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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - P. MARCOS
Plínio Marcos (10)

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Escritor "maldito", teatrólogo, Plínio Marcos nasceu em Santos em 29/9/1935 e morreu na capital paulista em 19/11/1999, um ano depois de receber o título de Cidadão Emérito da Câmara Municipal de Santos. Amigo de Patrícia Galvão, com quem trabalhou junto na peça Barrela, Plínio tem um marco de homenagem no Centro de Cultura de Santos, que aliás recebeu o nome daquela escritora e jornalista. Dez anos após seu falecimento, o semanário santista Jornal da Orla republicou em seu site na Internet as crônicas de Plínio Marcos que haviam saído na edição impressa desse jornal na década de 1990:

Janela Santista - Plínio Marcos
Somente uma vez na vida

O perereco aconteceu numa fábrica de sabão que ficava lá na Linha Forte Augusto, no bairro do Pau Grande, bem na divisa do Sovaco da Mula, em Santos. A curriola que pegava no batente na fábrica aproveitava a folga do almoço e batia uma bolinha.

Esse lance tinha duas serventias pra eles: ajudava a enganar o estômago, que sempre chiava com a pouca bóia fria, e refrescava a cuca. E era assim que a moçada escorava o repuxo e ia levando pra frente.

Um dia, no meio de um bafo-de-boca, apareceu a idéia de tirarem um racha entre casados e solteiros, a valer barril de chope e tudo. A turma se ligou nesse lance escamoso. Foi a maior animação! O Zé do Sebo ficou de juntar a patota argolada e o Tiziu ficou de cuidar dos solteiros.

E partiram pra organização. Arrumaram camisas emprestadas, bolas, apito, campo e os cambaus. Fizeram vaquinha para comprar o santo chopinho. E se plantaram à espera do grande Domingo do jogo.

Porém, no sábado, véspera da pelada, entrou areia. O Zé do Sebo foi fazer a escalação dos casados se tocou que na sua banda, entre viúvos, ajuntados e regulamentados com papel de cartório, só dava dez.

Como de saída já havia feito o trato de que não valia laço (só podia jogar quem trabalhasse na fábrica), a barra ficou suja. Os casados se lamentaram paca. Foi um bochicho sentido. Mas o Zé do Sebo deu moral:

— Num tem nada, gente. Nós vai lá com dez e belisca esses solteiro assim mesmo.

Esse plá azedou o ambiente. Pro Tiziu, chefe da banda livre, os inimigos virem com dez era um esculacho. Por isso deu o estrilo:

— Aqui, ó, que cês vem com dez! Depois a gente ganha e cês vão avacalhar a guerra espalhando que a gente jogou com mais gente. Ou vem de onze, ou não vem.

Aí empacou o troço. Teve mil papas, estudaram mil fórmulas. Os casados queriam que o jogo fosse dez contra dez, mas não deu pé: os solteiros, além dos onze titulares, tinham uns oito reservas. Detalhe: todos tinham dado grana pra chope e queriam jogar. O Tiziu propôs passar o Sarará, que estava ameaçando casar no fim do ano, pra outro time. Ninguém topou, nem o próprio. Pra botar pra baixo, o Sarará mesmo falou:

— Nós tá combinado de se amarrar, mas não tá amarrado. Eu num entro do lado casado porque pega mal pra moça. De repente, num dá certo e cumé que fica a cara dela? Ela é moça ainda...

Foi aí que o Bacalhau desencalhou a chata. No meio da bobeira geral, perguntou:

— Vale corno?

Ninguém se abriu. Então, ele foi em frente:

— Se vale, convida o Seu Manoel Gerente.

O alô foi aceito. Formou-se uma comissão de casados para ir falar com o homem. Logo que chegaram, explicaram o lance. Seu Manoel se aliviou; quando ele viu a curriola chegar, pensou logo que era pedido de aumento, ameaça de greve e tal e coisa. Metido dentro do assunto, virou todo simpatia. E, todo à vontade, engrenou um discurso:

— Nunca joguei bola. Nunca! Minha vida tem sido só trabalho, trabalho e mais trabalho. Comecei do nada e, com esforço, cheguei onde cheguei. Nunca me diverti, só trabalhei... - e, depois de um suspiro, concluiu:

— Bem que minha mulher me diz que preciso me divertir um pouco de vez em quando...

Era a deixa esperada pela patota. Apertaram um pouco e o homem aceitou, mesmo porque era uma bela oportunidade pra mostrar pra mulher que, apesar do importante cargo de sabujo do patrão ele era tão querido pelos operários a ponto de ser convidado para uma pelada de confraternização. Aceitou, mas fez questão de deixar bem claro:

— Eu nunca joguei bola, nunca. Nem assisti a uma partida.

O Zé do Sebo explicou que ele ia ser ponta-esquerda, fazer número e pronto: os casados ficaram completos.

O perereco engrossou pro lado dos solteiros. Quando souberam que Seu Manoel ia ser ponta-esquerda, todos quiseram ser escalados de lateral-direito. Foi uma zorra. Mas a posição ficou com o Miguel Soneca, que era quem tinha sido mais descontado no ordenado aquele mês e estava, na opinião dos outros, com mais direito de descer a piaba no Seu Manoel.

Foi nesse clima que o jogo teve início. Seu Manoel Gerente entrou em campo com toda a corda. Corria pra todo lado como uma besta. Às vezes, a bola ficava pra ele e aí ele dava um bico pra qualquer lado. Não era fácil o homem.

A torcida já estava começando a se aborrecer com o Miguel Soneca, que não acertava o bruto — não por falta de vontade, mas por falta de chance: o gerente parecia uma vaca brava. Demorou pra cansar.

