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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (25)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Calças azuis

Maria dos Anjos viu.

- Vi com estes óios aqui, dona Benedita. Aquela cachorra com quem se meteu o Praxede corneia ele com tudo que é marinhêro. Vi saí da casa dela, onte à tardinha, otro marinhêro ingreis - é o terceiro nestes dois dia. Eu não le disse que tinha visto ela sozinha andando pulos lados do escretóro da Docas? Ela vai pescá home no cais, como no tempo em que fazia a vida na pensão da polaca. O denhêro do Praxede não chega p'ro luxo qu'ela qué! E dizê que o Praxede abandonô a Graciema p'r'uma mué desta! Coitadinha da moça, vivendo c'um negro, dona Benedita!

- Ora, negro também é gente, dona Maria dos Anjos.

- Sim, adescurpe. Negro é gente, vancê é gente, Benedita, mas afinar sempre a suciedade arrepara, branca se metê com preto...

- Branco se metê cum nois, ninguém arrepara: o Maneco Portugueis todinha veis que eu na quitanda me canta. Eu finjo que acho graça, me rio, e ganhando laranja, ovo, pé de côve... Mas não na cantada dele, não. E se fosse, nenhum branco não achava ruim. Agora, pruquê preto tombém canta as branca, tudu mundo qué arrepará... Ora, não sejem bestas!

Maria dos Anjos não gosta de brigas consigo. Que os outros briguem e forneçam assunto para falatório, isso sim! Com ela, não.

- Tem rezão, dona Benedita, tem toda a rezão. Mais cumo le dizia: a descarada daquela mulhé vive largada com marinhêro ingreis toda a hora que o Praxede não em casa. Bem feito: quem fais aos otro, sempre arrecebe de arguém a paga.

***

Praxedes volta para casa. O vapor que ia descarregar, o Algie, atrasou, só entra de manhãzinha. Perdeu o serviço extraordinário.

O bonde é o último da noite, e faz um friozinho úmido, trazido pelo chuvisqueiro.

Que vale que vô p'ra casa e Lú lá. A Lú, com os braços quente, na cama quente. A Lú... Tentação, aquela mulhé! Me enrabichô mémo. Tem feitiço no corpo dela! Ela sabe se enroscá na gente!... Chi! Este bonde não anda... - Toca isto a oito ponto, seu! - grita para o motorneiro, que ri e responde, porque aquela é a última viagem, depois vai entregar o bonde na estação e vai dormir, ficar quieto como o bonde, até de madrugada! Por isto responde:

- Está a andaire o que pode!

Praxedes tocou a campainha, e nem esperou que o 19 parasse mais para saltar.

A Lú tá co'a luz acesa! Decerto lendo argum romancinho de donzela.

Praxedes empurra o portãozinho, sobe os degraus, abre a porta da sala de jantar e entra em casa.

A porta do quarto está aberta, e a Lú deitada na cama com um homem ao lado. Penduradas na cadeira onde Praxedes pendura as suas, estão umas calças de zuarte azul, e um dólmã de marinheiro está jogado sobre o baú prateado, onde a mulher guarda a rouparia e os romances.

O homem pula da cama. Lú fica deitada, toda nua, e ri para Praxedes. O marinheiro é um homenzarrão, claro e loiro, que se põe a gritar com o mulato: vá s'emborra! Mim chegô primerra... Mim passar o noite here!

O estivador está desarmado - que raiva! Mas o marinheiro vai ver! Praxedes puxa-o para a sala de jantar, e o finlandês deixa-se levar, cambaleando. Está bêbado, Praxedes viu duas garrafas de cachaça debaixo da cama.

- Até tenho vergonha de batê num home assim!

Mas bate assim mesmo. Um soco no queixo, e o marujo desaba logo.

- Levanta, ingreis frôxo. Vem apanhá de novo!

O outro achou boa a solução do caso, ficar dormindo ali no chão, e não se mexe mais. Praxedes arrasta-o pela camisa através da sala, através do corredor de madeira do alpendre, através do jardinzinho, e o joga dentro da vala que margeia a rua.

A água fria desperta o finlandês, que se levanta da vala, encharcado, praguejando coisas que o mulato não entende.

Praxedes corre a buscar as coisas do marinheiro, e as atira na rua, junto ao homem que vai gingando, pela lama: duas botinas grossas, o dólmã, as garrafas de cachaça vazias... Depois entra de novo em casa: agora é a Lú.

Ela está sorrindo, toda nua, na cama. Olha para ele, abre-lhe os braços, cínica: vem logo, negro, que eu tô virge ainda esta noite!

Praxedes diz: o teu ingreis já levou o dele...

- Ingleis não, Praxedes: ele é da Finlândia. De um logar chamado assim... ah! Helsinki!

Praxedes tira o largo cinturão de couro: ela vai , cumigo.

Súbito, Lú se atira sobre ele, aperta-o nos braços, beija-o na boca, aperta-lhe contra a camisa os seios nus. Vai arrastando o homem para a cama, e ele se deixa levar, fascinado, como o pássaro que fitou os olhos da serpente.

Quando estão à beira do leito, ela o empurra, Praxedes cai de costas sobre o colchão, morno ainda dos corpos que ali estavam.

Lú tira-lhe as botinas, puxa-lhe as calças pelas pernas, rindo, toda nua, sob a luz vermelha da lâmpada embrulhada em papel de seda.

Praxedes tem a impressão de que, sob aquela luz, a sua carne vai gritar, gritar de desejos. Então cerra os olhos, vencido.

***

Meia hora depois, Lú ergue um dedo e aponta a cadeira. Riem-se os dois, fazendo balançar a cama de molas ferrugentas.

Na cadeira estão penduradas as calças azuis do marinheiro de Helsinki.


Praça da República em 1927

Foto enviada a Novo Milênio por Ary O. Céllio, de Santos/SP