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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 33

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 26 de março de 1944 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

O passado

O Rio de Janeiro do segundo quartel do século passado (N. E.: século XIX, 1825 a 1850) admirou ao dr. Jorge Antonio Schaeffer. Ainda hoje, para quem lê as crônicas daquele tempo, esse homem continua a ser figura excêntrica e misteriosa. Respigando no pouco que sobre ele se tem escrito, pode-se resumir assim a sua fé de ofício:

Em 1815, meteu-se numa aventura nas ilhas Sandwich a serviço do czar de todas as Rússias. Mais tarde, apareceu como representante de uma companhia russo-americana. Chegou mesmo a içar o seu pavilhão nas ilhas de Havaí, em sinal de posse. Conta-se também que tomou parte na expedição Kotzbue ao Rio de Janeiro.

Este oficial, que comandava um navio de guerra, era filho do escritor do mesmo nome, representante alemão na Rússia e que, voltando pouco antes ao seu país, fora assassinado pro um estudante de nome Karl Zend. Mas, não nos desviemos do assunto...

Voltando à Rússia, o agitado dr. Schaeffer conseguiu ser recebido pelo czar Alexandre I, mas este não atendeu aos seus pedidos. Desanimado, veio para o Brasil. Aqui chegando - não há dados precisos - apresentou-se com o título de "Navegador mundial". Foi bem recebido. Naquele tempo, o Brasil ainda era um país exótico cujo soberano, dom Pedro I, embora ligado a uma das mais nobres casas da Áustria, não gozava de fama recomendável nas cortes europeias.

A verdade é que o dr. Schaeffer aqui chegou como antigo conhecido do imperador e de d. Leopoldina. Esta, em sua correspondência, tratava-o com muita consideração. Chamava-o de "excelente Schaeffer" e de "meu único amigo". Foi apresentado pela corte em funções geralmente nebulosas: agente secreto do imperador na Europa; encarregado dos negócios do Brasil nas cidades hanseáticas etc. Seu ordenado chegou a ser de quatro contos anuais, soma respeitável para o tempo.

O que se sabe com alguma certeza é que o dr. Schaeffer punha em primeiro lugar na vida os prazeres efêmeros da mesa. E principalmente, do bom vinho. As pessoas que testemunharam a sua presença no Rio e na Europa viam-no sempre ao lado de garotos vadios, num ambiente de jogo e de mulheres. Assim mesmo, ou talvez para livrar-se de tal hóspede, Pedro incumbiu-o de uma missão no estrangeiro,o engajamento de braços para a lavoura e os ofícios, assim como soldados para a guerra. A julgar pelas cartas da imperatriz, o dr. Schaeffer também foi comprar animais de raça para as reais cavalariças.

Além de arrebanhar essa gente, o dr. Schaeffer publicou anúncios na imprensa alemã, prometendo mundos e fundos aos que quisessem vir para o Brasil. Agenciou contratos [...] havidos, criou situações difíceis para a nossa diplomacia. "Nos cinco navios, mandou ele 1.338 pessoas e algum armamento". Não admira o êxito de sua empresa. Movimentava respeitável ofício. Por aquele tempo, a Europa estava cheia de homens que, terminadas as correrias napoleônicas, irradiavam a sua ociosidade pelos portos, à espera de qualquer coisa, mesmo que fosse pior, mas que os torasse da [... (N.E.: ilegível no original: miséria?)]  exasperante. Ao que parece, o dr. Schaeffer, minado pelo álcool, terminou os dias como auxiliar da catequese dos botocudos no Rio Doce.

