CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA -
Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (5-A)
Em uma segunda-feira, 23 de
outubro de 1905, o jornal paulistano O Estado de São Paulo publicou, em sua primeira página, este texto de Valdomiro Silveira (Acervo
Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):
Crônica Como
se não nos fossem suficientes as mazelas e tristezas de aquém dos nossos limites territoriais, compungiu-nos por demais o atentado de que foi vítima
o sr. José Marcellino, governador da Bahia. Quando apareceram os primeiros telegramas anunciadores do caso, coalharam-se de curiosos as redações dos
jornais e foi-se alastrando pelas ruas, até tarde da noite, um rumor abafado de comentários e conjeturas.
O caso tinha, de feito, seu lado romanesco: vir sendo acompanhado o
governador, desde Nazareth, por um indivíduo feito na ideia de matá-lo, indivíduo a que, nas primeiras e já clamorosas notícias, a imprensa chamava
sugestivamente jagunço; saltar para terra, entre as aclamações oficiais; receber abraços de amigos e aderentes, e, no meio de tantas e tamanhas
efusões, dois tiros de garrucha: são coisas, realmente, de comover e assustar.
A princípio, correu que o jagunço assassino, um tal Circumcisão, de
trinta e cinco anos, caboclo e reforçado, declarara na polícia não ter podido forrar-se à lenta fascinação de matar o maior magistrado de sua terra,
porque ainda estavam impunes, e já fazia anos, os homicídios de parentes muito achegados ao seu coração. E não obstante aquele boato, digamos atoada,
andou pelos espíritos uma grande fúria contra o matuto delinquente, por se ter afrontado a um homem de vulto, num tal momento e com tão demorada
premeditação.
Somos dos que, de coração, reprovam o atentado: o sr. José
Marcellino foi sempre sem dúvida um funcionário calmo e honesto, tanto que tem merecido o apoio franco de alguém que só costuma apoiar em condições
de íntegra justiça, o sr. Ruy Barbosa. Mas havemos, por isso, de tomar quatro pedras e atirá-las ao jagunço?
Se eram verdadeiras as primeiras revelações dos jornais, Circumcisão matou porque lhe haviam matado
os seus, a sangue frio e sem que a justiça desse de si. Podem imaginar alguma impressão mais dolorosa que a daquele que vê trucidarem-se-lhe os
consanguíneos sem a mínima reparação social: Por mal de nossos pecados, são os governadores nada menos que os chefes e os mandantes das mais
numerosas bandorias políticas da nação: mandam tudo, fazem, portanto, tudo. E querem que o vaqueiro sem letras nem luzes, que vê em toda a parte a
onipotência dos governadores, não venha a culpá-los pessoalmente do mal sem remédio que o acabrunha?
A retórica sentimentalista das gazetas costuma, em hipótese como
esta, gritar afanosamente contra a larga premeditação do crime. Mas coloquem-se na posição do criminoso, um retardatário na civilização, e vejam se
o único sentimento que ele poderia ter não seria o da vingança, por atrasado como ele. E querem que a vingança se cumpra a súbitas, de repelão em
repelão? Há exagero de sabedoria legislativa, neste cair com raiva sobre a premeditação: perdida a esperança de reparação, para a dor afetiva e
moral que o caipira sofreu, só lhe resta um recurso, e tão sagrado como uma obra de justiça constituída - a vingança: e a vingança, para ser mais
justa, deve ser mais meditada e, assim, muito mais premeditada.
Mas parece que as primeiras revelações dos jornais pecaram por
falsas. O sr. José Marcellino foi vítima de uma vasta conspiração política. Circumcisão, cuidadosa e proficientemente interrogado (são advérbios
canonizados nos telegramas), confessou que agira de acordo com certos manda-chuvas do sertão, recebendo ordens e conselhos dos mesmos, por via de um
seu irmão. A polícia, cuidadosa e proficiente, arma carros especiais e freta comboios, destaca agentes para um e outro ponto, põe a mão no sr. Luiz
Vianna, procura mais a este e mais àquele...
O zelo da polícia em descobrir e prender criminosos é sempre
louvável. Pena é que, na maioria dos casos, pouco assista às vítimas humildes e toda se canse e exaura pelos poderosos. Ficam os fracos sabedores de
que não têm muito que esperar das diligências em que interessem: e não é de cuidar que os mesmos fracos, apavorados diante de um cenário tão
grandioso, venham a vir ao encontro da polícia, dizendo o que ela quer que se lhe diga, acusando a Sancho e a Martinho, fazendo as mais tremendas
confissões?
Sirva-nos de exemplo o que vai lá por fora. Afaça-se a justiça, e
com ela a polícia, a não achar mais graves os delitos dirigidos contra os fortes do dia, e a não pesar demasiadamente sobre os desprotegidos ou
sobre os alucinados de qualquer maneira. A verdade dos inquéritos é quase sempre bela como o brilhante, mas pode ser, muitas vezes, luminosa e falsa
como um reles pingo d'água...
