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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 34

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 3 da edição de 2 de abril de 1944 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Pai Sumé

O escritor Calmon Barreto, do Rio de Janeiro, não se contenta em ser um artista em quem a técnica disputa primazia à inspiração. É, ao mesmo tempo, um estudioso e um enamorado das nossas lendas. Foi nessa vereda escura, coberta pela poeira dos séculos, que ele encontrou assunto para uma de suas obras, aquela que, certamente, enriquecerá ainda mais o patrimônio artístico dos dias que estamos vivendo.

Trata-se de Pai Sumé, figura lendária, pouco conhecida, mas que interessa a todo o continente. Pai Sumé, de um certo modo, pode representar a civilização americana, no seu progresso social, político, científico, industrial e agrícola. É um símbolo. Talvez o mais belo símbolo do Novo Mundo.

Quem será, afinal, esse Pai Sumé? Vamos enumerar algumas das escassas informações que, vencendo todas as dificuldades através dos séculos, chegaram até nós.

Quando os primeiros colonizadores desembarcaram na América, encontraram um continente selvagem com diversos núcleos de uma civilização que se distanciava da europeia. Aparte poucas nações, entre as quais os incas e os astecas, que dispunham de organização social adiantada para o tempo, à parte determinadas tribos que já haviam constituído as bases de nascente sociedade, o resto eram povos nômades cujo nível moral e intelectual começava a alvorecer. No entanto, apesar dessa disparidade de cultura, esses povos da América já dispunham de adiantada compreensão para guardar, sob a forma de lendas e apólogos, de enternecedora beleza, muitos dos mais importantes acontecimentos do passado.

Vários estudiosos julgaram encontrar numa lenda tupi, transmitida oralmente através de mil gerações, o cataclismo do Dilúvio Universal. Por seu turno, em determinadas vezes, a cruz não era de todo desconhecida como elemento de culto. Alguns riscos gravados na face dos monólitos foram interpretados como o símbolo do fogo, que, naquelas terras, se conseguia mediante o uso de duas hastes e era guardado, com pomposo ritual, de geração para geração. No entanto, não são muitas as lendas repetidas ao mesmo tempo, pelas nações do Norte e do Sul do continente. Entre as que, segundo parece, constituem exceção, está a lenda de Pai Sumé. Boa parte da América repetiu de pais a filhos a façanha apostólica desse homem diferente.

Tal tradição, ou que outro nome tenha, é a seguinte:

Um dia, na mais remota antiguidade americana, quando os filhos da terra ainda viviam em completo obscurecimento, na região das altas florestas e dos grandes rios, foram surpreendidos com a chegada de estranha personagem que vinha do mar. Esse vinha do mar devia significar para os narradores que ela surgiu das ondas, alcançou a praia e se adentrou pela terra virgem.

Com razoável boa vontade, tal frase pode perder alguma coisa do maravilhoso que encerra e passar a referir-se apenas a um navegante, aventureiro ou náufrago, figura assaz encontradiça na nossa história e que, certamente, antes de 1499, aqui surgiu e aqui ficou para sempre. Caramuru, é de crer-se, não foi o único europeu encontrado na praia, entre destroços de naufrágio; não seria, também, o primeiro a socorrer-se do milagre ao seu alcance, procurando por esse meio conquistar o respeito dos aborígenes. O mágico é um dos mais velhos elementos de domínio, de Moisés ao Padre Cícero.

Os índios chamaram-no de Pai Sumé. Era um homem alto, de estatura delgada, de barbas e cabelos longos, cor de ouro, envergando alvíssima túnica. As mãos eram brancas, as palavras macias, as atitudes de infinita bondade. Que pretendia ele? Ninguém sabe. A verdade, porém, é que, segundo a tradição conturbada que nos chegou através dos anos, ou dos milênios, conseguiu viajar do extremo Norte ao extremo Sul do continente, deixando vestígios de sua passagem na lembrança dos povos, com os quais teve contato. Os índios chamaram-no logo, respeitosamente, de Pai.l Na língua portuguesa, a voz que o designou entre os índios tem sido grafada como Pai Sumé. Na língua espanhola, a voz é a mesma - Pay Zumé -, com grafia diferente.

Há cerca de dois anos, o sempre apreciado Matias Arrudão publicou um artigo neste jornal, sobre a misteriosa personagem. Lembrou esse nosso colega que, em diversos pontos do território brasileiro, existem pegadas em baixo relevo, algumas realmente semelhantes à forma de um pé, outras simples covas na pedra, sugerindo vagamente o passo de um peregrino e que a lenda conta como sendo o "rastro de São Tomé".

