Santa Casa de Todos os Santos
A doente do leito 25, na 4ª clínica
médica de mulheres, abriu O Diário, correu nele os olhos e disse para s companheiras: aqui traz a história
da Santa Casa.
Uma moça, profundamente anêmica, recostada nos travesseiros, pediu em voz tênue: lê p'ra nois,
Orga!
Olga ajeitou os óculos de aros de arame e leu:
A Madrinha de Santos.
Santos nasceu da Caridade e da Misericórdia.
Caridade de Braz Cubas, criando um hospital porque "os marinheiros que chegavam enfermos ou aqui
adoecia,m, depois de cá estarem, padeciam muitas necessidades por falta de se curarem".
Misericórdia da Irmandade que administrou, desde o primeiro dia da sua vida, esta "casa de Deus
para os homens", erguida junto ao outeirinho de Santa Catarina, e celula-mater da terra santista.
Pascoal Fernandes Genovês e Domingos Pires foram os primeiros povoadores destas plagas,
estabelecidos em frente à Barra Grande e à foz do Rio Bertioga, com uma casinhola em comum.
Do lado fronteiro, na ilha que foi sucessivamente Pequena, de Braz Cubas, dos Padres e hoje é
Barnabé, morava um cavalheiro, fidalgo da Casa del-rei e moço da Câmara: Braz Cubas, aqui aportado com
Martim Afonso de Souza, donatário da capitania.
Braz cultivava na sua ilha arroz, açúcar e outros gêneros, e no coração nobres idéias de
fraternidade.
Plantado no estuário, a bordo da sua ilhota, via o fidalgo chegar, de terras distantes,
marinheiros cansados e doentes de travessias e bordejos sem fim.
Porto solitário, não havia na Barra Grande, junto à boca escancarada do Santo Amaro, um teto ou um
leito para os corpos sofredores.
Em frágeis ubás ou em pesadas barcaças, os moradores de São Vicente acorriam às naus, vendendo,
comprando, cambiando produtos com os que chegavam. A travessia a fazer era longa, arriscada quando feita barra afora, penosa e lenta se contornada a
ilha, até a povoação.
Braz Cubas pensou: não seria mais fácil um novo porto, do lado de cá de Santo Amaro, que fosse
como que braços abertos e amigos para as naus cansadas? E não seria bela esta idéia: um hospital neste porto, como amigos braços abertos para
sofredores marinheiros?
Comprou Braz Cubas grande parte das terras do Genovês e de Domingos Pires. Nestas terras estava
incluído o outeirinho de Santa Catarina, terras cobertas de mata virgem, que os séculos desfiguraram. Terras que hoje são rasgadas por ruas tão
nossas conhecidas: Senador Feijó, Martim Afonso, Braz Cubas, Constituição,
Visconde do Rio Branco, Praça Teles e da República...
Junto ao outeirinho, em 1543, foi Santos fundada.
Quis Braz Cubas que ela nascesse da Caridade e da Misericórdia: iniciou a nova povoação fundando,
antes de mais nada, um hospital e uma igreja.
Primeiro hospital da América, primeira confraria da Misericórdia no continente americano.
Santa Casa de Todos os Santos, chamou-lhe, em lembrança da homônima lisboeta.
Santa Casa de Todos os Homens, poderia chamar-lhe, em lembrança da sua nobre finalidade.
Como previra o fundador, em pouco todas as naus que velejavam por estas paragens chegavam ao seu
porto: aqui havia bonança para as velas cansadas de tormentas, consolo e alívio para os homens cansados de sofrimento.
O que o comércio de Genovês e do seu sócio não conseguiu, fê-lo Braz Cubas com a sua Misericórdia:
a povoação cresceu, prosperou, desligou-se de São Vicente, alcançou o foram de vila apenas dois anos depois de fundada.
A povoação batizada como Porto da Vila de São Vicente foi rebatizada definitivamente - passou a
ser a vila de Santos. A sua madrinha fora a Santa Casa da Misericórdia de Todos os Santos, que lhe emprestara o nome, para consagrar melhor a idéia
de Braz Cubas - uma vila cujo alicerce fosse a Caridade e fosse a Misericórdia.