Só no segundo tempo é que ele parou. Seu Manoel encostou na ponta e ficou, mas a bola não ia lá e o Miguel não era doido de ferrar o homem sem ser na jogada.

No entanto, de repente, uma bola espirrou na ponta. O gerente, todo sem jeito, levantou a perna e, sem querer, matou a bola. Foi uma algazarra, a torcida até aplaudiu. Seu Manoel se entusiasmou, quis fazer bonito. Armou o bico e tacou o pé. Nessa hora, o Miguel solou. Foi lenha. Seu Manoel empacotou. Rolou no chão gemendo de dor. Pra disfarçar, o Miguel Soneca chamou a ambulância.

No hospital, confirmaram que a perna estava quebrada e tacaram gesso no homem. Preocupado, ele chiou pra médico:

- Eu vou ficar aleijado, doutor?

O médico fez ar grave e sacou:

- Não! Mas nunca mais poderá jogar futebol.

* Texto originalmente publicado na edição de 03/10/1999

Janela Santista - Plínio Marcos
Teatro Vivo. Muito Vivo.

O Sérgio Ferrara e o Marco Antonio Braz são dois jovens artistas de muito talento. Ganharam o direito de ocupação do Teatro Eugênio Kusnet, em São Paulo, por um ano. Apresentaram um projeto à Funarte, dona do espaço que um dia abrigou o Arena, para uma abordagem ampla de dois autores brasileiros: Nelson Rodrigues e eu.

Em julho encenam "Perdoa-me", uma peça do Nelson, e fazem leituras de textos meus; em setembro estréiam "Barrela" e organizam leituras do Nelson. Ano que vem, nova dose. Legal, né? Pois é.

Mas o que eu quero contar e o que pesa na balança é que, para abrir essa longa temporada de um ano, os dois jovens diretores me convidaram para apresentar um espetáculo onde eu contasse casos meus e do Nelson. Lembrei de alguns anos atrás, quando eu estava internado no Incor (depois de uma cirurgia nas pernas e antes de outra no coração; minhas pernas só não foram amputadas porque a Verinha, minha companheira, interveio com tudo; botou o Jabaquara em campo, virou a mesa, convocou bambas no assunto e tal e coisa e coisas e lousas. Numa tarde apareceram três belas meninas da ECA (a escola de artistas da USP) com um estranho convite:

— Queremos fazer uma homenagem pro senhor. Pro senhor, pro Vianinha, pro Paulo Pontes e pro Nelson Rodrigues.

Os três já tinham morrido. "Será que eu morri e ninguém me avisou?", pensei. Uma das meninas concluiu:

— O senhor vai?

— Se eles forem, eu vou - respondi.

Já viu: não fui. Mas dessa vez, lá no Eugênio Kusnet, resolvi ir. Chamei meus amigos de fé, os paus-pra-toda-obra: Verinha Artaxo, minha parceira pro que der e vier, Leo Lama, meu nené-capitão; Kiko Armeiro, meu gatão azul. Tiago Tigrão, companheirão que enfrenta todas as paradas pra me ajudar, Carlão do Carnaval, andarilho que me acompanha há uns cinqüenta anos. Minha Festa, minha nenê linda, não pôde ir mas foi a Martinha Tramonte, mãe do meu neto mais velho, o Guilherme.

- Vai parecer cena de A Noviça Rebelde - disse a Vera, gozadora como ela só. A família toda no palco.

Pois coube a ela selecionar e distribuir os textos. Para os três meninos, escolheu "Dois Times Sem Jogo", um texto meu recordista de publicação que nunca tinha sido lido em público. "Todo mundo gosta, é muito engraçado", apostou a Vera. Rimos muito lembrando de uma história envolvendo esse conto.

Uma vez, meu amigo Tarso de Castro pediu um texto pra revista "Careta" e mandei esse. Entusiasmado, ele comprou no ato e foi mostrar pro chefão, Domingo Alzugaray, diretor da Editora Três. Ele botou as butucas no conto e berrou com o Tarso.

- Essa merda eu já comprei oito vezes!

O Tarso ficou puto da vida comigo, mas o que posso fazer se vivo duro?

A leitura seria inédita. Os dois diretores de times, os personagens da história, ficaram para Leo e Kiko; Tiago daria conta das rubricas. O garoto gosta dos bastidores, o negócio dele é manejar som e luz. De inicio, achou que ia gaguejar no palco. Uns dias antes do show, perguntei se ele iria ou não.

"Você não está contando comigo? Então vou, pô" Esse é o Tiago. Foi e fez bonito. Leu com coragem de ator tarimbado. O Leo e o Kiko estraçalharam. O conto foi um sucesso. Nessa noite especial, o Carlão do Carnaval contou façanhas das nossas andanças com um humor incrível e abafou. A Martinha deu seu recado com o talento que tem e já comprovou muitas vezes no palco. E a Verinha regendo tudo.

Eu contei histórias, que é o que eu mais gosto de fazer. Lembrei várias passagens do genial Nelson Rodrigues. Como no dia em que ele me ligou pedindo pra fazer uma pergunta específica para ele num programa que a Manchete estava Armando:

- Pergunta o que eu acho do meu filho Nelsinho - o Nelson chorava.

- Deixa comigo - parecia estranho, mas entendi. Herói do povo brasileiro, o Nelsinho lutava pela liberdade e foi preso. Desesperado, o Nelson foi, com todo o seu prestígio de grande escritor, interceder pelo filho junto ao Médici. O ditador tinha suas mumunhas: convidou o Nelson pra voar com ele pra São Paulo para assistirem juntos ao jogo entre o tricolor do Morumbi e o Grêmio de Porto Alegre; conversariam durante a viagem.