Foi graças a ele que dom Pedro I organizou o Batalhão Alemão, com sede no Rio de Janeiro; em Desterro, capital da província de Santa Catarina; e em São Leopoldo, na Província de S. Pedro do Sul. A [...] que [...] na Praia Vermelha [...] de sangue na [... (N. E.: ilegível no original: guerra/guela?)]. Davam a vida por quase nada. Serviram ao Brasil nas campanhas do Sul e, quando escasseavam guerras, punham em perigo a ordem do Império. (N. E.: trechos ilegíveis no original)

Mas ali pelos fins de 1830 já estavam em vias de decomposição. É que os contratos assinados pelo dr. Schaeffer não eram cumpridos. O marechal Braun, seu chefe, já não tinha muita força sobre os seus subordinados. O tenente Carlos Frederico Gustavo Seidler, anos depois, escreveu um livro intitulado Dez anos de Brasil, traduzido ultimamente pelo general Bertoldo Klinger, no qual se encontram páginas e páginas de mau humor sobre a terra e os figurões daquelas priscas eras.

Homens saídos de todas as profissões, com um decidido gosto pela aventura, sentiam-se sufocados no quartel da Praia Vermelha, numa espera que se eternizava. Muitos se extraviaram. Tinham saudade da pátria e bebiam. Bebiam e tinham saudade da pátria. Esses infelizes baixavam à tarimba, enfermos, e dali eram conduzidos para a sepultura. Houve mesmo, em número apreciável, os que despedaçavam o crânio com um tiro de pistola. E o número de suicídios na tropa chegou a ser tão grande, que foi pedido um inquérito, a fim de averiguar se uma força oculta, agindo nas trevas, não estava dando cabo daqueles jovens louros e ardentes, enlouquecidos pelo sol dos trópicos.

A suspeita, em parte, tinha a sua procedência. O ambiente político nacional estava fortemente revolucionário e os batalhões estrangeiros eram tidos como a força do Império. Uma forte "animosidade" surgiu entre os alemães e o [...] carioca. Para os soldados da Praia Vermelha, como se vê no livro do tenente Carlos Seidel, os cariocas eram isto e mais aquilo; para os cariocas, o batalhão da Praia Vermelha era o "batalhão dos diabos"...

No fim de dezembro de 1830, o imperador, em companhia de sua esposa, já então d. Amélia, e gente do paço, deixou a Quinta Imperial de São Cristovão e seguiu com destino a Ouro Preto. Não teve a recepção que esperava. E quando, desanimado, regressou ao Rio de Janeiro, os inimigos já haviam realizado a sua obra. Os constitucionalistas andavam à noite pelas ruas da Capital a enforcar os pedristas, nos raros lampiões da iluminação pública. No seu afã de liquidar todos os elementos fiéis ao imperador, acabaram por obter um decreto dissolvendo o batalhão de alemães.

Essa notícia foi recebida na Praia Vermelha com demonstrações de revolta. Houve reuniões, compromissos de responder com armas na mão etc.. Por último, ficou resolvido que o general Carro e o coronel Schualbach, comandante da artilharia, procurassem o imperador e com ele se entendessem. Certa manhã, o general e o coronel saíram do quartel da Praia Vermelha e se dirigiram à Quinta de S. Cristovão, onde Pedro I os recebeu em audiência, entre figurões do paço. Os dois oficiais explicaram-lhe a situação. O monarca respondeu que nada poderia fazer contra a resolução das cortes. O diálogo que se seguiu foi assaz vivo. Trocaram-se ameaças. O caldo esteve para entornar. Mas chegaram a um acordo que não contentou a ninguém.

Ficou estabelecido, por esse acordo, que se licenciassem quatro infantes por dia. A maior parte dos soldados e sargentos tinha o seu ofício. Os que eram carpinteiros, sapateiros ou alfaiates viram uma oportunidade para melhorar de situação. Talvez progredissem mais como artífices do que como soldados.

Daquela data em diante, todas as manhãs, quatro soldados iam procurar o comandante Schualbach e este lhes dava baixa. A cena era simples. Os homens se apresentavam e explicavam a um escrevente a sua situação. Este redigia o documento e ia levá-lo ao comandante, que assinava.

Começava assim: "João Schualbach, cavaleiro professo da Ordem Militar de São Bento de Aviz, condecorado com a Cruz das seis campanhas da Península e da Batalha da Vitória por S. M. Católica, Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, Coronel Comandante do Batalhão de Fuzileiros da Primeira Linha do Exército e interino do Depósito Geral de Recrutas, por Sua Majestade o Imperador a quem Deus Guarde etc. etc."