Referiu-se a frei Jaboatão que viu uma dessas marcas a sete léguas de Recife bem como a Simão de Vasconcelos, cronista da Companhia de Jesus, que testificou existir "na Bahia, fora da barra, distante como duas léguas da cidade, onde chamam a Itapoá, outra pegada de homem, perfeitíssima, metida de impressão na sustença da pedra".

Na parte referente a São Paulo, o autor cita as "Informações do Brasil e suas Capitanias, de Anchieta, que falava em Çumé como sendo São Tomé e que deixou sinais em São Vicente. A frei Gaspar da Madre de Deus, que registrou o caso do Embaré, de que falaremos linhas adiante. Estudou a tradição na Argentina e no Paraguai, na parte relativa ao mate. Apoiou-se em Roque Gaona e no padre Diogo de Torres, concluindo que a lenda do Sumé teria sido absorvida pela Companhia de Jesus e, depois de habilidosa superposição, devolvida aos índios como sendo a lenda de São Tomé, visto como o sincretismo religioso foi um dos principais fatores da vitória dos Inacianos (N.E.: jesuítas, discípulos de Inácio de Loyla).

Como teria surgido por aqui o apóstolo São Tomé, realizando milagres que milênios depois deveriam assinalar ainda a sua passagem? A explicação dos cronistas é a seguinte:

Depois de haver manifestado dúvida sobre a ressurreição de Jesus, e de ter ouvido a resposta do Mestre, o apóstolo desapareceu. Sua presença só foi assinalada, mais tarde, por ocasião da morte da Virgem Maria. A seguir sumiu de novo e para sempre. Supõe-se que ele, no intuito de penitenciar-se da pecaminosa dúvida, tenha tomado a si a missão de pregar o Evangelho nos confins do mundo, entre os selvagens. Com tal intuito, ter-se-ia feito ao mar num daqueles fantásticos navios fenícios, sob o comando de navegadores anônimos que, sem dar o devido valor às suas façanhas, visitaram as cinco partes do mundo, muitos séculos antes dos famosos navegadores.

O caso do Embaré é um dos mais curiosos.

O historiador Francisco Martins dos Santos registra-o no seu livro Lendas e tradições de uma velha cidade do Brasil, atribuindo-o a uma esperteza de Antonio Rodrigues, o solitário de São Vicente, com o intuito de explicar aos colonos trazidos por Martim Afonso de Sousa a existência de uma pequenina civilização anterior. Vários pontos da ilha e da região, observa o meu ilustre conterrâneo, já haviam recebido sementes. Por ali já se encontravam milho, mandioca, feijão, cana-de-açúcar e vestígios de criação antiga, porcos e galinhas. O governador e seus nobres tinham interesse em esconder desses homens rudes uma vida anterior da colônia, encabeçada e dirigida por um degredado, embora ilustre, que fora o "bacharel".

Daí a lenda que Francisco Martins dos Santos assim resume:

"Sumé viera do alto, enviado por Tupã, das grandes florestas do Toriba (paraíso), chegara àquela fonte cansado, parara para beber e, em sinal de gratidão à terra que saciara a sua sede, deixara a impressão do seu pé na primeira laje vizinha. E fez mais,: ele que viera para ensinar a arte do trato da terra e que trazia para isso um grande saco ás costas, repleto de sementes, resolveu iniciar a obra naquela região, que tão boa lhe parecera. Anunciou-se por toda a ilha como enviado de Tupã, convocou os habitantes daquelas dezenas de ocas que se espalhavam por ali,e, diante de todos, jogando ao chão um punhado de sementes, fez brotar muitas plantas que logo produziram alimento e riqueza, fartura para a tribo. Depois da experiência que deixou os circunstantes entusiasmados, Sumé distribuiu por eles alguns punhados dos preciosos grãozinhos, para que os plantassem, desaparecendo em seguida, em passadas lentas e solenes sobre o mar".

A figura de Sumé está sempre ligada ao mar. A sua obra é sempre de ensino, de ensino direto às populações primitivas. O que há de importante na voz dos antigos santistas é a afirmação de que, entre eles, estava presente, conhecida de todos, a formosa lenda pan-americana, a tal ponto que a pegada inexplicável, entrevista nas rugosidades de uma pedra, logo lhes trouxe à mente a figura iluminada de Pai Sumé.

Para isso, era preciso que, naquele tempo, a misteriosa personagem estivesse no conhecimento de todos e, verdadeira ou não, fosse lembrada pelo primeiro bugre, ou pelo primeiro colono lusitano que observou a curiosa depressão na face daquela pedra.