O Nelson tinha pavor de avião, pavor mesmo. Tinha pavor de tudo, aliás; não gostava de sair da sua base. Uma vez, o Ginaldo de Souza produziu uma peça do Nelson e teve que fazer das tripas coração pra ele ir assistir, porque era preciso atravessar a ponte Rio-Niterói... Mas, pra tirar o filho da cadeia, o paizão voou, e voou ao lado do Médici:

- Tiro seu filho, mas só ele. Os amigos dele, nem pensar. São subversivos, comunistas sanguinários.

Aqui, ó, que o digno do Nelsinho aceitou. Só sairia se os companheiros saíssem Ficou. Mas há essa gente maledicente que faz fofoca. Caíram de pau em cima do Nelson. Injuriaram o genial dramaturgo de todos os jeitos. Eu sabia como ele sofria com o filho preso. Sabia também como ele se orgulhava do filho honrado e valente. E fiz a pergunta, para ele poder gritar pra todo mundo ouvir:

- Eu amo meu filho Nelsinho.

A platéia do Eugénio Kusnet se enterneceu com essa e outras histórias do Nelson Rodrigues que eu contei. Também ficou comovida com o Leo Lama, falando de Baudelaire, um maldito entre os malditos. Leo leu um trecho de uma fala terminal do incrível poeta. "E se vocês morrerem uma só vez as mil vezes que eu morri, talvez, quem sabe, percebam o quanto eu amo vocês". Isso está em "Baudelaire, o Pai do Rock", uma obra-prima que o Leo escreveu.

Não estou dizendo isso porque, segundo o Leo, "falou de um maldito, falou de todos" e sou homenageado na peça. O cara é mesmo ótimo, é um gênio. Ah, estou dizendo isso porque é meu filho? Então, tá: vai lá no porão do Teatro Maria Della Costa conferir. O elenco é sensacional, todos novinhos, mas de muito talento: Maral Descartes, o protagonista, com certeza será apontado como um dos melhores atores de sua geração; Nana Pequini, cheia de garra, fibra e arte, vai dar muito o que falar; Gabriela Prevideilo é uma beleza de mulher, uma atriz com luz própria (só espero que a televisão não a leve para transformá-la em mais uma boneca sem nenhuma personalidade e com uma montanha de clichês).

Quem apóia o Leo na empreitada é a turminha de sempre: Paula Micchi, Gabi Barros. Sandra Rosa, Giggio T.M., Edson Giusti. Grandes companheiros.

Houve muitas emoções nessa noite mágica. Assim que encerramos a função. o doutor lberé Bandeira de Mello, meu amigo, advogado que atuou brilhantemente na liberação de "O Abajur Lilás", pediu a palavra e levou a platéia às lágrimas, mas ao dar seu testemunho sobre os tempos difíceis que vivemos na ditadura (embora ache graça de tudo, como bem mostrou o Carlão). No final, ainda me sobrou um duro golpe, pobre de mim. Acabou o espetáculo, meu neto Gui, filho do Leo, correu pra me abraçar:

— Vovô, quando eu crescer também quero ser um maldito, mas não quero ir preso toda hora.

Janela Santista - Plínio Marcos
Transas das sextas-feiras

O moço bom saiu do trampo às seis da tarde. Como toda sexta-feira, fez urna horinha num boteco do centro; contou e escutou cascata, tomou uns uísques, pegou embalo e se picou pra casa da noiva. Pro moço bom, a vida era bela e a sexta-feira, um dia santificado: depois do trabalho, beber com os chapas, noivar até meia-noite e, depois, farrear nas bocas mais encardidas, onde as pistoleiras se badalam até de madrugada.

E viva o loque de sexta-feira, que não tem que trabalhar no sábado! Ele é a alegria do circo.

Na mesma hora, às seis da tarde, lá na Favela do Urubu com Fome — nas imediações da Barra do Catimbó, lugarzinho maldito encravado nas quebradas do mundaréu, bem onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos—, a negritinha Odete Fuleira acordou seu companheiro Leléu, que estava curtindo urna retumbante ressaca, dando estrilo:

— Como é que é? Tu vai deixar a sexta-feira se desperdiçar ou vai sair pro tempo? Vê lá! A vida tá custando os olhos da cara e não é com tu enchendo a caveira de cachaça todo dia que a gente vai adiantar o nosso lado.

Sem chiar, o Leléu escutou o quás-quás-quás, levantou, meteu o revólver na cinta e se mandou pra rua. Ele sabia que a piranha estava certa. Sexta-feira era um bom dia pra vagau escolado armar o pesqueiro.

O bom moço, por volta das oito da noite, encostou o carango na porta da casa da noivinha. Eufórico com os uisquinhos na cuca, estava ansioso pelo programa diferente de todas as sextas-feiras: jantar num restaurante bacana e depois ir ao cinema. Era o máximo, esse babado, pro moço bom e sua noivinha.

Com isso, ele calava a consciência na hora em que, no fim da farra, chegava a conta machucando o bolso, dando remorso e provocando o comentário de sempre da noivinha, lembrando que precisavam juntar dinheiro pra casar. Uma pala que deixava o moço bom ouriçado, pois ele achava que deviam aproveitar a sexta-feira, dia de comer bem, ver um bom filme, passear.

E viva o boêmio das sexta-feiras, o loque. Ele se diverte à toa, sai pra rua fazendo zoeira e gasta muito.

Mas o Leléu não estava a passeio; sexta-feira não é dia de malandro dar moleza. Juntou três vagaus meio pirados da cabeça, gente dura que não tem nada a perder, e deu o serviço:

— Vamos abafar uns trouxas. Afanamos um pé-de-borracha e saímos por aí fazendo desgraça. Quem vier nas minhas águas tem que vir pra não enjeitar quizila. A gronga que pintar na fita a gente topa. Se aparecer cana, é arrebite neles. E melhor ir falar com Deus do que com o delerusca.

