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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (3)

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Em 1941, o jornal paulistano O Estado de São Paulo publicou, em quatro partes (dia 27 de agosto, página 4; dia 31 de agosto, página 4; dia 3 de setembro, página 4; e dia 7 de setembro, página 4; o texto da conferência de Spencer Vampré sobre o então recém-falecido Valdomiro Silveira (Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da página com a primeira parte da série

Valdomiro Silveira

(Conferência dita pelo prof. Spencer Vampré na homenagem prestada pela Academia Paulista de Letras à memória de Valdomiro Silveira).

I

No Vale do Paraíba, à margem do imenso Nilo paulista, que o labor de nossa gente redescobrirá outra vez, e em cujo seio dormem riquezas agrícolas capazes de assombrar o mundo, em Embaú, comarca de Cachoeira, aos 11 de novembro de 1873, nasceu Valdomiro Silveira, fadado pelo destino a ser um dos fundadores de nossa companhia e a cintilar, com peregrino brilho, nas letras de nossa Pátria.

Filho do dr. João Batista da Silveira e de sua virtuosa consorte d. Cristina Silveira, bebeu no berço, com seus irmãos e irmãs, o gosto das boas letras, e essa fidalguia de trato e suavidade de maneiras que, pela vida em fora, o fizeram querido, respeitado e amado.

Esta Faculdade de Direito, a cuja hospitalidade devemos realizar-se hoje aqui esta cerimônia votiva, se rejubila de contar entre os seus discípulos ilustres membros da família Silveira: João Batista, pai de Valdomiro; Alarico e Breno, seus irmãos, sendo destes o primeiro ainda felizmente vivo, depois de notabilizar-se em altos cargos administrativos e políticos, e aquele falecido prematuramente durante o curso acadêmico – fogoso tribuno e inspirado poeta, de quem guardo as mais ternas reminiscências estudantinas.

Agenor Silveira, também diplomado por esta Faculdade, e cuja atividade comercial não subtraiu à frequência literária o seu belo, luminoso e invejável espírito, e João Silveira Junior, indefesso e prestante jornalista que a morte levou, completam, com Nestor, Joana e Herminia, o quadro dos irmãos de Valdomiro. Sente-se em todos eles a influência familiar da cultura, do amor aos livros, da paixão literária, do sentimento estético, que tão notáveis se mostraram em nosso companheiro.

Não admira assim que entre os descendentes de Valdomiro repontem revelações literárias, umas apenas entreluzidas no recato do lar, outras já divulgadas pela imprensa.

Permitam-me destacar os filhos Evandro, Meroveu, Valdo e Miroel, e, dentre as filhas, d. Junia, casada com o dr. Amilcar Mendes Gonçalves.

A esta e a seu marido, e ainda a Agenor Silveira, quero agradecer publicamente as notas com que possibilitaram este modesto estudo; mas, a d. Junia, especialmente, que sempre foi incansável guardadora dos escritos de Valdomiro.

Estamos certos de que sem o seu zelo incansável, de tudo reunir e entesourar, com escrupuloso cuidado, muito se teria perdido do acervo imenso de nosso querido morto.

Mas, volvamos ao fio de narrativa. Disse há pouco que de seu pai, o dr. João Batista da Silveira, herdara Valdomiro o gosto pelas letras, e, na verdade, ninguém esquecerá, nas tradições de São Paulo, a figura cheia de vivacidade e de talento do seu progenitor, que, aqui nesta Faculdade de Direito, se iniciou no curso jurídico em 1876, numa turma brilhante, a que pertenceram entre outros Leopoldo de Bulhões, Cardoso de Melo Junior, Galeão Carvalhal, Toledo Malta, Ezequiel Freire, Carlos Vilalva, Filadelfo de Castro, Campos Pereira e Afonso Celso Junior.

