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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (15)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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O olho vermelho

- Você como se chama, hein, belezinha?

- Me llamo Conchita.

- Espanhola, logo vi!

- No: habanesa... de Cuba, en las Antilas.

Um mulatinho pintado de ruge e polvilhado com Lady vem à mesinha de ferro, onde conversam a mulher e o rapaz:

- Que vamos tomá?

- Traz uma Hamburguesa, gelada.

- Otra para mi - pede a mulher.

O garçom vai rebolando os quadris, e fica um perfume rançoso no ar e que decerto vem da carapinha engordurada com brilhantina das Lojas Brasileiras.

- Então você é cubana, hein?

O rapaz procura assunto, mas é novato naquela vida, sente-se acanhado, e quer mostrar que o não é.

- Soy cubana, si. De Habana - suspira - tierra linda!

Fica olhando para ele, a ver o efeito. O garçom volta e fala, fino: duas Hamburguesas, geladinha! - Abre as garrafas que espumam.

O rapaz emborca uma no copo, bebe tudo sem tomar fôlego - precisa demonstrar que é homem, e traquejado em pensões como aquela. Depois bate com o fundo do copo na mesa e diz, com jeito de entendido: não está mal.

A mulher bebe em goles pequenos, fingindo atitudes, como se já tivesse sido meretriz de 50$000.

Na mesa próxima dois homens bebem licores com uma mulata de vestido de cetim azul, enfeitado de vermelho. O que está sem companheiro olha insistentemente para Conchita, que já percebeu tudo e já piscou três vezes para ele, a última agora, sungando a liga num gesto generoso de exibição, que põe à mostra metade de uma coxa acaju e glabra.

A mulher está tão treinada no movimento, que ergue o vestido e bole na liga mostrando exatamente o máximo que é possível mostrar sem aparecerem as manchas azuladas das injeções de mercúrio.

O rapaz que está com ela já bebeu uma garrafa inteira para mostrar que é costumado, e não viu nada dos manejos de Conchita e das piscadelas do homem da mesa vizinha. Este faz gestos, convidando Conchita a vir para a sua mesa, a despachar logo o "empata".

Conchita pede: queridito mio, me dá um cigarro, sim?

Acende-o no fósforo solícito que o rapaz oferece, e joga-lhe a baforada em cheio no rosto. No meio da fumaça branca, cerra um pouco as pálpebras bistradas a carvão de rolha, bate os cílios tingidos com rímel: estoy ansiosa - vamo p'ro quarto, queridito mio?

O rapaz toma atitudes de entendido e tenta um sorriso esperto: fingida! Pensa que eu acredito? Só se não conhecesse mulher da zona!

Conchita se levanta, rindo, puxa-o pela mão, arrasta-o pelo corredor escuro, na direção do cubículo onde arde uma lâmpada envolta em papel de seda vermelho.

O rapaz se despe, pensando; será que ela falou de verdade? Mulher, às vezes, tem cada capricho! E se aquela se enrabichasse mesmo por ele? Conchita... cubana... havanesa...

- Vem logo, benzinho, com frio!

O rapaz se atrapalha com a gravata: tira ou não tira? Como será que se costuma fazer? Ora, decerto ela vai querer que ele passe muitas horas ali. Pode ser fingimento, mas pode ser verdade também: ela disse que estava ansiosa! Começa a desfazer o laço.

- Eh! usted pretende ficá em pélo? Dexa disto, queridito mio!

Ele para, encabulado, e disfarça perguntando com ar superior: você não está doente, hein, Conchita?

A mulher se finge de ofendida: por quien me toma usted? No soy destas, sabe?

Ele não a quer magoar, basta a palavra dela. E deixa o pessário que trouxe no bolso da calça, dobrada sobre o baú prateado do quarto de Conchita, na pensão Pekim, fronteira ao armazém IX da Companhia Docas de Santos.

A lâmpada coberta de papel vermelho parece um olho injetado por todas as volúpias reles do cais do porto, e a cama suja arfa e geme como se tivesse vida e participasse também do amor barato do prostíbulo da rua que margeia os armazéns de zinco.

***

- Boa noite, queridito mio! Vorta sempre, sim?

- Boa noite, Conchita. Volto qualquer noite destas.

Conchita espera que o mocinho se vá embora, ele parece que quer desembuchar alguma coisa. Diabo! E o outro homem lá em cima, esperando. É capaz de perder o freguês. Se a Ruiva chegar, ela perde mesmo.

- Então? Esqueceu alguma coisa? Quem sabe se foi a gorjeta?

O rapaz está nervoso; mete a mão no bolso e tira uma prata: você é boazinha, toma p'ra uma cerveja.

Ela guarda a moeda na mão: gracias a usted e buena noche!

No vão escuro da porta, o mocinho suplica, em voz tremida: Conchita, me dá um beijo, sim?

Ela ri - que sujeitinho pau! Principiante, não aceita mais. Que vão aprender com outra!

- Me dá, Conchita?

Conchita repara que o mocinho traz uma corrente de relógio atravessada de um bolso do colete ao outro. Para se ver livre, ela pede, sorrindo: só se usted me regala su reloj...

O rapaz tira do bolso um relógio niquelado, desabotoa a corrente, põe tudo nas mãos dela: me dá o beijo, Conchita!

Não há mais remédio: as bocas se juntam, atrás da porta da rua, e logo se descolam.