A patota concordou. Então, queimaram maconha pra ganhar ferocidade. Nessa maldita fumaça, se picaram de raiva contra a humanidade, As frustrações todas subiram nas idéias. Falta de comida, falta de carinho, falta de tudo deu naquele time de gente sem faróis na vida.

Foi com essa pesada carga de sofrimento de tantos esquinapos que a curriola do Leléu, o Leléu de negritinha Odete Fuleira, saiu para desforrar num otário qualquer. A turma partiu lá da Favela do Urubu com Fome e começou a trilhar, naquela noite de sexta-feira, os estranhos, estreitos e escamosos caminhos do roçado do bom Deus.

Exatamente à meia-noite, o moço bom saiu do cinema com a noivinha. Conferiram no relógio, o sogro do bom moço era todo cheio de moral regulada por horário. Estavam atrasados e não perderam tempo: entraram no automóvel e se arrancaram. Iam chocados com o filme — eram tantos conflitos humanos escancarados que eles se entupiram — e com pressa de chegar; a moça pra evitar a bronca do pai e o rapaz pra se mandar pra gandaia.

Porém (e sempre tem um porém), num cruzamento, o farol fechou. Na sexta-feira, ele jamais cruzava um farol fechado; é noite de bêbado e ninguém deve se fiar nos outros. O moço bom brecou. Aí, o Leléu saiu das encolhas com sua curriola. Cercaram o carango e encostaram as armas na cabeça dos dois, renderam o casal e deram as ordens:

- Abre a porta e nada de truque, senão dança.

O moço bom não era nenhum covarde, mas acreditava nas pessoas e gostava da vida. Se iludiu, certo de que podia ganhar a parada no papo. Sabia pouco sobre os lesados da sociedade. Enquanto os bandidos entravam, foi pedindo estia pra noivinha. Não teve colher de chá; foi levado com noiva e tudo pros confins das quebradas.

Os bandidos maquinaram sua grana, seu relógio. E o pior: esculacharam sua noivinha. Aí, ele quis espernear, mas era tarde. O lugar se prestava pra um salseiro. O Leléu mandou cinco tiros no moço bom. Depois, matou a noivinha de quebra. E se espiantou com a turma no carango.

Era mais uma presepada de sexta-feira.

Janela Santista - Plínio Marcos
Uma barca chamada Esperança

O pivete loiro se meteu num barco que partiu de um ancoradouro que ficava pra lá do loló do mundo. Seu negócio era navegar pelas sete águas. Estava com a cuca fundida pelas milongas de marujos coroas. Só se ligava em papo de Moby Dick, Barba Ruiva, Ilha do Tesouro, Navio Fantasma e outras maresias. Vivia atucanado por não ter nascido no tempo dos piratas.

Então, soltou as amarras. Deixou andar. Cada um tem seus faróis. E temporal sempre se pega pela proa. Tanto faz estar em terra firme ou em mar grosso. Se o marujo não tiver bom lastro, vai pro beleléu. Se lançou nas águas e não quis nem saber a rota.

De mar em mar, de porto em porto, veio atracar em Santos. Desceu em terra a fim de entortar o cabo. Já estava se sentindo marinheiro escolado. Agüentava qualquer balanço. E já tinha se mancado que nas histórias havia muita enganação. A bordo, o batente é duro e chato; não acontece bulhufas.

E o negócio de uma mulher em cada porto não passa de onda; custa caro paca. Nesse assunto, o pivete loiro fez o que pôde. Se entrou pelo cano, nunca estrilou; se fechou em copas e deixou barato. Porém, continuou pegando embalo de saia. Foi pra isso que largou seus ferros no cais do porto na Baixada Santista.

Estava mariscando nos pesqueiros das piranhas quando suas botucas bateram na vitrina da loja do Tatoo Lucky. Se assanhou. Estava diante do cobra da tatuagem. E tatuagem era só o que faltava pra ele ficar manjado, até pelos loques, como pinta do mar. Não deu moleza.

Meteu umas biritas na caveira pra ganhar coragem e se apresentou ao Tatoo. Entre dragões, âncoras, bandeiras e os cambaus, escolheu uma enorme caravela. Mandou desenhar no peito. O Tatoo caprichou, ficou legal às pampas. Botaram na caravela o nome de Esperança.

O pivete loiro — camiseta aberta no peito pra todo mundo ver a Esperança — ficou todo contentão com sua caravela. Começou logo a batizar a bruta. E tome cachaça! Já estava cercando frango quando a Nica Chupeta se flagrou nele. Catimbada em chaveco com o gringo bebum, a Nica Chupeta era pistoleira de oitenta anos de janela, chuqueira de muitas presepadas.

A Nica olhou pro pivete loiro como quem olha um bilhete premiado. Saiu pro trambique e foi logo cuidando do otário. Foi um perereco: uma dureza arrastar o marujo, do bar até um canto escuro; teve uns vinte tombos. Mas a Nica lembrava a bufunfa que ia afanar e carregava a carga, na base do agüenta firme.

Precisando ter uma saudade pra contar a bordo, o pivete loiro se esforçava. Penando, se encostaram atrás de uma galera vazia. Foi outra gronga. A Nica Chupeta fez o que pôde, mas não é mole lidar com bêbado; foi um chove-não-molha que durou um tempão. A Nica Chupeta já estava urna arara. Ia partir pra linha grossa quando o pivete loiro desabou.

A lanceira foi firme no porão do marinheiro... neca de sonante. Nas janelas... neca também. No grilo, no churro... tudo vazio. Em nenhum bolso, nenhum vintém. O pilantra tinha bebido toda a grana! A mulher endoidou. Agarrou o gogó do marujo e sacudiu até ele abrir as botucas. "Tu tá duro, desgraçado, tá duro?", esculachou.

