O trabalho de terracota inaugurado em 22/1/1943 e logo
destruído por vândalos
Foto: acervo de Osmar e Enyde Apparecida Domingues Moretti
A Biquinha de Anchieta
André Gonçalves e Américo Vespúcio trouxeram em seus navios um
degredado ilustre, Mestre Cosme Fernandes, que, segundo alguns historiadores, teria sido o famoso bacharel de Cananéia. Após dois meses de
permanência em São Vicente, foram-no deixar em Cananéia. Cosme Fernandes, que conhecera bem o belo e dadivoso ambiente vicentino, evidentemente não
se satisfez e conformou com o lugar determinado para seu degredo, e assim, apenas quatro ou cinco anos após, já aparecia no Porto de São Vicente e
no ocidente da Ilha, resolvido a nova fixação espontânea. E, como era um degredado, com lugar certo para o cumprimento de pena, reconheceu-se fora
da lei e construiu seu pequeno povoado inicial, atrás da baía de Paranapuã, cuja barra não dava acesso aos navios de grande calado e,
conseqüentemente, aos navios do rei, indesejáveis para ele.
Cosme Fernandes chegaria a ser um verdadeiro potentado, senhor de Engenho, de lavouras, de
criações diversas, de um comércio alentado com as armas e navios itinerantes e um importante tráfico de escravos, negociado a quatro mil réis por
cabeça. A sua São Vicente, muito citada nos documentos de vinte anos depois, possuía arsenal, estaleiro de embarcações, uma fortaleza de pedra,
várias casas européias e outras benfeitorias assinaláveis. São desta primeira fase vicentina, a partir do quinqüênio 1515/1520, repetidas vários
anos depois, as primeiras notícias das águas da Fonte de São Vicente ou do Povoado, que viria a ser a atual Biquinha ou Biquinha de Anchieta,
emoldurada em quatro séculos e meio de tradição.
O Morro de Tumiaru (antigo Outeiro de São Vicente, posteriormente conhecido por Morro Santo
Antônio, Morro dos Padres e atualmente Morro dos Barbosas), junto à Praia Mahuá (hoje Praia de São Vicente ou da Cidade, que o povo apelidou de
Gonzaguinha), possuía duas nascentes de águas potáveis, capazes de servir ao grupo social daquele tempo e ao conjunto do
povoado de Cosme Fernandes, em várias necessidades e aplicações.
Uma das fontes era aquela, indicada como a Fonte do Povoado (Biquinha), ali mesmo, quase na
ponta Leste do morro, próxima da Praia Mahuá; a outra, já considerada uma cachoeirinha, era a do centro, ou "do campo" (Fonte dos Padres), origem do
riozinho, mais tarde conhecido como Rio do Sapateiro, onde hoje se encontra o reservatório municipal (do Morro dos Barbosas). Havia uma terceira
fonte, mas do outro lado ou lado Oeste do morro, no lugar chamado Paquetá, proximidades da atual Ponte Pênsil, que servira
ao primeiro porto e povoado de Cosme Fernandes (o Porto Tumiaru).
Todavia, a única, realmente famosa, seria, apesar de menor que a segunda, a Fonte do Povoado
(Biquinha), por suas características físicas (geográficas e naturalísticas), por sua beleza ambiente e pela superioridade de suas águas, que se iam
despejar no riozinho fronteiro, a cem metros da praia (atual Praça 22 de Janeiro) - ambiente que, mais tarde, seria aproveitado pelos jesuítas, para
suas apresentações artísticas e teatrais ou preleções ao ar livre.
Na nova organização dada ao povoado anterior, por Martim Afonso de
Souza, com a criação da vila - tornada cabeça ou capital de toda a Capitania -, a Fonte do Povoado ou da Vila continuou como era, até que a
vinda dos jesuítas, sob a chefia de Manoel da Nóbrega e Leonardo Nunes - a quem caberia fundar o Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente,
inaugurado a 2 de fevereiro de 1553, oitenta metros distante da mesma fonte (Biquinha) -, lhe daria uma nova dignidade utilitária e social. É que,
de fato, a Leonardo Nunes, grande catequista, caberia criar uma primeira bica de serventia pública, na Fonte tradicional, na mesma ocasião em que
mandava fazer a primeira captação da cachoeirinha do Centro ou do Campo, por meio de um pequeno aqueduto, para os usos gerais ou maiores da
coletividade jesuítica e vicentina.
