Resignado Ansim que dobrei o morro e caí
naquela meia chapada (o sol já 'tava esmorecendo, a sombra vinha escorregando p'ro morro abaixo), topei c'uma coisa à toa, uma coisa de nada, mas
porém que me fez o coiração dar um balanço forte.
Ora o que não havéra de ser? Um passarinho, o pobre dum tico-rei, que parava em riba duma
folha-larga e cantava suzinho a sua cantoria meia chiada e muito triste. Reparei em roda de mim umas duzentas braças, não vi ninguém, ninguém: acho
eu que, afóra eu e aquela avinha, faz muito tempo que não hai quem tenha corage de se aventurar p'ra aqueles ermos.
Sentei numa pedra escura, que tinha um limo esverdeado e feio, e peguei a maginar neste mundo de
barafunda que tem sido a minha vida, de certos meses p'ra cá: alegria não me chegou nem uma, tristeza não me tem faltado, trabalho tenho tido em
demasia… e arriba de tudo, p'ra me deixar nas toeiras duma vez, a lembrança daquela tirana é que não me larga um instante.
O tico-rei a mó que troceu a língua, ou não sei o que: ficou mudo de repente virou a cabeça p'ra
baixo, quaji que rodou da folha, e arripiou a crista cor de sangue vivo, como quem garrou a pensar amargurado e não tem ânimo de tirar mais o
sentido daquele pensamento de tanta malinconia.
"Uiai! Tico-rei (foi o que me veiu na mente, aí nessa hora), pois você também 'tá vendido desse
feitio? Você também tem seu rabicho? Você também 'tá só e desamparado? Não seje bobo: si uma não quis ouvir a sua
[… (N. E.: linha ilegível no original]
sobejar algum p'ra você, como p'ra tudo o resto dos que vivé! Espalhados p'resses centros de chão! Arvore o voo, enquanto a noite não fecha, campeie
o seu fado, que o seu fado com certeza não é ficar aqui pinchado nessa folha, suzinho e Deus, ver eu que só tenho por mim a minhá sombra, e isso
mesmo mal e mal!"
Passou uma arage, não houve ramo que não bulisse. A folha-larga tremeu de alto a baixo, e a coitada
da avinha sumiu entre meio dos galhos, quando os galhos se ajuntaram; despois levantou a cabeça, empapuçou o pescoço e cantou outra vez uma
temporada; a arage foi-se embora, a noite veiu chegando; e umas par' de estrelas já 'tava mexe-mexendo no fundo craro do céu.
Estudei aquela avinha, enquanto o dia foi dia; vi bem que não saiu da folha ond' teve cantando; achei que a parage era soturna de mais, não tinha
uma risada de fonte que se esborrifa, nem a boniteza de uma flor que cheira no entrançado da cipoama; tirei de mim p'ra mim que o passarinho inda
era mais desinfeliz do que eu.
Quem eu queria não me quis mais, isso é verdade, andou-me armando a ingratidão mais negra que eu tenho visto; não piso num palmo de terra meu,
isso é verdade; não encontro na minha estrada uma cara que sirra p'ra mim com amizade verdadeira, isso é verdade: mas porém quando eu quero, enrólo
os meus tilangues, vou fazer o meu empreito lá da outra banda do rio, lá da outra banda do morro, afundo no mato velho, derreto no sertão, fico
morto p'ra quem fica e vivo só pr'a mim mesmo.
Agóra a noite já tapou de tudo, a única luzinha que me alumeia é a craridade das estrelas e um pouco do branco do crescente; não me chegou
alegria nem uma, não me falta tristeza, 'tou como dante' ou quaji: mas ao menos vou rompendo, vou seguindo, levo o meu coiração amargurado p'ra
lavar noutros ares, e póde bem que os outros ares um dia me lave' dereito o meu coiração…
E o pobre do tico-rei? Ficou trancado porque quis e foi seu gosto, naquela folha, naquela arve sem graça, naquela chapada temerosa. Tem muita dor
e não abre; desesperou e não foge; 'tá morre-não-morre e não percura a vida. Si é certo que eu carrego comigo a minha malinconia, ela vai arejando e
mudando de figura, p'ro sol e p'ra chuva, p'ro vento e p'ras tempestades; talvez inda vire nalguma coisa bem deferente, de menos tristura e de mais
consolo, alguma coisa ansim como uma sodade bem antiga, de bem longe, de muito bem.
Eu antão hei de sentir alivio de coiração, sossego de alma, felicidade… Felicidade, póde ser que não, mas contanto que o sossego e o alívio eu
hei de ter, tão certo como sem dúvida: e um filho de Deus, que já viu o inferno de perto, como eu ando vendo, inda é tão ambicioneiro que queira
mais? O mais é átoa, não vale muito p'ra quem já não espera nada e sabe que esperar por alguma coisa é ter o desengano como fim de tudo…
Valdomiro Silveira.
Das Leréias, livro do dialeto.
Imagens: reprodução parcial da página com o
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