Sai apressado, e a mulher sobe a escadaria, rumo à sala onde a espera aquele freguês: que menino tonto! Eu, se fosse a mãe dele, dava umas palmadas na bunda, p'ra não andá se perdendo com mulher da vida! Que vale que a Ruiva não chegou ainda!

Conchita vai sentar a uma mesa vazia, e o freguês que piscou para ela, enquanto o mocinho bebia cerveja, vem logo sentar-se ao seu lado.

- Olá!

- Comment çà va?

- Bem, como é o teu nome?

Conchita nem pestaneja:

- Margot!

- Hum... francesa?

- Oui, de Marseille.

- Assim morena?

- Française du sud - em Marseille quase tudo é moreno.

- Não tem sotaque! Quer um licor?

- Oui, liqueur-r-. De cacau, s'il vous plâit.

O garçom de carapinha rançosa vira nos cálices o líquido escuro, metade licor, metade água com açúcar, que a dona da casa, madame Polsasky, juntou para tirar a "fortidão" e fazer render a garrafa.

- Vamo até lá? - propõe Conchita-Margot, havanesa de Marselha, hóspede da pensão Pekim.

O homem esgota a última gota da bebida, paga a despesa e vai atrás dela, rumo à luz vermelhado fundo do corredor.

***

- Paga arguma coisa, marinhêro simpático?

O homem louro e agigantado bate na mesa a mão pesada como a âncora do cargueiro Gascony, junto a cujas fornalhas ele sua e cresta a pele, durante os longos bordejos e as longas travessias.

- Olá, tois caninhe!

- Liqueu-r, licor! - pede a mulher.

- Tois caninhe! - confirma o inglês. What is your name?

- Hein?

- Como se llama?

Conchita-Margot responde indiferente:

- Rafaela. Soy de l'America Central, de Guatemala. Conoce usted?

- Catemala! Oh, yes! Bons girls! Bons pequenas! Very well, Re...

- Rafaela, chico!

- Re-fe-ela! grunhe o inglês, e empina o cálice.

Conchita-Margot-Rafaela puxa-o pelo braço, e o foguista do Gascony vai gingando pelo corredor na direção da claridade vermelha que vem do último quarto.

***

Está de sorte. Já despachou três, e aquele gajo ainda veio sentar à sua mesa. A féria está boa. Calcula mentalmente: quatro veis cinco, iguar a vinte e cinco! Não: vinte mi réis! Mais dois de gorjeta, mais a corrente e o relógio... Não está ruim a noite! e fiz todos os homens beberem: madama Polsaski não pode se queixá! Este mulato que na minha frente tem cara de quem anda em jejum de mulhé faiz muito tempo: tem um fogo nos óios e bate que bate c'oas ventas! Fome de mulhé... é capaiz de queré ficá p'ra passá a noite todinha, mais eu não tô p'ra isto. Só si ele pagá bem... digamo uma coisa bem arta: cincoentão! Assim ele desisti - melhó!

Tem cara de muita fome; mais de cobre, nada! - Hein? Sim, benzinho, pode mandá vir cerveja! - O mulato é diferente dos outro: não me pergunta nada, nem o nome. Parece que me qué cumê c'os oios! Que cara! Não faiz mar - eu puxo a conversa, enquanto bebemo as cerveja:

- Você é marinhêro, aposto!

- Quanto aposta?

- Nada, ! se você aceita é porque não é!

- Não .

- Então veiu do sítio.

- Também não.

- Você andava pronto, não tinha dinhêro há muito tempo, p'ra procurá mulhé...

- Quar, você não sabe divinhá nada!

- Não me belisque que eu sô cosquenta! Vô adivinhá, qué vê? Você não está com mulhé há mais de um meis!

- Agora acertô - você leu nos meus óio ou sintiu nas minhas mão?

- Eu sei fazê adivinhação. Eu vim p'ra cá pequena, mais eu nasci na Índia, sabe, e meu pai era faquir, destes que fazem encantação com cobra e com gente. Me chamo até de um nome esquisito, nome indiano: Kabilah. Bonito, não acha?

O homem franze a testa com enfado:

- Não seje besta, mulhé. Eu lhe conheço do Mangue, no Rio de Janeiro. Você era a Lú, operara da estação da Manguêra, e tinha caído na vida por causa de um seu primo. Sempre que eu ia no Mangue buscava só você, tinha um rabicho, não sei que era. Os treis meis que estive lá foi assim... Não se alembra de mim? Pois não me venha com história de Índia e de Kabide, que eu já lhe comi muita veis com o nome de Luísa, a Lu do número 123, não se alembra?

A mulher ri: é verdade. E como é o teu nome?

- Eu o Praxedes, José Praxedes Lloyd.

Conchita-Margot-Rafaela-Kabilah - Luísa, vulgo Lú, fingiu que se lembrava: ah! o Praxedes! Vamo conversá no meu quarto, Praxedes?

- Não quero otra coisa! Faiz uns sessenta dia que eu não sei o que é mulhé!

- É mesmo: você não disse nada de onde veiu.

- Da cadeia pubrica.

Lú sentiu medo, mas já estavam no corredor escuro, e o olho vermelho espiava lá no fundo, parecendo chamá-los.

Pela quarta vez na noite, a chave ferrugenta girou a lingüeta que fez: ter-r-réque, carregando os rr como a pronúncia francesa da dona do quarto.


Rua Xavier da Silveira e os armazéns do cais, em cartão postal de 1909

Imagem cedida a Novo Milênio por Ary O. Céllio