Mas o pivete loiro não entendeu pirulito do plá da Nica. "Esperança!", cochinchou, rindo, abrindo a camisa pra mostrar a caravela. A Nica Chupeta babou de raiva. Puxou da liga um punhal e meteu no peito do gringo até o cabo. Espetou bem no meio da caravela, O melado correu. A Esperança foi a pique.
Janela Santista - Plínio Marcos
Uma festa para a nossa história

O telefone toca. É o Carlito. Também conhecido como dr. Carlos Aluisio de Canelas Godoy, um mestre da jurisprudência. Mas, pra nós, ele é o Carlito do Futebol; o Carlito que começou no Pompéia do Campo Grande, ali no bairro de um dos maiores seresteiros de Santos, o compositor Lúcio Cardim; o Carlito do Jabuca; o Carlito do São Paulo; o Carlito do Sentimento, de Campinas; o Carlito que, atualmente beirando os 70 anos, ainda anda rolando pelo mundo com o time dos veteranos dos juizes de Direito: Itália, Chile, Argentina, França, Estados Unidos, Paraguai e onde pintar uma pelada.

Outro dia, o Bariri (mais conhecido como dr. Péricles de Toledo Piza), que também foi craque (jogou no juvenil do Santos e pendurou as chuteiras agora, aos 65 anos, pra casar), me contou que o Carlito lhe confessou recentemente que daqui uns três ou quatro anos vai se aposentar no fórum e aí, sim, vai se dedicar ao seu grande ideal, o futebol; vai ser treinador, nem que seja num time de terceira divisão de interior, Isso é que é paixão!

E todo mundo sabe disso. Noutro dia encontrei o Estevão (que foi beque do São Paulo, da Portuguesa de Desportos e jogou com a gente no Sentimento de Campinas) e ele me perguntou pelo Carlito. Eu informei que nosso amigo estava bem, era juiz. O Estevão não vacilou, só quis saber em que divisão o Carlito estava apitando. Pois é. Difícil a gente do futebol imaginar o Carlito de capa preta, no foro.

Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é que Carlito ligou às vésperas da virada do ano e foi logo me intimando:

- Olha o dia 31, hein? O Chopebola vai jogar contra os veteranos do Santos.

Argumentei que há 20 anos tem esse jogo, eu sempre compareço.

- Mas esse ano é diferente! O presidente Nelsinho quer fazer uma festa bonita. Vão homenagear você, o Paulinho Jabaquara e o Norberto Cabeça.

Achei legal. Ultimamente deram de me homenagear toda hora.

- Vai ser mais que legal. O Paulinho do Jabaquara, que desde menino trabalhava na sede do Jabuca pra ganhar um troco, e o Norberto Cabeça, uma fera que ajudou a Portuguesa Santista a voltar pra primeira divisão em 67 ao vencerem a Ponte Preta em Campinas, estão do seu lado formando o trio de homenageados, entendeu?

Entendi. E imaginei como seria a festa... O Santos iria com Lalá, grande goleiro do Peixe, e toda a turma: Pepe, o Canhão da Vila; Lima; Jorge Trombada; Manoel Maria; Serginho Chulapa; Gonçalo; Bianchi; Araras; Flavinho... Gente que marcou época no futebol do Brasil e do mundo.

Quando eu disse que ia contar essa história aqui no Jornal da Orla, o Bariri me advertiu: não esquece de falar do Geraldino. Esse não joga mais, mas é uma figura impressionante, um cara de valor. A bem da verdade, sempre foi assim. Tinha uma fibra rara no tempo de jogador. Agora o Geraldino é um leitor de tarô, meu colega nessa sina que Deus nos deu, e só me honra, por fazer isso com lisura e enorme percepção. Deus guarde o Geraldino.

Mas foi uma festa linda. Eu, o Paulinho e o Norberto ficamos numa roda no meio do campo. Em volta, nosso goleiro, o Sérgio (do Santos, do Internacional); Oswaldinho Monforte; Sandro; Celestino; Eduardo; Nelsinho (um presidente mais jogador, não um cartola; ele é que vai fazer o jogo da passagem do século); Serginho (que foi ponta-esquerda da Portuguesa Santista e do Palmeiras); Helinho; De Rosis. O jogo foi ótimo, 1 x 1 no placar.

Pra maior encanto dessa tarde mágica, o Narciso de Andrade, um dos grandes poetas santistas, um dos melhores de todos os tempos, deu o ar de sua graça. Grande amigo, sempre espiando com atenção as coisas da nossa gente.

Obrigado por tudo, meus amigos dessa pelada que há vinte anos acontece entre o Canal 6 e a Escolástica Rosa.
Janela Santista - Plínio Marcos
Uma festa pra Zezinha

Sei lá quem, há muitos anos, me levou a uma festa de poetas. Por essa luz que me ilumina, não podia imaginar que uma festa de poetas pudesse juntar tantos poetas! Gente muito bem vestida, todos dizendo poemas. Pra mim, diziam pouco. Até anunciarem uma moça muito respeitada. Era a Zezinha - a Maria José Aranha de Rezende, me disseram. Ao anunciá-la, o apresentador se referiu a ela como "a encarnação da poesia de Santos, terra de poetas; sobrinha de Vicente de Carvalho, o poeta do mar". Muitos aplausos.

Eu estava ali, meio pasmo com tudo aquilo. A tal Zezinha foi à frente e mandou ver. Foi maravilhoso, ela empolgou mesmo as pessoas. Disse um belo poema, "Rosas, rosas de amor":

Ao contrário dos jardins
Que têm rosas em profissão
Na vida são mais espinhos
Que ferem nossa mão
Não amargures a vida
Lembrando de coisas penosas
A roseira tem espinhos
Mas só colhemos as rosas.
Colhe a rosa que te coube
Perfumada e colorida
E esquecerás os espinhos
Que te feriram na vida.
Não abras muito a janela
Pois o vento pode entrar
E a tua rosa tão bela
Poderá se desfolhar.
Cultiva por isso a rosa
Mesmo entre espinhos nascida
Porque espinhos são muitos
E poucas rosas na vida.