Poetava então João Silveira, e às nossas Memorias para a Historia da Academia de São Paulo lhe transcrevem três sonetos, e ainda uma sátira ao dec. De 19 de abril de 1879, que declarou livre o ensino superior em toda a República, conhecido sob o nome de "Decreto Leoncio de Carvalho". Distinguindo-se nos meios acadêmicos como jornalista e orador, publicou ainda versos nas coletâneas Nuvens Multicores; Vanguerve, poema herói-cômico em cinco cantos e estrofes camonianas, e a União e o Barão, sátira política. Sabia gramática e manejava o idioma com elegância e com destreza.

Não admira, pois, que Valdomiro despertasse bem cedo para a vida literária.

Feitos os preparatórios, ei-lo matriculado no primeiro ano acadêmico em 1891, na turma de que fizeram parte, entre outros, Afonso de Camargo, Alfredo de Rezende, João Dente, Fausto Ferraz, Campos Toledo, Teodomiro Uchoa, Luiz de Campos Maia, Gabriel Ribeiro dos Santos, Samuel Viotti, Aristides Sales, Leal Costa, Fausto Passalaqua, Alvaro Guimarães, Adolfo Araujo, Celso Garcia, Alfredo Valadão.

Esta Faculdade de Direito atravessa então uma fase de profunda agitação. Sobreviera a República, e com ela a Reforma Benjamin Constant. Alguns lentes se afastam, ou são afastados, entre eles Justino de Andrade, num incidente que se tornou memorável. Outros entram, destinados a ilustrar as cátedras e a se perpetuarem na memória das gerações republicanas: Herculano de Freitas, Amancio de Carvalho, Pinto Ferraz, Oliveira Escorel, Manuel Pedro Vilaboim e outros ainda. Pedro Lessa e João Mendes Junior já pertenciam à congregação.

Há em torno de Valdomiro uma mocidade cheia de entusiasmo republicano, sendo poucos os que se aferram à reação monárquica. Estão no segundo ano Alcantara Machado, o nosso querido e inesquecível presidente, Camargo Aranha, Julio Cesar de Faria, Antonio de Godoi, José Maria Lisboa Junior, Paulo de Lacerda e outros de igual nomeada. Estão no terceiro ano, entre muitos, Mario Pederneiras, José Severiano de Rezende, Washington Luís; no quarto ano: Candido Mota, Gabriel de Resente,  Reinaldo Porchat, Carvalho Mourão, Afonso de Carvalho, Astolfo Rezende, Itapura de Miranda, Pedro Moacir, Milciades Sá Freire, Marinho de Andrade; no quinto ano: José Mendes, Olegario de Almeida, Leopoldo de Freitas, Abelardo de Cerqueira Cesar, Estevão de Magalhães Pinto.

Esta mocidade se agita em comícios, em discussões pelos cafés, em artigos vibrantes pela imprensa periódica ou acadêmica.

A Luta é dirigida por Osorio Duque Estrada, e nela colaboram Mario Pederneiras, Mario de Alencar e Pardal Mallet. A Fanfarra tem como redator-chefe Marinho de Andrade, o inspirado poeta que celebrou Felicidade Perpetua de Macedo, a quem São Paulo todo venera. Há ainda a Metralha, a Folha Acadêmica, fundada por Afonso José de Carvalho, Edmundo Lins, Carvalho Mourão e outros; há finalmente a A Opinião, redigida por Jaime Pinto Serra, Ermelindo de Leão e pelo nosso Valdomiro Silveira, que já então se bate ardorosamente pela República.

A turma de Valdomiro recebe, em 1892, como primeiro-anistas: Ezequiel Ramos Junior e Freitas Guimarães, membros fundadores da nossa Academia de Letras, e Altino Arantes, o eminente presidente que ora nos dirige os destinos. Em 1893, sobrevém Ataliba Leonel, Lehfeld, Galdino Siqueira, Eloi Chaves, Mario Tavares, Luciano Esteves Junior; em 1894, Dario Ribeiro, Prudente de Morais Filho, Raul Cardoso de Melo, José Maria Whitaker, Mauricio Levy, Angelo Mendes, João Sampaio; e finalmente, em 1895, Luiz Pinto Serva, Joaquim Marra, José de Vasconcelos de Almeida Prado, Heitor Penteado, e outros e outros.

