- Meu Deus! E eu estive falando hoje de manhã com a dona Lú!
- E ela te falô como se chama o home dela?
Fica suspenso, esperando a resposta:
- Não, não falou. Como se chama, hein, Agenor?
- É... é um tár de... (procura um nome estrangeiro, bem difícil. No jornal que aquele
companheiro vinha lendo no bonde, na sua frente, havia a notícia de um homem que estava vendendo muitos canhões na China, com a última revolução:
como era, mesmo? Ah!) diz-que é um tar de Wu-Pei-Ho!
- Chinês?
- Quar nada! Pelo nome deve de sê russo ou polaco!
Agenor espalha a farinha pelo feijão, satisfeito da sua estúcia. Vai metendo boca abaixo
aquela massinha escura que formou, mexendo com o garfo o feijão e a farinha.
- Agenor!
- Qui é?
- Não se põe a faca na boca, Agenor! É muito feio!
- Dêxa, Garciema! Quando eu ficá capitalista eu não boto mais, sim?
Fazer o percurso agarrado ao estribo era uma
habilidade da qual os homens se orgulhavam
Foto publicada em A Tribuna em 20/5/1947, recuperada do
arquivo particular do autor,
o repórter fotográfico José Dias Herrera
|