Leonardo Nunes morreria em 1554, em conseqüência de um naufrágio, e a freqüência ao lugar
por Anchieta começaria a partir de 1555, após um ano de fundação de São Paulo de Piratininga, quando se
hospedou no Colégio de São Vicente em 1561 e teve os primeiros contatos com o povo de São Vicente e da vila de Santos,
freqüentando ao mesmo tempo o litoral de Itanhaém e Peruíbe. Anchieta só seria realmente padre, com ordens maiores e de missa, em 1556, sagrado na
Bahia. Depois disso, viria para a Capitania de São Vicente, onde veio a ser superior do Colégio vicentino no período de 1567/1577.
É quando, então, se torna célebre a Bica da Fonte da Vila (antiga do Povoado), porque
Anchieta dá preferência, em suas práticas e meditações, ao ambiente paradisíaco criado em torno dela pela natureza. Logo mais, daria aulas de
catecismo e primeiras letras portuguesas, naquele lugar, junto à Biquinha, para que seus meninos, os catecúmenos e órfãos brancos, sentissem
melhor os seus ensinamentos. Pouco mais tarde, com tempo firme, montava ali também as suas peças teatrais, os seus conhecidos e famosos autos
assistidos pelo povo e pelas autoridades locais, hoje considerados como origem e nascimento do Teatro no Brasil.
Durante alguns anos exerceu-se em São Vicente, junto à Biquinha, o apostolado de José de
Anchieta, atingindo os litorais vizinhos. Foi mesmo nesse lugar, e nas atividades litorâneas do Apóstolo do Brasil, que se desenvolveu e fundamentou
a sua fama de santidade. E é deses anos e de sua constante presença que surge a denominação popular de Biquinha de Anchieta, ainda hoje corrente
entre o povo, com fortes razões como se vê. Reza a tradição que Anchieta teria construído o primeiro monumento rústico da Biquinha, que atravessou
alguns séculos.
A Biquinha de Anchieta, em fins do século XIX,
ostentava no rústico paredão a data de 1850
Foto: Poliantéia Vicentina, 1982, Ed. Caudex Ltda., S. Vicente/SP
José Antônio Zuffo, que foi proprietário dos terrenos onde está construída a Vila Santo
Antônio, em que Leonardo Nunes fundou o 1º Colégio jesuíta do qual Anchieta foi reitor, querendo prestar uma homenagem ao taumaturgo, mandou
confeccionar uma placa de bronze e colocou-a na Biquinha, cuja inauguração deu-se no dia 19 de março de 1933, aniversário de nascimento de Anchieta.
A senhorinha Margarida Zuffo, dileta filha do capitalista, foi quem descerrou a bandeira nacional que cobria a placa, cujos dizeres perpetuam, de
vez, a estada de Anchieta naquele local.
Em meados do século passado (N.E.: século XIX),
ainda se encontrava no rústico e singelo paredão ali construído a data de 1850, o que tudo faz crer ter sido construído naquela data, várias foram
as transformações recebidas pela histórica fonte, no tocante ao aspecto de sua fachada. Do velho paredão, sobreveio um belo painel em mosaico
português. Depois, sempre estampado motivo da milagrosa missão de Anchieta entre os índios, substituíram o mosaico por um delicado trabalho de
terracota em alto-relevo, que foi inaugurado em 22 de janeiro de 1943, quando São Vicente comemorou 411 anos de fundação. Infelizmente, essa obra
durou muito pouco, porque nesse mesmo ano foi toda depredada pelo vandalismo de irresponsáveis e inconseqüentes. Então, novo mosaico foi colocado no
histórico recanto vicentino, continuando até agora.
Em verdade, a Biquinha de Anchieta, com seus belos azulejos, é hoje um verdadeiro monumento
ao Beato José de Anchieta, que serve a milhões de freqüentadores, todos os anos, e acode também a centenas de lares e milhares de habitantes, por
hábito, por preferência ou por falta do precioso líquido em suas torneiras, tornando-se, por uma razão ou por outra, mas principalmente por sua
imensa tradição, o mais legítimo e mais enternecedor dos monumentos públicos de toda a Baixada Santista.
O trabalho de terracota estampando a milagrosa missão de Anchieta, em alto-relevo,
inaugurado em 22 de janeiro de 1943, mas logo destruído por vândalos
Foto: Poliantéia Vicentina, 1982, Ed. Caudex Ltda., S. Vicente/SP
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