Aqui está, não uma enumeração, mas uma pálida ideia do que era a Faculdade de Direito daquela época, representada nesses talentos primaveris que frutificaram, já na ciência do Direito, já na advocacia, na administração pública, no jornalismo, na judicatura e nas letras floridas.

É o tempo em que São Paulo esboça os primeiros passos para se transformar na metrópole industrial do Brasil. A cidade é pequenina. No centro comercial, moram muitas das mais antigas famílias. As outras vão pouco a pouco se instalando na Rua da Liberdade, ou em torno da Praça da República, ou em Santa Ifigênia. As ruas continuam estreitas. Não se rasgaram ainda a Libero Badaró, nem a Avenida São João. As praças se apresentam pequeníssimas; trafegam os bondes no triângulo, e não há o atropelo nem a multidão de agora.


Imagem: reprodução parcial da página com a segunda parte da série

II

Durante o período acadêmico, no quinquênio que vai de 1891 a 1895, na velha São Paulo provinciana e pacata, vive Valdomiro uma vida de recato e de estudo. Se o querem para uma conversação literária, no Café Londres, onde se não fale mal de ninguém, ou se não escrevam sátiras, ou se não inventem gracejos pesados, ele ri docemente, com os olhos cheios de bondade e a boca sempre inclinada a dizer bem.

Foi por esse tempo, conta-nos João Luso, numa deliciosa crônica, que Benjamin Mota, recém-chegado de Paris, "com as malas e o cérebro repletos de coisas de Montmartre", poemas decadistas, panfletos libertários e canções de Bruant, fundou na Paulicéia de setenta mil habitantes o cabaré do "Sapo Morto". Mota, de blusa azul, botas altas, chapelão arremessado à frente, lenço vermelho ao pescoço, entoava os números então famosos, em que se ouviam mineiros no fundo negro das galerias, rufiões esparcerados, meretrizes no hospital, soldados da Legião Estrangeira sucumbindo ao calor e às febres da África".

A assistência debicava os estribilhos; atiravam-se remoques aos que entravam ou se encontravam menos expansivos; improvisavam-se epigramas e chistes, ou simplesmente se trauteavam coplas populares.

Não havia nesse cabaré nada que pudesse afrontar o pudor a um estudante ou a um celibatário. Pois bem, João Luso, por mais que instasse,não conseguiu que o nosso Valdomiro fosse com ele ao "Sapo Morto".

É que, comenta João Luso, Valdomiro trouxera para a pequenina São Paulo de então uma nota de austeridade prematura, que no entanto não era agressiva, mas natural e, por assim dizer, tímida. Não chegava sequer a penetrar numa cervejaria, onde a estudantada do tempo matava as horas de folga.

A tudo preferia os seus livros diletos; e "a nobre língua portuguesa" (como costumava dizer) tinha nele o mais devotado leitor.

Datam daí as incursões pelos clássicos, que foi alargando pela vida em fora. Camões, frei Luiz de Souza, Vieira, d. Francisco Manuel de Melo, Rebelo da Silva, Bernardes, Garret, Herculano, Camilo, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão foram, desde essa época e até o momento extremo, os escritores portugueses do seu maior culto. Dentre os brasileiros, Coelho Neto, Rui Barbosa, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho, Amadeu Amaral, Martins Fontes, Martim Francisco, para só citar os mortos.

Dentre os estrangeiros – Victor Hugo, Catulle Mendés, Theodore de Banville, Anatole France, Musset, Gauthier, Colette, Zola, Campoamor, Dante, Petrarca, Leopardi, D'Annunzio, Goethe, Tolstoi, Dostoiewski, Gorki, Tourgueniev…  que sei eu? – os mais diversos gêneros, mas, em todos, o esplendor da forma ou a fecundidade da imaginação criadora.