Valdomiro Silveira.
Imagens: reprodução parcial da página com o
texto |
Em uma segunda-feira, 18 de junho de
1906, o mesmo O Estado de São Paulo publicou, em sua primeira página, este texto de Valdomiro Silveira (Acervo
Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):
Crônica Andaram
cheios os jornais, aqui, há dias, de reclamações muito veementes contra a polícia, algumas autoridades e a direção política de certo lugar.
Narravam-se casos espantosos ali ocorridos, e em que tais pessoas figuravam nada menos que de algozes de má morte, afeitas à prática de malversações
e de crimes vários. Os queixosos, porém, são dignos e quietíssimos cordeiros, que a fúria daquelas feras aterrorizou desabaladamente.
Não sei, com franqueza, quais são agora os perseguidores, quais os perseguidos. Não conheço a uns e
a outros. É de crer que os telegramas tenham sido verdades puras, e que as mencionadas pessoas sejam uns acabados sacripantes. Mas pode ser, também,
que ditas pessoas não sejam, como o diabo, tão feias como as pintam. Pode ser que, de lado a lado, houvesse maus atos, perversidades, judiações,
miudezas que, às vezes, doem mais que os feitos mais cruéis. E a gente, vendo as acusações tão convictas, e as explicações tão altanadas, fica sem
saber para onde se volte, indecisa e carregada de dúvidas.
O que se vê logo, bem às claras, é que tudo provém da política de campanário - a única que
conhecemos, ora bendito e louvado seja Deus! os que se estão agitando agora num grande medo bradante são mais ou menos filiados ao mesmo partido que
os outros. Apenas os separa o reconhecimento da comissão central, a que ambos os grupos se dedicam de corpo e alma, prestando-lhe homenagens de
filhinhos de nervos facilmente vibráteis, que precisam de amparo e proteção...
Os que neste momento se assustam e clamam, não sei se estão com a razão de seu lado. Chegam-me as
suas vozes de muito longe, talvez um pouco alteradas no caminho. O eco, às vezes, encarece o valor dos sons desmesuradamente: não será de admirar
que elas se tenham espraiado por demais, e pareçam partir de muitas bandas, quando saíram de um só ponto, e se dividissem pelos quatro ventos.
Não há quem ignore, entretanto, como se fazem as eleições por aí fora. O que está no poder - frase
característica e de uma grande valia sintética - apodera-se dos livros de atas como de coisa muito sua, monta guarda aos edifícios públicos, que é
onde, em regra, se reúne o eleitorado para o voto, e chega a anunciar, com regular antecedência, que a oposição não votará. A oposição, que tem,
afinal e quase sempre, vontade de parecer mais forte e mais poderosa, aproximando-se de tais edifícios, faz menção de querer praticar o direito de
voto, mas, aos primeiros arreganhos de meia dúzia de soldados, recua por prudência, afasta-se, não volta às urnas.
Por mal de nossos pecados, só se vê disto por aqui. Nos mais luminosos países, onde as oposições se
mostram até violentas e perturbadoras, não são estupidamente sufocadas, como entre nós, pelos arranjadores de vida que empolgaram a administração e
não podem mais deixá-la, sob pena de penúria. Um dia, quando tiver passado de vez esta geração meio inibida de espírito e de atos, que somos nós,
dirão, os que nos lerem e nos estudarem, que fomos guiados ou vencidos por idiotas maiores da marca.
Idiotas que ao mesmo tempo eram convulsionários, valha a verdade. Estes magnatas da política do
dia, para quem a vitória nas urnas é questão de vida ou de morte, e que as cercam, por isso, de todas as seguranças, dão tristíssima cópia de si,
com pretenderem triunfar a ferro e fogo. E ainda assim o ferro e o fogo ministram-nos, por via de regra, as pobres praças do destacamento local,
ajudadas por um reforço de ocasião.
Mas não se queixe ninguém. Ou a queixa é justa e não será atendida, não obstante as suas carradas
de razão; ou não o é, e então o melhor é calarem-se para sempre os amedrontados. Se é justa, não há muito que esperar senão dos próprios ofendidos,
que deverão opor força a força. Defendam os seus direitos eleitorais, com a mesma robustez com que se fazem respeitar os outros, e a ridícula
comédia das eleições policiais, quando tiver algumas cenas trágicas, irá caindo em desuso. A justiça, que tem sido às vezes tardia, em se tratando
de assuntos que tais, surgirá afinal.
Assim se acabará com a fresca liberdade que já se conhecia perante certa mesa eleitoral do tempo da
monarquia:
- Pode votar em quem quiser, contanto que
vote no governo...
Valdomiro Silveira.
Imagem: reprodução parcial da página com o texto |
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