Conversa
- Psiu!
- Que é?
- Não dá bom dia p'ros vizinho?
- Bom dia.
- Chi! A sinhora parece que tá zangada comigo.
- Não estou, não senhora. Porque havia de estar?
- Pois é! Eu sô a Lú, Luisa, sabe? e a sinhora?
- Eu me chamo Graciema.
- Bonito nome. É estrangêro?
- Brasileiro.
- O meu nome é franceis: Louise. Meu pai era norte-americano. Adivinhe de onde era a minha
mãe?
- Sei lá, dona Lu!
- Não adivinhava mesmo! Era de Vladivostoqui. Ui -
ia caindo de cima do caxão, que vale que segurei no muro - Sabe onde é que fica?
- O que?
- Vladivostoqui!
- Depois que torcer esta roupa vou ver no dicionário...
- Não percisa: é na Ásia! Minha mãe era ase...asietica!
- Asiática. Gente amarela. A senhora também sofre de amarelão?
- Eu não! Até tenho boa saúde. Também, não bebo. Nunca bebi, acredita?
- A senhora é que sabe se eu devo acreditar ou não.
- Tá bem. Tô vendo que a sinhora não gosta mesmo de mim. Vô descê do
caxote. Eu subi no muro só p'ra conhecê a sinhora, sabe? Mais a sinhora não gosta das vizinha... Faiz treis
dias que tá morando aí e eu só agora lhe vejo no quintar.
- Não é por nada, dona Luíza, é que tenho que lavar toda esta roupa e o tempo é pouco, desculpe.
- Ah! Tô vendo. Eu também lavo rôpa. Mais tem mancha de óleo de vapô que não
sai mesmo!
- Eu tiro todas.
- Eu vô buscá uma blusa do meu home, quero aprendê a tirá. A
sinhora me ensina?
- Ensino, sim.
Lú sobe ao quarto e volta correndo.
- Tá qui. É esta, na manga; uma bruta mancha.
- Olhe, a senhora põe gasolina num pires, e deixa a mancha dentro uma meia hora, depois...
- Mais cum'é que eu vô dexá a mancha dentro do piris se eu não sei
tirá ela?
- Ora, dona Luísa! A senhora deixa a parte do casaco que tem a mancha dentro da gasolina,
entendeu?
- Tava brincando, eu entendi. Lá na minha terra...
- Pois é. Depois, passa sabão de soda, um pouco de cinza, põe no sol. Sai tudinho!
- Sabia tirá com tesoura. A sinhora sabe, com tesoura?
- Não sei, não.
- É assim: a gente pega na tesoura e corta, direitinho, toda a mancha. Depois, no buraco que ficô,
prega fazenda iguar ou parecida: tá pronto! Viu?
- A senhora é engraçada, dona Lú!
- Na minha terra, na... no Egipito, sabe?
- A senhora é africana?
- Eu não! Cruiz! Sô do Egipito. Sô morena, mais porém branca -
qué vê cumo aqui no braço onde não pego sór eu sô mais clara?
- É mesmo.
- Dona Graciema: que é que a sinhora acha dos home, hein?
- Acho que são como os cachorros: uns lambem a mão da gente, outros mordem...
- No finar, tudo cachorro. Eu também acho!
- Diga uma coisa, dona Lú: o seu marido lhe bate?
- Quar nada: é louco por mim!
- Porque esta noite a senhora gritou que assustou a gente?
- Foi porque ele quis rasgá meu pinhoar, sabe? Um todo preto, de passarinhos
corolidos. Quarqué dia le mostro: uma beleza! Comprei no contrabando; todinho de seda japonesa!
- Seu marido quis rasgar porque não gosta?
- A sinhora é tão inocente, dona Graciema! O seu marido também não fica nervoso, às vezes,
de querê rasgá as suas rôpas; p'ra andá mais depressa? Não fica?
Graciema não responde. Está longe, num mato do Paquetá, onde Praxedes Lloyd lhe rasga as vestes
íntimas: eu caso, Graciema, dêxa que eu caso!
- Pois é: o meu Praxedes às vezes qué rasgá o meu pinhoar. Estes homes são
tudo uns semvergonha... O pior é que a gente gosta! Eu gosto, e a sinhora, hein, dona Graciema?
Graciema não ouve. Está torcendo umas calças do Agenor, com os olhos tão distantes, que Lú desce
do caixote e vai para dentro, ler outro capítulo do novo romance que comprou mesmo na porta de casa: "Rosalina, a que morreu pura como um
lírio..." e com uma "Observação: este livro pode ser lido também por meninas."
Praça da República em 1921
Foto:
Acervo José Carlos Silvares/Santos Ontem |