Mas,há um traço no escrever de Valdomiro que merece registro especial: é a sua doçura, a suave expressão de seu ceticismo,não arrependido nem zangado com a realidade, mas disposto a perdoar e a sofrer com o sorriso nos lábios.

Mas, não nos antecipemos. Retomemos o fio de sua biografia.

Apenas formado, vai exercer a promotoria pública em Santa Cruz do Rio Pardo, de 1895 a 1897. A sua família se mudara, desde 1881, para Casa Branca, e numa e noutra cidade residiu, datando de então os seus primeiros contos sertanejos. Ele mesmo, em entrevista a Silveira Peixoto, que está publicada em livro, assim nos conta este tópico de sua vida:

"Meu primeiro conto foi publicado quando eu residia em Santa Cruz do Rio Pardo. Mandei-o, em sobrescrito simples, sem carta ou cartão algum, a O Paiz, grande jornal carioca. Dias depois, com admiração (e pouco falta para que eu diga: com espanto), o Maneco Luiz, agente do Correio, abriu-me diante dos olhos um número daquele diário, perguntando:

"- 'O senhor está fazendo correspondência p'ra este jornal?'"

"O conto, nada menos que o de um caso ocorrido no sertão, aparecera em coluna de honra. Fiquei alegre e encantado por dentro.

"Promotor público da comarca, mantive sempre duas resoluções: a de não entrar na política local, pendesse ela para aqui ou para ali; não falar sobre literatura, senão a alheia, e principalmente a que tomasse a forma de romanção ou folhetim.

"Guardei tão bem este último preceito que, tendo chegado Raimundo Correia certa vez à minha comarca, em visita a seus cunhados Francisco e Baltazar Sodré, fui-lhe apresentado como promotor público, a só por só. Não sabia ninguém que eu assinava coisas nas folhas"…

Foi assim em Santa Cruz do Rio Pardo, e em Casa Branca, que começou a anotar os modismos e as expressões da gente do interior, observando com agudeza os seus gestos e atitudes, as suas superstições e as suas ideias, os seus conhecimentos da flora e da fauna, aproveitando convites para festas e para caçadas e pescarias, onde certamente caçou e pescou mais lavores e joias linguísticas do que bichos e peixes.

Tudo anotava, e o seu arquivo linguístico, só em parte aproveitado por ele, poderá ainda servir de manancial filológico e literário de enorme valor.

Foi por essa época que, indo a São José do Rio Pardo, ali conheceu Euclides da Cunha. Dirigia ele a construção da ponte sobre o rio,na modesta cabana, hoje santuário de um culto, anualmente renovado, pela esclarecida gente daquela terra, que assim dá o mais alto louvor ao criador de Os Sertões.

Valdomiro e Francisco Escobar vieram, muitas vezes, de Casa Branca, chamados por telegrama, por Euclides, para ouvir os novos capítulos que este ia compondo.

Conta-nos Valdomiro (em discurso sobre Euclides da Cunha) que, indagando dele sobre o manuseio dos clássicos lusitanos, recebeu a espantosa resposta de que os não conhecia. "Mas é indispensável ler, pelo menos Herculano e Camilo Branco", lembrou Valdomiro.

Euclides assentiu e Valdomiro lhe trouxe o O Monge de Cistér. Dias depois, interpelando-o sobre as suas impressões, respondeu-lhe Euclides: "É um pouco pesado"… e acrescentou, como para desculpar-se: "Ainda que tenha o peso do ouro"…

Esta anedota há de intrigar muito devoto extremado dos clássicos, pois mostrará que a prodigiosa riqueza verbal de Euclides (que provocou de alguém a observação de que ele escrevia em estilo de cipó) não proveio daqueles escritores, sem cuja imitação se acreditava geralmente ser impossível escrever bem.