Aqueles soldados que deixavam o quartel da Praia Vermelha se iam integrando na vida da população. Nem todos ficaram no Rio de Janeiro. Uns foram para Minas, outros tomaram o caminho de São Paulo. De dois deles posso dizer alguma coisa. Tomaram a direção de Santa Cruz e, com certeza, fizeram a pé o caminho desta Capital, o que era muito comum na época, pois nem toda gente dispunha de cavalos para tão longa viagem.

Um chamava-se Forster. Aqui chegando, dedicou-se ao trabalho, constituiu família, tornou-se elemento de relevo na Paulicéia, de 1830 por diante. Um seu filho, de nome Antonio Forster, iniciou a vida como tipógrafo e foi dos que compuseram e imprimiram o primeiro número da A Provincia de São Paulo, em 4 de janeiro de 1875. Depois, mudou-se para Santo Amaro, dedicou-se aos negócios, foi prefeito da localidade e faleceu há poucos anos, cercado de numerosa família, venerado por toda a população.

Outro chamava-se Geraldo Henrique Bruncken, natural de Waldenburgo, na Silésia (N. E.: região da Europa atualmente dividida entre Polônia, República Checa e Alemanha, compreendendo no território alemão parte do estado da Saxônia; a cidade citada fica no distrito Zwickau, a Nordeste de Glauchau e Noroeste de Chemnitz). Graças à sua permanência no Rio de Janeiro, já falava com desembaraço a língua da terra. De São Paulo, passou-se para o litoral.

A vida em São Vicente nunca foi muito apressada. No entanto, ali por 1830 e 1831 conseguiu ser ainda menos apressada do que hoje. Meia dúzia de ruas constituídas de ranchos e casebres demandavam a praia ou o porto do Tumiaru. Algumas casas de negócio, com bestas amarradas à porta. Repartições públicas, ferrarias, alugadores de seges e de animais, milicianos, caiçaras de grandes chapéus pretos, carregando água da Biquinha, lavadeiras ajoujadas ao peso das trouxas, moleques de ganho apregoando quitandas e bugres de cócoras pelos caminhos. O resto eram chácaras, sítios, onde se plantava mandioca e se forneava farinha. No porto, havia barcaças de Iguape, São Sebastião e Cananéia.

Foi ali que, certa manhã, apareceu aquele homem diferente. Apresentou-se de botas curtas, calça bombacha de casimira azul, larga faixa vermelha e sobrecasaca cor de pinhão com botões dourados. O rosto, ainda muito moço, fazia-se enérgico à custa de vasta bigodeira loura. O cabelo, igualmente louro, era penteado para trás e na nuca virava para cima, como cauda de escorpião. Sobre tudo isso, um chapéu alto, em cone partido. Devia andar entre os 27 e os 30 anos. Os caiçaras, de olho finório, que conhecem o viandante pelo rastro, embalde procuraram identificá-lo.

- É reinol, chegadinho de fresco - disse um.

O outro sacudiu a cabeça:

- Bóis não bêdes que é da militança?

Devia ser. Naquela época, com a dissolução dos batalhões estrangeiros no Rio de Janeiro, esse pormenor não era tranquilizador. Verdade ou não, dizia-se que entre aqueles honestos artífices engajados pelo dr. Schaeffer nas cidades e aldeias da Alemanha, e que constituíam a maioria dos batalhões dissolvidos, havia gente de oura marca. Eram aristocratas sem vintém, negociantes encalacrados, homens sérios ameaçados de prisão por dívidas, estudantes reprovados em Heidelberg e, quem sabe lá, até distintos batedores de carteira matriculados no porto de Hamburgo. Portanto, o ambiente que Geraldo Henrique encontrou não foi dos mais simpáticos.