Seja Pai Sumé quem for, emprestemos esta ou aquela interpretação à sua presença, ele comparece ao chamado da nossa imaginação com a figura que Calmon Barreto lhe atribuiu, no seu bloco de mármore. Alto, cabelos compridos, barbas pela altura do umbigo, a túnica leve arrepanhada pelo vento, moldando-lhe o corpo de magreza esquelética. Foi essa fraqueza angélica que lutou com o agressivo cenário do continente "ainda molhado do Dilúvio".

Surgindo sobre um crescente de praia, vencida a cólera ou o terror do primeiro aborígene, entrou pela terra firme. A floresta era alta, escura, inextricável. Árvores felpudas, ressoantes de insetos e de passarinhos, embargavam-lhe o passo. Todos os animais, ainda na alegria do primitivo Éden, saíam das tocas, dos caraguatás, das luras e vinham cheirar a fímbria esvoaçante da sua túnica. As serpes se lhe enroscavam nas pernas e o santo precisava desatá-las com as mãos, como se fossem cipós caídos. As onças aproximavam-se rastejantes, esperando o instante propício para se atirarem contra o seu vulto diluído em ouro e brancuras, mas dali a pouco, surpreendidas pela carícia macia de seus olhos, atiravam-se para trás, num uivo espantoso, só deixando empós da fuga um tremor de medo na folhagem, um silêncio de pasmo entre as nuvens de passarinhos.

Os jacarés se arrastavam para a lagoa, sulcando a água morta em linhas retas, até se perderem no lodo, numa floração de bolhas, de espumas e de ramos. As garças, desajeitadas, ensaiavam o voo difícil, com um aflar de leques aflitos. Os lagartos que dormiam ao sol, sentindo a aproximação daqueles pés finos e magros, fugiam para a sombra das velhas árvores, num remoinho de folhas secas revolvidas.

Quando Pai Sumé atravessava as campinas, esmaltadas de miríades de corolas, as borboletas vinham dançar ao redor da sua figura, como de uma flor; os enxames de irapuá esqueciam-se das colmeias ocultas nas forquilhas e iam emaranhar-se naquela bola de fios de ouro que rolava pela terra.

Atrás dos troncos ou no turbilhão verde das copas, cabeças humanas cercadas de penas espreitavam curiosamente a sua passagem. Mais de uma vez a destra mão de um índio levou a flecha ao arco, distendeu a corda, apoiou um joelho no chão e, no instante em que ia disparar, sentiu pulsarem sobre os seus os olhos suaves daquele estranho caminhante. Todo ele se perturbou. A corda afrouxou, o arco voltou à primeira posição, a flecha caiu inútil a seus pés e o homem branco prosseguiu no seu caminho, por entre as árvores, com a fímbria da túnica a enroscar-se nos açucarás cujos espinhos parecem unhas de gato.

Foi assim que ele chegou à primeira taba. Devia ser quase noite. À hora em que a terra bárbara se recolhe numa grave cisma. As fogueiras erguiam chamas altas. A fumaça azul era feita de seu desmanchado e regressava ao alto, de onde tinha vindo, com o fogo, atributo de Deus.

À sua chegada, houve um corre-corre. Mulheres cor de terra, quase nuas, com os cabelos ásperos caídos aos ombros, espiavam-no pelo buraco das ocas. Os curumins correram para ele e tocaram com as mãozinhas grudentas de mel a pulcritude das suas vestes. Ele parou, acariciou-os. E os curumins, em algazarra, correram para as ocas, contando que o filho do sol tinha as mãos macias. O cacique desejou vê-lo. Chegou rodeado de conselheiros, ao som de tambores e buzinas. O desconhecido falou-lhes numa linguagem estranha, mas que todos entendiam. Sentaram-se ao redor da fogueira e ficaram conversando pela noite a dentro, ante a curiosidade pisca-pisca das estrelas.

Quando o cacique se retirou, cheio de vênias e zumbaias, Pai Sumé chamou os feiticeiros da tribo. Tinham o corpo negro e a cabeça ramalhuda, como os pés de xaxim. Só então falou a linguagem da sabedoria e da revelação. Disse que fora mandado por Tupã; vinha das regiões serenas e azuis do Toriba, onde os homens têm asas brancas e voam pela terra, como os pássaros voam pelo céu.

Então, os pajés veneraram-no.