Imagem: reprodução parcial da página com a terceira parte da série

III

Desinteressado da política local, não pode, entretanto, Valdomiro fugir a tomar parte nos grandes momentos da vida partidária da República ou de S. Paulo. Foi assim que pertenceu à dissidência – chefiada por Prudente de Morais. Foi assim que se bateu pelas duas candidaturas de Rui Barbosa à presidência da República; pela de Luiz Pereira Barreto, candidato à deputação estadual contra a candidatura oficial; pela de Heitor de Morais à vereança à Câmara Municipal de Santos, também em oposição à situação dominante.

Sobrevindo à revolução paulista de 1932, foi, em Santos, o seu líder civil, pelo rádio, pela imprensa, falando e escrevendo com eloquência e patriotismo. Ainda em Santos, fundou a seção local da Federação dos Voluntários de São Paulo, e de sua presidência foi chamado pelo dr. Armando Sales de Oliveira para secretário da Educação e Saúde Pública, desistindo então da cadeira de deputado à Constituinte Federal, para a qual havia sido eleito por grande votação pela "Chapa Única por São Paulo Unido". Foi ainda secretário da Justiça e da Segurança Pública, e mais tarde vice-presidente e presidente em exercício da Assembleia Constituinte de S. Paulo.

Pronunciou formosos discursos, vazados em forma tão perfeita que dispensariam revisão taquigráfica – informa o ilustrado professor Ernesto Leme, então líder da maioria naquela Casa Legislativa.

Mas, na vida política, como no exercício da advocacia, que foi o mister predominante em sua vida, nunca se afastou Valdomiro Silveira daquela atitude de respeito ao adversário e de sobranceria a questões e rivalidades pessoais, em que sempre se soube manter.

Em 1905, indo a Santos, em lua de mel, foi convidado por Martim Francisco, também fundador de nossa companhia, a trabalhar no seu escritório de advocacia, um dos mais movimentados de Santos, por todos apontado como exemplo de probidade, de cultura e de impecável ética profissional. Ali redigiu Valdomiro, com elegância e precisão notáveis, os seus arrazoados, escrevendo fácil e corretamente, sem emendas ou entrelinhas. Compunha de um jato e a forma lhe saía perfeita e incisiva.

Quisera, senhores, trazer-vos aqui o testemunho do carinho com que o amaram Martim Francisco, Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Euclides da Cunha e tantos outros, e retraçar, embora brevemente, a história de suas relações, e do recíproco apreço destes e de outros homens de letras. Mas, o receio de fatigar-vos me força à brevidade.

Quando o seu substituto, em nossa Academia de Letras, houver de estudar, com mais lazer, e certamente com maior brilho, a sua figura literária, veremos o que estas linhas não vos puderam revelar – o exímio manejador da língua, de quem escreveu em versos exuberantes o grande Martins Fontes:

"Por ter criado uma literatura

da Paulistania ele é o supremo artista.

No Criador louvando a Criatura

Bendigo a força do torrão paulista".

O seu exemplo ficará. O seu nome não se envolverá nas trevas da morte.

Para individualidades como a de Valdomiro Silveira, a morte não é, como para o comum dos homens, um termo à peregrinação por este mundo. Tendo vivido intensamente dentro das letras de sua terra, há de continuar dentro delas, como um marco na sua história literária, como o iniciador e o mais fecundo escritor do conto regional. Toda a sua rota literária se desenvolveu neste horizonte, que, oferecendo embora à posteridade grande messe do seu engenho, não abrangeu todavia as múltiplas facetas daquele espírito singular.

Não morrerá, por isso, o pesquisador da alma cabocla. À medida que a literatura nacional tomar proporções maiores, ao compasso do nosso desenvolvimento demográfico e cultural, há de acentuar-se a volta às genuínas fontes da nossa psicologia coletiva, e hão de crescer, na admiração das gerações, os tipos humanos, que ele faz palpitar nas páginas de seus contos.