Mas a verdade é que ele devia ter qualidades, grandes qualidades. Com o tempo, vestiu-se como os demais calungas, tornou-se pessoa benquista na terra e tão grato se tornou à população que, em 1832, ninguém se escandalizou quando foi anunciado o seu casamento com d. Jesuína Gabriela Muniz, vicentina de boa família e muitos mimos, descendente dos primeiros povoadores da capitania. Era filha de Tomaz José Muniz de Morais e de d. Maria Inácia da Fonseca, neta de Jacinto Muniz de Gusmão. Mas paremos por aqui. Se recuássemos no tempo, acompanhando a sua árvore genealógica, iríamos encontrar a Antonio Vaz Muniz de Gusmão, cavaleiro fidalgo da casa d'El Rey, que veio para o Brasil em 1580, na companhia de Frutuoso Barbosa, governador da capitania da Paraíba, a fim de ocupar um cargo pouco alegre, o de "tesoureiro dos defuntos".

Esses vicentinos de nobre estirpe moravam numa chácara pouco distante do centro e as suas portas, se fossem armoriadas como as das casas fidalgas do Reino, poderiam apresentar dois brasões: as cinco estrelas de ouro, de sete pontas, dos Munizes, e as duas caldeiras xadrezadas de ouro, com as três cabeças de serpentes, dos Gusmões.

Pois foi com dama de tanta fidalguia que se casou, em 1832, o estrangeiro saído havia pouco das fileiras do quartel da Praia Vermelha. Para tanto, num tempo austero como aquele, muitas qualidades devia apresentar o jovem alemão. E a tradição familiar diz que d. Jesuína Gabriela Muniz de Gusmão não fez mau casamento.

Da igreja foram para a casa paterna. Ali viveram alguns anos. Ali nasceram os primeiros filhos. Em 1836, Geraldo Henrique comprou umas terras da fazenda Cubatão de Cima, com engenho e canaviais, e para lá seguiu com a família.

Em Cubatão passaram o resto da vida. A fazenda era um canavial que se estendia pela baixada da serra. O sol queimava-o, o vento noroeste deitava-o no chão. A água da cachoeira cantava na roda do engenho. Os pretos chegavam com os carros de bois carregados de cana. A produção era de aguardente e açúcar. Os sitiantes da redondeza levavam ao engenho milho e arroz em casca, para serem beneficiados.

Entre a casa velha e o engenho, havia um rancho de tropeiros. Enquanto a tropa descansava na mangueira, cercada de bambus, os tropeiros sentavam à roda do fogo, contavam histórias, bebiam pinga dali mesmo e tocavam viola. Não raro, um costurava outro a ponta de faca. Mas aquela vida devia ser tão boa, tão atraente, que Lindolfo, o filho mais velho de Geraldo Henrique e d. Jesuína Gabriela, calçou as botas, botou o pala, amarrou o lenço no pescoço e fez uma madrugada: acompanhou uma tropa. Anos depois, chegou sua primeira carta. Vinha do Rio Grande do Sul, de Nonoai, nas serras. E nunca mais deu notícias.

Pedro morreu muito moço.

Dorval, mestre-escola, morreu velho, mas solteiro. Tinha esquisitices. Viveu quase arredado dos parentes.

Henrique Geraldo, escrivão da barreira existente na ponte coberta do Rio Cubatão, foi transferido para a barreira do Jundiaí e nessa cidade casou, em 1852, com d. Maria Clara Pereira de Meira, de uma velha família de Mogi-Mirim.

Adélia casou na família Sá. Elisa na família Ribas. Cidália na família Furtado, todos de Santos.

O nome de Bruncken, pelo menos no Brasil, está quase extinto. Mas a nossa terra conta centenas de netos, bisnetos, tetranetos e mais longínquos descendentes daquele soldado da aventura e daquela gentilíssima dama, filha, neta e bisneta de orgulhosos vicentinos.

Se ainda fosse vivo aquele soldado alemão que serviu a dom Pedro I e ao Brasil, se o tivesse alcançado na terra, eu teria uma grande satisfação em ir pedir-lhe a bênção. Ele, com certeza, perguntaria:

- Quem é você?

E eu responderia:

-Afonso, seu bisneto...

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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