Eu não achei a festa nem feia nem bonita. Achei a dona Zezinha um encanto de poesia. Ela tinha poesia nela mesmo, isso eu senti. Não sabia formular. Me perguntava o que era aquilo, o que era aquela poesia tão diferente das outras que disseram naquela noite. Ao dizer aquela poesia, aquela mulher meio tímida me puxou pra poesia, isso é o que eu percebi na hora.

Depois, bem mais tarde, a poesia chegou perto de mim de novo quando minha irmã Márcia resolveu tomar aulas de declamação com dona Mirta Guarani Rosato, uma mulher muito bonita e generosa que também escrevia poesia e era amiga da minha mãe. Nem eu nem minha irmã encontramos o livro do poeta do mar. Não tivemos acesso, na época, aos versos de Vicente de Carvalho sobre o mar de Santos: "Mar, belo mar selvagem".

Eu estava ansioso por ler o poeta desde aquela festa em que a dona Zezinha declamou, quando citaram o Vicente de Carvalho como o bamba dos poetas santistas. Tão bamba que fizeram uma estátua para homenagear o figurão e a colocaram no jardim da praia - que, a bem da verdade, é o jardim de praia mais bonito que há no mundo.

Botaram a estátua de frente pra rua. Deu enguiço. Um gaiato boquejou:

- Nosso poeta do mar tinha que estar virado pro mar, pro mar que ele amava tanto.

E os ilustres da cidade viraram a estátua pro mar. Mas alguém estrilou:

- Vicente de Carvalho amava Santos, não pode ficar de costas para a cidade.

Armaram a lambança. Vira estátua pra lá, vira pra cá, vira que vira e torna a virar.

Mas deixa isso pra lá. O que quero contar e o que pesa na balança é que agora, em setembro, é festa da nossa Zezinha. Seria bem-vinda uma grande comemoração, para que todos os poetas e cantores pudessem homenagear essa Zezinha, nossa Zezinha. Seria lindo. Quem sabe? O Teatro Municipal está aí pra isso mesmo! Olha ai, secretário de Cultura de Santos...

Janela Santista - Plínio Marcos
Uma história de amor

O negócio do Zé Boto era samba. Ele era vidrado no assunto — e muito bem chegado. Botava banca na cuíca, no pandeiro, no tamborim, no cavaquinho, no violão. Também dizia no pé e era partideiro de muito respeito no partido-alto. Por essas coisas e outras, era muito considerado. Em qualquer gafieira ou roda de batuqueiro em que pintasse, ele fazia e acontecia. Seu ambiente era qualquer lugar. Se juntava com a curriola e era aquela zonzeira. Levantava a poeira sem fazer cerimônia. Nunca saía de um perereco antes do sol raiar.

Daí, já viu: no dia seguinte, não havia saúde para encarar o batente. E era aquele esquinapo. Com a vida custando os olhos da cara como anda, sua parceira pros ventos ruins que tornavam pela proa, a nega Dagmar, tinha que fazer das tripas coração. Lavando roupa pra madame e topando tudo o que aparecesse. Ela garantia a grana mixuruca da feira semanal.

Claro que a Dagmar se invocava com a folga do Zé Boto. Toda vez que ele chegava em casa, a mulher botava a boca no trombone. Mas dava em nada. Ele estrilava — "Sou um artista, tu não se manca?" — e, sem mais nenhuma pala, ia dormir. A Dagrnar é que ficava na pior. Atucanada, esquentava a cachola à toa e ia pro seu trampo toda picada de raiva.

A Dagrnar passava o tempo todo dando duro e tramando o esculacho que iria dar no Zé Boto quando, à tardinha, voltasse pra casa. Mas, qual o quê... Quando ela regressava, encontrava o sambista tirando música no violão. Ao vê-la, o vagau parava e metia uma conversa toda deschavada em cima dela. Diante de tanto dengo, a Dagmar se rendia. Escutava com atenção e esperança as façanhas que o Zé Boto contava. Nessas horas, o malandro lembrava o samba que tinha feito pra ela:

— Dagmar, minha gama preta. Eu juro que sou todo teu. Tu lembra, Nega? Pois é. Ontem à noite, me bateu uma gronga de repente, uma vontade pega de dar contigo naquela hora. E eu, pra me aliviar, puxei em dó de peito o teu samba. Foi de entortar o patuá. Todo mundo se ligou. Quando acabei de dizer, um pinta branquelo que estava na escuta me perguntou se eu já tinha gravado esse samba. Aí eu contei que estava numa sinuca de bico e tal e coisa. Sabe o que ele falou? Falou que ia dar um jeito de meter o samba na bolacha. Tu vê, Dagmar? Numa dessas, eu aconteço. Daí, nós amarra o burro na sombra e eu vou te dar o tratamento que tu merece.

No fim da história, a Dagmar ficava ruim dentro da roupa. Mil mumunhas lhe tiravam o sossego. Ela botava fé no talento do Zé Boto. Mas não acreditava muito em si mesma; por isso se machucava de medos. Um deles ela sempre escancarava:

— Quando tu se aplumar, tu me passa pra trás. Eu sei que é assim. Todo artista dá dessas mancadas.