Prefaciando o seu primeiro livro Os caboclos, escreveu, em 1920, seu irmão Agenor Silveira, a Monteiro Lobato, outro mestre do conto regional: "Antes de tudo, bom ir-te dizendo que Valdomiro foi o criador da literatura regional no Brasil. Quero fazer-lhe esta justiça, que outros demoram tanto em praticar, correndo-lhe, mais que a mim mesmo, o desempenho de tão leve obrigação. De fato, até 1891, data em que aparece no Diario Popular de São Paulo, o seu conto intitulado Rabicho, não me consta que nenhum escritor brasileiro manifestasse qualquer pendor para o regionalismo, que desde então se tornou a nota mais viva das suas produções, estampadas no Diario da Tarde, n'O Paiz, na Gazeta de Noticias, na Bruxa e na revista Azul.

Trazia Valdomiro a público cenas inéditas da roça, tipos, costumes, paisagens e aspectos inteiramente novos do sertão, servindo-se para isso de um estilo próprio e inconfundível, e de uma arte superior, cuja simplicidade impressionava. A escola, por ele fundada, prestigiou-a desde logo a pena ilustre de Afonso Arinos; honrou-a com seus trabalhos o imortal patrício Coelho Neto, e nela se inscreveram muitos e muitos outros nomes, inclusive o do fulgurante autor dos Urupês.

Transcrevemos esta página, como documento e como ato de justiça, a fim de se consagrar definitivamente, em nossos anais literários, esta prioridade que já agora ninguém lhe disputará, mais que tendia a tornar-se esquecida, quando, ao toque de seu exemplo, começam a repontar aqui e ali, dentro e fora de S. Paulo, contos e paisagens regionais, numa nova floração literária, que ele corajosamente soube semear.

Esta coragem intelectual nunca lhe faltou. Do caboclo paulista, do caipira devorado pelas verminoses, do jeca-tatu impaludado e descrente, do pobre diabo esquecido dos poderes públicos e do cético das conquistas da civilização, extraiu ele essas figuras cheias de bom humor, ou de desconsolo, de heroísmo ou de resignação, de fatalismo impassível ou de crença supersticiosa, que passam diante de nossos olhos como exemplares vivos e imorredouros.

Os tipos que apresenta não nos fazem descambar para o pessimismo, nem nos provocam repulsão. Valdomiro Silveira ama entranhadamente a sua terra e o seu povo, e a minúcia da observação, a fidelidade dos retratos, não excluem larga dose de simpatia humana e ampla compreensão do seu espírito sutil.

Por isso a impressão que nos fica, desde a primeira leitura de seus contos, é a de quadros desenhados com sóbria perfeição, com toques simples e incisivos, a que não falta, porém, aqui e ali, um rasgo de bom humor, ou melhor, um clarão de alegria filosófica, que se não extrema em exageros, e que constitui a sua filosofia da vida.

Creio residir aqui a razão primacial de sua simpatia pelos nossos homens do campo: Valdomiro Silveira, grande emotivo, e alma profundamente generosa, considerava-se como exilado na civilização das cidades. Tendo começado a sua infância em meio rural, e tendo em estreito contato com a alma sertaneja vivido uma parte da mocidade, compreendeu e sentiu o que há de grande, generoso e forte, na alma do nosso campônio, depósito vivo de crenças e superstições, de verdades morais e de experiências coletivas. Viveu com ele, nas horas vibrantes em que o samba lhe escalda o coração e põe-lhe movimentos reflexos nas pernas, quando, ao incitamento das notas rudes e compassadas, toda uma multidão se agita e estua, enquanto os descantes ecoa pelas quebradas, e a noite cintilante de estrelas se embalsama com o cheiro acre das flores silvestres.

Com que carinho escutava ele as trovas sertanejas, em que a emoção inspira imagens surpreendentes de rara beleza, sublinhadas por traços singelos, mas profundamente expressivos, de ironia e de ceticismo.

"A moça que for bonita

Já mata por devoção:

O dia que ela não mata

Quaji morre de paixão"

 

"Quem falar de mulher velha

Fala de Nosso Senhor:

As velhas são mães das moças

As moças são meus amor".