À sombra do outeirinho e da boa madrinha do seu sopé, Santos cresceu. E a sua Santa Casa,
transferida no século XVII para o campo da Misericórdia (hoje Praça Mauá), daí passou para o sopé do Monte
Serrat, há mais de cem anos. Mudar-se-á de novo, mudar-se-á muitas vezes no correr dos séculos, mas enquanto existir não terá sobre a sua essência
força alguma a força do tempo: será sempre Misericórdia e Irmandade, porque é esta a cláusula básica do seu "Compromisso" quadri-centenário. Assim o
quis Braz Cubas, moço amigo do rei, fidalgo da Casa Real, que um dia fundou uma cidade, dando-lhe por madrinha uma Santa Casa de Todos os Santos
para todos os homens...
***
A moça anêmica suspirou: para todas as mulheres, também!
Uma servente passou com o carrinho branco, distribuindo o almoço: dieta 5ª, p'ra você; você
come a 7ª, Jerônima; e você, Orga, qualé?
A mulher olha os pés inchados que fogem de sob a coberta e diz com voz triste: 2ª, sempre sem sal!
O doutor disse que eu incho mais se comer comida temperada.
Irmã Sofia passa de avental branco sobre o hábito negro, fiscalizando a enfermaria, ralhando com a
servente que ainda não arrumou a cama onde morreu aquela noite a velha que tinha o câncer e para a qual já há outra candidata recém-chegada na
ambulância.
Um grito angustioso chegou abafado até a 4ª clínica. Depois um outro e outro e uma série de
gritos, num crescendo de voz e num crescendo de angústia. As doentes novas se atemoriza, tapam os ouvidos; as mais antigas erguem os ombros e
explicam: é da Maternidade.
***
Na Maternidade, Graciema grita.
Na sala das gestantes de últimos dias, onde os lençóis desenham curvas fartas, estendidos sobre o
ventre das mulheres, há cochichos de susto.
Na seção vizinha, das puerperais, suspenso sobre cada leito, do lado oposto à cabeceira, balouça
um berço, de onde vêm vagidos fracos e onde se mostram punhozinhos vermelho-roxos, através do filó dos cortinados.
Graciema volta num carrinho de rodas de borracha, da sala asséptica. Vem pálida, aguçando os
ouvidos para perceber, até onde for possível, o chorinho fraco de criança no primeiro banho.
Deitaram-na no leito, entre uma preta gorda que teve gêmeos e uma italiana que é mãe pela décima
quinta vez.
Aa vizinhas se interessam: foi tudo bem, não?
Graciema fala com custo: como se sofre! Parece que a gente vai estalar, romper-se toda!
A italiana consola: poverina, primo figlio! Poi, uno si abitua. L'ultimo mio bambino nom m'ha
fatto piú dolore!
A parteira-chefe vem tomar o pulso de Graciema e a temperatura. Impõe silêncio: psiu!
Fiquem quietas. Vocês precisam de dormir.
Anota na papeleta: 105 pulsações e 37º,4.
Irmã Simplícia traz nos braços uma trouxinha de roupas, que abre para Graciema ver: é menina!
A moça sorri, triste, e pensa: antes fosse homem, sofre menos! Lembra mais uma vez a sua desgraça,
uma desgraça que passou agora a ser partilhada. os olhos se marejam d'água.
Irmã Simplícia quer saber, na sua vozinha doce: que nome vai pôr, Graciema?
A parturiente morde a ponta do travesseiro para não soluçar alto, mas as palavras amargas sobrem,
impulsivas, do fundo da alma: chame ela de Desgraça, irmã Simplícia, de Desgraça, como é a minha vida.
Irmã Simplícia põe a criança no berço. Volta, passa a mão pálida e fina pelos cabelos da moça: que
é isto, filha? Não chore assim, Nossa Senhora não gosta!... O desespero é pecado, filhinha! - Afaga-a mansamente - Eu serei a madrinha: vamos
chamá-la de Terezinha. Não gosta? Foi uma santinha tão meiga!
Graciema segura a mão de irmã Simplícia, cobre-a de lágrimas e de beijos: quero, sim, Nossa
Senhora!
A freirinha quer dizer que Graciema se cale, que é blasfêmia chamá-la assim, Nossa Senhora, a ela,
uma grande pecadora.
Graciema não lhe larga a mão e repete, repete: Nossa Senhora, minha Nossa Senhora!
Irmã Simplícia quer falar, mas se abrir a boca sabe que deixará fugir todos os soluços que estão
presos na garganta. Por isto, cerra os dentes e procura livrar a mão, sem dizer nada.
Hospital da Santa Casa, no sopé do Monte Serrat, em postal de 1912 com foto de H.Eckmann
Foto:
Acervo José Carlos Silvares/Santos Ontem |