Naturalmente, o Zé Boto jurava pela luz que o iluminava que com ele não tinha chaveco, que ele era ponta-firme, que reconhecia a força que a Dagmar lhe dava. Confortava a mulher, lhe dava carinho. Apanhava uma graninha e se pinoteava. Sumia nas quebradas atrás do samba. Nunca gravava, mas não tomava conhecimento. Quando a Dagmar perguntava, se abria:

— O pilantroso do branquelo queria parceria pra adiantar seu lado. Saí fora. Eu não vou dar moleza pra atravessador nenhum. Ainda mais do samba que fiz pra ti, Dagmar. Isso é sujeira e eu não entro nessa. Fiz teu samba com o coração. Ele é só meu e teu. Não tem chabu. Não posso gravar sozinho, dane-se! Mas neste samba não entra nome de ninguém.

A Dagmar botava uma porção de argumentos na balança. Explicava que o feijão subia de preço, que o pão, o leite, a roupa do corpo, o aluguel do barraco e tantas coisas estavam cada vez mais difíceis de serem pagas. Mas o Zé Boto não entrava nessa catimba. Se agarrava nas dicas que Mestre Zagaia dá na sua Tabuada das Candongas e jogava pra cima da Dagmar:

— Se agüenta, Nega. Nada corno um dia atrás do outro.

Um dia, a pobre Dagmar cansou de esperar. Descobriu mancha de batom num lenço do Zé Boto e se embandeirou de vez. Chiou às pampas, subiu nas paredes. O Zé Boto se desculpou, pediu, implorou, até chorou. A Dagmar não relaxou a bronca; pegou seus trapinhos e foi embora sem deixar endereço. O Zé Boto ficou aterrado; vasculhou o planeta na captura da mulher, mas só descobriu que ela tinha arranjado emprego na casa de urna grã-fina, onde dormia. Por desgosto, ele abandonou o barracão onde viveu feliz e foi encostar seu corpo em outro mocó.

Se batendo nos caminhos esquisitos, estreitos e escamosos do roçado do bom Deus, o Zé Boto encontrou um atalho que o levou a urna gravadora. Naturalmente, quem envereda por atalho tem que se borrar de algum jeito. O Zé Boto aceitou o jogo: fez sociedade cavernosa com um moço falante e tinhoso que abriu as portas pro sambista em troca de parceria.

E, pra não parecer que não contribuía com nada, o moço fez pequenas modificações nas letras do Zé Boto. Inclusive no samba da Dagmar... O moço trocou o nome pelo de uma menina que ele andava paquerando, a Dilma.

O Zé Boto se trancou em copas; já não tinha compromisso com a Dagmar e deixou andar.

Não deu outra: uma vez, passando a ferro na casa do patrão e ouvindo rádio, ela se tocou num samba que não lhe era estranho. "Dilma, minha gama preta? Eu juro que sou todo teu", ouviu a Dagmar. A mulher se encabreirou. Se entralhou. Não pôde mais consigo mesma. Transbordando de ciúme, pegou o revólver que o patrão tinha e bateu perna atrás do Zé Boto.

Quando a Dagmar encontrou o Zé Boto, não regateou, nem nada. Meteu três balas no peito do sambista. Depois. caiu em prantos. Por fim, meteu um arrebite na própria orelha.

Janela Santista - Plínio Marcos
Uma história de subúrbio

O Juca foi dar uma bandola num parque de diversões e suas botucas, de repente, bateram nas botucas da Rita. Ele dedicou a ela, através do alto-falante do parque. De coração, com afeto e prova de amizade, "Boneca Cobiçada". Mesmo sem o anúncio de nomes, Rita sabia que o bolerão vinha dele para ela e revidou com "Carmelito", um tango em homenagem ao admirador anônimo.

Nenhum dos dois se abriu de saída. Manjavam as regras do jogo: gama de subúrbio, para ser boa, tem que ser complicada. Sabe como é, o povão sofre influência de novela mexicana... Juca e Rita não eram exceção à regra. Antes de se encararem, fizeram uns mil capítulos.

Até que o Juca pegou embalo e atracou na moça. Ela ia se mandando do parquinho e ele ficou no meio do caminho, na encolha, como quem não quer nada, com a intenção de dar uma pala. Bem baixinho, que se a moça não estivesse a fim de papo, era só fingir que não tinha escutado e pronto.

— Oi, preciso te falar — chiou o Juca num alô enrustido.

— Comigo?! — a Rita fez sua parte com perfeição.

A conversa logo engrenou. Os dois saíram andando rumo ao portão da casa da moça e o entendimento foi tão perfeito que, na hora de ir embora, o Juca pôde sapecar urna frase que escutou numa novela:

— Pombas! Primeira vez que a gente bate uma caixa e parece que eu te conheço há um cacetão de tempo - frase manjada, mas que sempre gruda.

— Vai ver nascemos um para o outro — retrucou a Rita em cima, com inflexão de ingênua de filme de cowboy.

Daí pra frente, os dois se abilolaram. Se vidraram um pelo outro. Troço bonito era o amor daqueles dois. Tão limpo, tão cheio de esperança! Bacana mesmo. E talvez tenha sido por isso que entralhou tudo. De gamado, o Juca passou a anunciar por toda parte as virtudes da Ritinha.

Da sua Ritinha, namorada ponta-firme e futura mulher-de-fé. Fazia quás-quás-quás em qualquer lugar pra falar dos predicados da Ritinha...

O alvo predileto do Juca pra cantar a beleza do seu amor era as orelhas do Oscar, amigo do peito e parceiro de quarto. O Oscar era um tímido solitário, que escutava as histórias do Juca com atenção, sonhando em arrumar uma Ritinha pra si próprio. Mas, que nada: além de tímido, sem graça, o Oscar não era de dar sorte com mulher.

Pra piorar, toda vez que apanhava uma piranha qualquer, o Oscar botava a comparar as virtudes dela com as da Ritinha. Com as maravilhas da Ritinha, que conhecia na versão do Juca apaixonado e que levava ao pé da letra, tintim por tintim. Com essa catimba pra atrapalhar, não encontrava nada que lhe servisse.