E ele traçou a linha sinuosa, sempre inquieta, que divide os reinos do Bem e do Mal. Esses dois reinos, como as tribos da terra, estavam sempre em luta. O bom era aquele que repartia com o hóspede o calor da fogueira, o teto da cabana, o peixe pescado no rio ou a caça abatida no bosque. O que respeitava a sorte dos vencidos na guerra, o que plantava o chão, o que ajudava os velhos a atravessarem o rio ou as crianças a colherem os frutos altos.

O mau, em contraposição, era o que pescava exclusivamente para si, que negava uma brasa para o vizinho acender a itacoruba, que fazia a guerra atrás do toco, que cegava os prisioneiros para que eles não mais pudessem combater, ou que, num acesso de ódio, moqueava os heróis de outras tribos para mastigar-lhes o fígado.

Um pajé perguntou:

- Para quê ser bom?

Então o estrangeiro enumerou os galardões para os bons e os castigos para os maus. A América toda, quando os navegadores chegaram, já tinha ideia de paraíso e de inferno, a seu modo, naturalmente. Para os Peles-Vermelhas (escreve Charlevoix), as sombras dos hábeis caçadores, dos guerreiros vitoriosos, iam para uma imensa campina, espécie de Terra Prometida, onde reinava perpétua primavera. Búfalos e cabritos monteses andavam por ali, ao alcance de qualquer flechada. A carne era excelente e esses animais podiam ser abatidos sem derramamento de sangue. Ao contrário, as almas dos Peles-Vermelhas que na terra se tinham comportado como homens maus iam padecer em trágica região setentrional, coberta de eternos gelos.

Os próprios esquimaus (N.E.: esquimós) tinham as suas ideias a tal respeito. Os bons, isto é, os que haviam caçado muitas focas, afrontando perigos, ou que se haviam afogado no mar, habitavam, depois da morte, um mundo superior, onde o sol brilhava sempre, onde as focas, peixes e aves aquáticas nadavam em águas límpidas e se deixavam capturar complacentemente. Muitos destes animais (observa o citado autor) já ferviam voluntariamente, com delicioso molho, nas caldeiras paradisíacas. Mas os maus...

O mesmo com os incas, com os astecas.

E com os índios da imensa terra que deveria chamar-se Brasil. Quando morria um bom, Tupã vinha e o carregava para o Toriba, onde bastava estender a mão para pescar um peixe, abater uma caça, colher um fruto,ou apropriar-se de uma colmeia. A sua taba era azul, alumiada de estrelas. Mas quando um mau morria, Anhangá tomava de sua alma e carregava-a para as planícies escuras, onde não havia dia nem noite, onde os perseguidos tinham vida e se apresentavam mais fortes, retribuindo com largueza as ofensas recebidas...

Os pajés, ouvindo aquele ensinamento, cabeceavam.

Falou da família, do respeito dos filhos pelos pais e pelos irmãos dos pais. Pôs um laço de cor sobre o artelho esquerdo das virgens. Ensinou como se fabrica uma igaçaba, como se conseguem na mesma desenhos de duas ou mais cores. Demonstrou aos pajés atentos a necessidade de enterrar os mortos. Ensinou-os a dividir o tempo pela repetição dos fenômenos naturais. Com certeza, foi depois daquela conversa que o tupi pôde dizer e ser compreendido: "quando a Lua voltou a ficar redonda", ou "quando a imburana estava em flor"... Ensinou os mais rudimentares cuidados com o campo, a plantar mandioca, a ralar a raiz, a fornear farinha, a fermentar a bebida. Pôs ordem nos sons dos instrumentos. Ensinou os pingas a profetizarem. Os velhos a conhecerem as raízes e as plantas que aliviam a dor, que dão alento aos caminheiros estropiados, que cicatrizam as feridas recebidas em combate.

Tudo isso teria feito Pai Sumé quando por aqui andou.

Foi um bem e foi um mal. Foi um bem porque tornou os índios americanos hospitaleiros, generosos e acolhedores. Foi um mal porque os europeus que aqui chegaram nos primeiros tempos não corresponderam ao suave ensinamento de Pai Sumé - destruíram tudo quanto encontraram, as normas de vida e os homens. E essas normas de vida não eram tão ruins como se possa imaginar. Séculos depois, alguns índios foram levados à Europa e os filósofos se admiraram da beleza da vida simples, nas florestas. Dessa aproximação nasceu uma literatura. O povo leu e gostou. Em 1793 desencadeou-se a Grande Revolução. Há quem diga que aqueles índios contribuíram, em parte, para ela.

Mas ninguém se lembrou do grande mestre de vida que há milênios por aqui passou: Pai Sumé.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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