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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Valdomiro Silveira
Valdomiro Silveira (10)

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Nas páginas 48 a 55 da edição correspondente ao primeiro semestre de 2004, da publicação Acervo Histórico, editada na capital paulista pela Divisão de Acervo Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, destacou a vida e obra de um ex-presidente daquela Casa Legislativa, o escritor Valdomiro Silveira (ortografia atualizada nesta transcrição):

Material de campanha eleitoral de Valdomiro Silveira, em 1934
Imagem: Acervo Ana Maria Melo, publicada com a matéria

Acervo Histórico:

Leis & Letras - Valdomiro Silveira

As Casas de Leis, considerando-se suas diferenças, têm entre suas principais funções a da representação. Esta permite, por intermédio dos partidos políticos, personificar a imagem social e política de um país, de um estado, de um município. Ou seja, desvela seu pluralismo. Desse modo, sempre iremos encontrar, mesmo que em maior ou menor quantidade - a depender sempre de uma determinada situação conjuntural -, a presença de representantes que refletem ou integram o campo da luta, particularmente o da literatura.

Nesta Assembleia Legislativa, desde os seus primórdios, não foi diferente. Tiveram assento nesta Casa escritores, de maior ou menor envergadura, não importa - pois o universo dos adjetivos, todos sabemos, é minado -, e que galgaram notoriedade no campo das leis ou no das letras, e até em ambos.

Para recuperar essa dimensão e, até mesmo, arejar um pouco estas páginas impregnadas de racionalidade, o Acervo Histórico apresentará um espaço, Leis & Letras, dedicado àqueles parlamentares que passaram por esta Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e deixaram suas marcas na história da literatura brasileira. Nelas, antecedidas por um estudo da obra ou um perfil biográfico e um pronunciamento de destaque feito no plenário desta Casa, publicaremos algo significativo desses homens e mulheres.

Sem dúvida iniciamos estas páginas com Valdomiro Silveira, deputado constituinte e estadual de 1935 a 1937. Membro de uma família devotada às letras - entre os quais podemos destacar Alarico Silveira, Agenor Silveira, Dinah Silveira de Queiroz, Helena Silveira, Cid Silveira, Isa Silveira Leal, Breno Silveira, Moroel (N.E.: SIC - correto é Miroel) Silveira, Ênio Silveira, Belkiss Silveira Barbuy - é considerado precursor da chamada literatura regional brasileira e, em especial, da paulista. Por meio de sua produção, feita, sobretudo, em forma de contos, não apenas se recuperam os modos, pensamentos e ações do caboclo paulista, mas, particularmente, sua fala rica e particular.

Assim, abrimos com um perfil biográfico, publicado pela editora carioca Livraria São José em 1973, por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Valdomiro Silveira, que nos foi gentilmente cedido, bem como a maioria das imagens aqui utilizadas, por sua bisneta Ana Maria leal Góes Melo. Esse texto tem como visível fonte de inspiração um outro perfil de autoria de Júnia Silveira Gonçalves, filha do escritor.

A ele segue-se o discurso do deputado Valdomiro Silveira, presidente da importante Comissão de Constituição da Assembleia Constituinte paulista de 1935, apresentando o Projeto de Constituição que seria apreciado e discutido pro seus pares e destacando suas principais características. Por fim, encerramos com o conto Resignado, uma pequena obra-prima para o deleite de nossos leitores. Esse texto se faz acompanhar de um pequeno vocabulário, recolhido pelo próprio Valdomiro Silveira.

Ilustração da capa do livro Os humoristas da Constituinte de autoria de Maria Isabel Silveira, esposa de Valdomiro, retratando os constituintes paulistas de 1935

Imagem: Acervo Dainis Karepovs, publicada com a matéria

Valdomiro Silveira

(11/11/1873 - 03/06/1941)

I - Nasceu Valdomiro Silveira a 11 de novembro de 1873, em Senhor Bom Jesus da Cachoeira, Termo de Lorena, Província de São Paulo. Hoje Cachoeira Paulista.