Resultado: o Oscar acabou ficando gamado na namorada do amigo. A gamação do Oscar surgiu por tabela, sem que ele percebesse. Veio em forma de marola, que ele rebateu, com vergonha de reconhecer, depois, virou onda dentro da sua cuca; por fim, acabou se tornando uma pororoca que inundou todas as barreiras. E a gronga encarnou.

Sem desconfiar de nada, o Juca apresentou a Ritinha pro Oscar e os três foram ao cinema juntos. No fim da noite, mais por educação, e pra não desfeitar o amigo do namorado, a Ritinha deu uma abertura pro Oscar:

— Venha sempre que quiser.

Cada vez que o Juca falava da Ritinha, o Oscar se roía de ciúmes. Se trancava, mas tinha se tomado agressivo e mal humorado; ele, que sempre fora um pinta manso. Claro que o Juca percebia a mudança no trato com o amigo, mas o Juca apaixonado andava em paz com Deus; disposto a compreender qualquer um. Pro amigo, dava desconto de monte; atribuía suas ranhetices à vida solitária que levava.

Por pena, o Juca acabou convidando o Oscar pra passear com ele e com a Ritinha. Convite aceito na hora. O Oscar se segurou na palavra e o Juca nunca mais teve folga: dali pra frente, só namorou com o Oscar segurando vela. Uma coisa chata pros três, mas o Oscar fingia não notar. O Juca, trambicado, se acanhava de dar o passa-fora no amigo. A Ritinha, de sua parte, tolerava a sinuca por acreditar que não pegava bem esculachar um amigo do namorado; acreditava mesmo que aquela bobeira era algum truque do Juca para testá-la.

Assim sendo, comeram um bocado grande de capim pela raiz, até que, farto, o Juca deu uma dura no Oscar.

Olha, meu, vê se tu larga do meu pé. Tu é positivo, mas eu gosto de ficar sozinho com a Ritinha. Se tu quer aparecer, aparece; mas não todo dia.

Como resposta, o Oscar sacou de uma arma e, pra espanto do Juca, escancarou seu íntimo.

— Já que tu puxou o assunto, hoje vamos decidir quem vai ficar com a Ritinha: ou tu, ou eu.

Afobado diante da arma, o Juca quis contornar a desgraça que se desenhou.

— Que brincadeira besta é essa, Oscar?

Só que não era brincadeira e o Oscar mostrou logo isso. Deu no gatilho e meteu um arrebite na testa do Juca. Ele já desabou estarrado; foi direto falar com Deus. Vendo o estrago que fez, o Oscar apavorou e deu pinote. Por inveja, fizera a desgraça dos três. Não ganhou a Ritinha, nem nada.

Janela Santista - Plínio Marcos
Valentes de Santos

Santos sempre teve muito valente. Da Ponta da Praia ao Marapé, sempre teve gente que arrepiava. Principalmente no golfo, zona do cais do porto. Ali sempre teve gente de briga nas mãos e nas armas. Adegas, Maneco Lalau, Frederico Cabeleira, Ilhéu Peixeiro, Antoninho Navalhada, Cabo Verde, Grego, Onça, Seu Miranda... Toda essa gente teve nome.

Porém (e sempre tem um porém), quem virou lenda foi o Nego Orlando. Enorme, forte, o crioulo não fazia careta pra cego e vivia fazendo e acontecendo. Tem casos de assombrar por conta do Nego Orlando. Presepadas que até Deus duvida aconteceram; muita gente jura que viu essas façanhas.

Uma delas se deu num campo de várzea lá no Macuco. Que campo? Floresta, Paulistano, Sorocabana, Guarani, Flor do Norte, Afonso Pena... sei lá. Naquele tempo (tempo bom!) havia um campo em cada pedaço. Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é o que sempre escutei nos bochichos da curriolas, desde onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos até na beira das praias.

Estavam dois timões de respeito jogando uma partida muito dura, a valer taça. O jogo estava zero a zero. Um dos times era do Nego Orlando, naturalmente um time que não fazia graça pra ninguém e só costumava se apresentar disposto a garantir resultado no tapa, se não desse na bola. Era assim mesmo, que eu sei que era. O time do Nego Orlando não era o único nessa base, havia muitos do mesmo naipe.

Nesse dia, segundo se conta pelas quebradas, o jogo estava equilibrado. Iam levando na boa, quando um burro chucrão (um burro mesmo, não é força de expressão, não) entrou no campo e parou numa das áreas. Tremenda confusão, todos tentando tirar o animal; era paulada, pontapé, puxada de rabo, tudo. Mas, qual o quê? O burrão chucro não arredava do lugar. Aí alguém apelou pro Nego Orlando.

— Tiro o burro do campo, mas com uma condição — o crioulo não era mole. Foi logo decretando: — Se eu tirar o burro, meu time bate um pênalti; se marcar gol, a taça é nossa.

A curriola riu muito. Depois, todo mundo viu que não ia ter jeito; acabaram topando.

O Nego Orlando se aproximou do animal. Respirou fundo e deu um tremendo soco no pescoço do burro. Uma pancada só, um golpe seco. O bicho nem gemeu. Caiu morto. Então, com cara de quem não estava brincando, ordenou:

— Trato é trato. E pênalti pra nós.

Mesmo sem jeito, o time adversário não tinha como chiar. O craque escalado pelo Nego Orlando pegou a bola, botou na marca de cal e deu um bico. 1 X 0. Com esse resultado, acabou o jogo: vitória indiscutível do time do Nego Orlando. Foi um festão. Encheram a taça de cachaça e beberam tudo com alegria.

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