Poesia Sempre é um resumo da incalculável obra de Narciso, inspirada
quase sempre na paisagem santista que mais o agradou e ainda o encanta: o mar e o céu em seus infinitos. "Sempre escrevi sobre o mar e sobre Santos.
A gente se esgota, mas o tema não se esgota".
A preferência fez com que o paulistano, nascido em 20 de julho de 1925,
ganhasse o codinome de Poeta dos Ventos e das Maresias, na cidade onde nasceu Vicente de Carvalho, o Poeta do
Mar.
Lembrando o pescador de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, que
tira do mar o alimento do corpo e da alma, Narciso encontra no ir e vir das ondas uma estreita relação com a poesia. "Os melhores poetas, modéstia à
parte, são ligados ao mar. Vicente de Carvalho é um exemplo disso. O próprio Zezinho (Martins Fontes), tinha muitas
poesias sobre o mar".
Narciso sempre gostou de caminhar pela orla e pelo Porto. Foi quando olhava
o trajeto dos navios que surgiram os primeiros versos de Cais, considerados por Décio de Almeida Prado, ex-diretor do Suplemento Literário
de O Estado de S.Paulo, uma das mais belas passagens produzidas na poesia brasileira, conta Adelto Gonçalves na introdução de Poesia
Sempre.
"Com tanto navio para partir/Minha saudade não sabe onde embarcar", recita o
poeta. "Eu estava no cais e procurava qualquer coisa com que me identificasse naquela paisagem. Os versos foram surgindo, mas não são nada demais".
Poemas apaixonados - Narciso de Andrade é do tempo em que os grandes
amores rendiam belos poemas. A esposa, Amélia, se recorda de uma ocasião em que viajou com os cinco filhos do casal para Poços de Caldas, para que o
marido pudesse escrever tranqüilamente. "Combinamos que ele iria nos buscar no final do mês. Mas dez dias depois, lá estava o Narciso com o poema
Paramélia, que começa assim: A distância que nos separa/nos aproxima. Tem que ser muito amado, um homem desses", acentua a cúmplice desde 1948.
"No meu tempo, a poesia servia para o jovem apaixonado - nem sei se eles
ainda existem. Hoje, serve para o velho que não tem o que fazer", brinca o poeta. "Mas ela nunca teve função definida. Está muito dissolvida, solta
e sem amparo. E os poetas são fraquinhos, precisam ser amparados".
Avesso a dar conselhos, resolve abrir uma exceção e recomenda aos jovens
colegas: "Não acho que os jovens fiquem menos hábeis se não tiverem conselhos; em todo caso, posso dizer que é melhor insistir e nunca abandonar o
instinto de poeta que o santista tem".
Foi este instinto que permeou sua vida, desde um tempo de que nem se lembra
mais. Segundo Amélia, o marido já escrevia poesia nos cadernos da escola. "Acabava um caderno, começava outro", ele confirma. "Depois deixei de
escrever à mão e passei para a máquina. Era um caminho natural".
De um certo modo, foi a família de Narciso, tradicional na Cidade, que o
conduziu à poesia. Ele diz ser verdadeiro — "nós, poetas, contamos muita mentira" — o encontro com Martins Fontes, durante um passeio de bonde, num
dia da infância. Seu avô, o político Narciso de Andrade, cedia o espaço da casa no Boqueirão para o pintor Benedicto
Calixto.
"A minha família era antiga, mas com um modo de vida atualizado e
independente. Tínhamos uma certa liberdade para fazer coisas que não eram normais na época. Meu irmão pintava e eu fazia poesia".
Trabalho e inspiração - Como era impossível pagar as contas com
versos, e tinha cinco filhos para sustentar, Narciso trabalhou como repórter na cobertura do Porto de Santos, fez traduções e se formou em Direito
com a primeira turma da UniSantos, em 1957. A advocacia lhe assegurou uma bela carreira na Companhia
City, que depois se tornou Light e Eletropaulo.
"A vida de jornal, anos atrás, era boêmia. A gente trabalhava muito, saía de
madrugada, mas em tudo existe um lado poético. Se a gente procura, acaba encontrando", garante. "Mas se eu vivesse só de poesia, teria morrido de
fome. Ela caminhava junto com as coisas que a gente tinha que fazer no dia-a-dia".
No apartamento da Ponta da Praia, são
vivos os elementos que lembram a paisagem de Santos. Inúmeros livros estão guardados em duas bibliotecas, e há, espalhadas, folhas e folhas de papel
sulfite datilografas, que Amélia está selecionando para a publicação de um próximo livro, desta vez de crônicas.
Produção generosa - Durante 49 anos, Narciso escreveu sobre o
cotidiano da Cidade e seus personagens nas páginas de A Tribuna. "Achei um artigo que escrevi beirando os 90 anos (ele tem só 81!) e levei um
susto. A gente não percebe que o tempo passa... a não ser quando os jovens vêm perguntar sobre o que lembramos do passado. O que me surpreende é
que, às vezes, encontro alguma coisa que dá para publicar. Mas isso é raro".
A memória do poeta, que pelo jeito falhou em relação à própria idade, volta
com força quando o assunto é poesia. Sem titubear, ele recita o português Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega
a fingir que é dor/A dor que deveras sente".
O melhor mesmo, no entanto, é encerrar a entrevista com um de seus próprios
poemas:
Poesia é coisa inútil
coisa que não presta
Pra que serve a poesia? Pra nada
O homem precisa de comida e casa pra morar,
de roupa pra vestir,
de um pouco de vento no verão,
do sorriso vegetal da primavera
paz no outono
e a presença de um sol doce no inverno.
A poesia não tem instrumento
para realizar coisa alguma.
Não se adapta à linguagem dos economistas,
é antitecnológica
e gosta de correr solta pelos campos
e pelas matas.
Vamos esquecê-la ou deixá-la
para uso exclusivo dos inocentes,
porque deles é o reino prometido
Poesia Sempre foi publicado pela Editora Unisanta e tem 158 páginas.
Está à venda na Universidade Santa Cecília e na Realejo Livros, por R$ 30,00.