Essas "modas" são cantadas por dois folgazões que as tiram – explica o nosso Valdomiro, em uma conferência em Santos sobre "Os poetas do Sertão". "Formam-se duas alas fronteiras de caboclos, todos de chapéu na cabeça e calçados. Bem calçados é o que se exige, porque o melhor do cateretê é a rija alternação do sapateado e das palmas. Batem-se então as palmas prolongadamente e em cadência, depois há o sapateado forte e extenso. Os parceiros vão se aproximando, quase que se topam, trançam entre os da mesma fileira e voltam a seus lugares. Recomeça o palmeio e o sapateado: com tanta violência, porém, que bastas vezes o assoalho se parte, sob os tacões de algum dançador mais cumba.

"Aqueles folgazões cumpriram seu dever: outros os substituem. E enquanto resmungam a toada do que vão cantar, concertando as vozes e temperando as violas a parceirada acocora-se para os cantos, com os vultos fantasticamente aumentados e agitados pela tremura da luz do candeeiro".

Temos nestas linhas exata descrição do descante e da dança que o acompanha, ao mesmo tempo que exemplo do estilo de Valdomiro Silveira – incisivo, pitoresco, simples e espontaneamente descritivo.


Imagem: reprodução parcial da página com a quarta parte da série

IV (conclusão)

Notemos que Valdomiro não se dedicou à poesia sertaneja senão excepcionalmente, e de passagem, apesar de filho de poeta, irmão de poetas e ele próprio poeta em sua primeira fase literária – como aliás quase todos os escritores do Brasil.

Refere-se, porém, à sua própria iniciativa nestes termos: "Alguém, de tempos a tempos, tentou trazer, à literatura oficial, a literatura sertaneja; e a literatura oficial refugava-a de pronto, sem maior análise, com frases de chalaça ou de impropério. Foi assim que os raros homens de boa vontade e de boas letras, apresentantes ou defensores dos poetas da roça, perderam o ânimo de manter a fala regional, com pouco se transformaram em escritores do estilo que se batizou de fino, e vingaram a glória de ser tudo, menos escritores regionais. O que maiormente se disse contra o verso caipira, foi não vir ele sempre armado de metrificação resistente e impecável, e fugir, seu tanto ou quanto, às regras da gramática, até hoje canonizada por escorreita. É todavia inquestionável que a métrica já tem sofrido os mais rijos ataques dos poetas maiores, que lhe faltaram ao respeito por todas as formas; dos médios e submáximos, que professam desabaladamente o verso livre; dos menores que nela acreditam como nas coisas reveladas e recebidas por fé, mas não a entendem. É inquestionável, todavia, que os gramáticos, quando só o são, desconhecem por completo os segredos do idioma que usam, cuja formosura estética lhes fica sendo eternamente mistério.

"E os poetas do sertão versejam com facilidade e galhardia, conservando os mais interessantes arcaísmos da língua. Mas, chamam verso a toda uma estrofe, não à linha metrificada; e nem de longe desconfiam que são os depositários da palavra muitas vezes clássica. Descombinam o sujeito e o verbo, às vezes; outras vezes mudam a pronúncia ao vocábulo, quase sempre para melhor; outras, alargam-lhe a significação; e não é de espantar não ponham em seus lugares os pronomes, quando os doutores e os jornalistas a cada passo desacatam este decreto gramatical.

"De mais a mais, o sertanejo (e fiquemos para dentro das divisas de São Paulo) vivia aos poucos ajuntando materiais para a feitura do seu dialeto, sem dúvida mais rico e menos atravancado que a língua d'Oc, a doce terra do trigo e da cigarra; vivia-os ajuntando, e parece que desesperou da empresa, com a vinda dos estranhos e dos agressores, cabendo-nos registrar, ao menos, como um tributo de recordação agradecida, esse trabalho de construção de uma linguagem, que não chegará mais a termo, ou a termo chegará desfigurada e assustadora".

Foi propositada esta longa transcrição: quisemos reproduzir por ela toda a sua filosofia estética, e por assim dizer, os pontos de vista de onde partiu o seu lento e pertinaz labor.

Valdomiro punha o ouvido à boca do homem do sertão; vencia-lhe a desconfiança que, com a astúcia, constituem as suas armas defensivas e a sua atitude predileta; consignava por escrito os modismos, as surpresas linguísticas, os achados filológicos, que depois reduzia a pinceladas de seus contos, tão simples, mas tão ricos do linguajar da gente cabocla, e tão profundamente expressivos da alma campesina. E não o fazia o nosso companheiro sem a percepção nítida de um alto destino e de um insubstituível valor literário.

Depois de lamentar que os eruditos brasileiros desprezassem os romances e as lendas do sertão, registrava que "os nossos trovadores caipiras não tiveram ainda um Frederico Mistral, de triunfante coragem, que se lhes declarasse igual, e viesse por eles até os jornais e até os livros, fazendo uma nova Mireille da linguagem característica da região; nem um Paul Aréne, que trouxesse para as brochuras ilustradas as fábulas de ouro da mata virgem; nem um Jean Alcard, que fosse, entre os cidadãos, o eterno apaixonado de sua terra de fogo e de luz, de barrocadas e de taquarais; nem um Vigné d'Octon, que dissesse a leal embora complicada psicologia de sua gente; nem um Armand Silvestre, que, não muitas vezes, mas com profundo carinho, cantasse em prosa de prata, ou em verso de bronze, as belezas e maravilhas de seu recanto natal; nem um Alphonse Daudet, que, com suave fisionomia de Cristo e blandiciosa ironia de Satã, recontasse os feitos dos Quixotes indígenas, acabando, porém, de cercá-los de uma auréola de piedade e de meiguice".

Aqui está o que significam os seus livros de contos Os Caboclos, Nas Serras e nas Furnas e Mixuangos, já publicados, e ainda os que deixou inéditos, porventura mais belos e curiosos ainda.

Aqui está tudo o que Valdomiro tentou fazer e logrou realizar. Eis o tesouro faiscante de pedrarias com que enriqueceu as letras de nossa terra.

Temos a grata certeza de que, à medida que dobrarem os anos, há de crescer sempre a estima das gerações pela obra de Valdomiro Silveira. Quando o nosso Brasil de hoje, imenso gigante, apenas adolescente, que trabalhamos por erguer de pé – na bela expressão do Hino Acadêmico desta Faculdade -, houver povoado e fecundado os imensos rincões hoje quase desertos, quando esta formosa língua de Camões, de Rui Barbosa, de Euclides da Cunha, de Martim Francisco, de Martins Fontes, de Valdomiro Silveira (para só falar de alguns mortos), desabrochar em florações literárias infinitas, através de duas ou três centenas de milhões de brasileiros – hão de evocar-se as expressões tão fieis e tão pinturescas, que o gênio e a paciência de Valdomiro Silveira recolheram para nós da boca dos nossos campônios, para as retransmitirem a novas gerações, mais policiadas e mais cultas. Hão de refulgir então as suas páginas, como escrínios de joias raras, a que a mão do tempo terá emprestado o signo imortal, que as faz sobreviver à contingência humana.

Será esta a sua glória suprema – a de haver salvado do olvido e carreado para os tesouros da nossa língua e da nossa compreensão psicológica, riquezas que a ignorância ou a incúria teriam deixado tresmalhar-se nos caminhos da inteligência. "Non omnis moriar, multaque pars mei vitabit Libitina"! Não morrerei de todo – exclamava o poeta Horacio no seu Carmen Seculare – "não morrerei de todo; muito de mim há de poupar o alfanje da Morte".

Os amigos de Valdomiro Silveira, os seus contemporâneos, como os seus discípulos das gerações vindouras, poderão repetir conosco, tocados do amargor da saudade, que ele vive e reviverá, numa ressurreição indefinida, na alma de quantos logrem a ventura de percorrer-lhe as páginas e de gravar no espírito as figuras e as formas literárias que seu gênio imortalizou.

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