Seus pais foram o dr. João Batista da Silveira e d. Cristina Silveira. Eram já nascidos os dois filhos mais velhos do casal, Joaninha e Valdomiro, quando o chefe da família se muda, com os seus, para São Paulo, a fim de se formar em Direito. Valdomiro tinha 22 meses apenas. Seis anos mais tarde, em 1881, passa toda a família a residir em Casa Branca, ainda no Estado de São Paulo.

II - É ali que Valdomiro, desde os oito anos, começa o seu aprendizado, ao tomar contato com o caboclo e a natureza que cerca. Pasma ante as impressionantes boçorocas, vê, observa, espreita a natureza. E, atento, vai escutando a fala da nossa gente. Em sua sensibilidade nova e em sua memória fresca tudo se grava, funda e indelevelmente. os caipiras, que vêm dos sítios ou dos povoados mais distantes, constituem motivo de permanente interesse para ele. Queria-lhes bem e não permitiu nunca que fossem ridicularizados.

III - Aos 14 anos seus versos começam a aparecer em letra de forma em jornais do interior. Porém, aos 17 anos, Valdóro, que é como lhe chamam os íntimos, impacienta-se e escreve a sua Apostasia, que termina assim: "Maldito seja o verso!" E põe-se a forjar, com seus próprios meios, um instrumento mais amplo e mais plástico de expressão. Dedica-se com amor ao estudo dos clássicos da língua portuguesa. E lê tudo, lê apaixonadamente toda a literatura universal, em espanhol, em italiano, mas sobretudo em francês, que conhecia a fundo.

IV - Segue então para São Paulo a fim de estudar Direito. Faz o seu curso na Faculdade do Largo de São Francisco. E se forma em janeiro e abril de 1895, aos 22 anos, obtendo quatro distinções e sendo eleito orador da turma.

Porém, anteriormente, aos 21 anos de idade, precedendo qualquer outro escritor entre nós, publica no Diário Popular de São Paulo o primeiro conto regionalista: Rabicho. Surge o regionalismo literário no Brasil.

V - Nomeado promotor público em Santa Cruz do Rio Pardo, ainda em São Paulo, para lá segue. É pleno sertão. Valdomiro exerce com a máxima correção o ministério público. E aproveita para continuar os seus estudos, anotando com cuidado o linguajar dos habitantes daquela região paulista. Estuda Ornitologia e Botânica. Frequenta os "assustados", as "funções" e os "pagodes" para os quais o convidam seus amigos, os caipiras. Toma parte em caçadas e pescarias, mais por ter o prazer de ouvir e de aprender.

Um dia resolve enviar um conto seu ao grande matutino carioca, O País. Coloca-o num sobrescrito simples, sem carta ou cartão algum a acompanhá-lo. Dias depois, recebe um jornal. O conto ali estava, em letra de forma e na coluna de honra da primeira página!

Foi por esse tempo que, havendo remetido a Olavo Bilac uma "leréia", deste recebe uma carta com a frase: "posso portanto dizer-lhe daqui que você tem talento como o diabo que o carregue!"

VI - Valdomiro Silveira, após exercer durante dois anos a promotoria de Santa Cruz, abre escritório de advocacia com seu pai em Casa Branca.

Euclides da Cunha, ali perto, construía a ponte sobre o Rio Pardo. Tornou-se amigo de Valdomiro e convidava-o a ouvir, juntamente com o amigo comum Francisco de Escobar, os capítulos inéditos de Os Sertões. Queria levar Valdomiro, e Vicente de Carvalho, para a Academia Brasileira de Letras e "esperava por eles quebrar todas as lanças".

Valdomiro Silveira advogou também na capital de São Paulo, em escritório com dr. Armando Prado. Colaborou assiduamente em jornais como o Comércio de São Paulo e O Estado.

VII - Havendo se casado em 1905 com Maria Isabel Quartim de Moraes, a sua Junia, pois que a conhecera no mês de junho, mudou-se para Santos. E aí, cercado da família que ia aos poucos crescendo (tinha já três filhos de uma primeira união), Valdomiro se dedica, quase que exclusivamente, às lides do foro, produzindo trabalhos jurídicos notáveis pelo saber e elegância da forma. Seu escritório era famoso pela honestidade e ética profissional.

VIII - Não se ocupou de política até 1932. Então foi em Santos o líder civil da Revolução Constitucionalista, manifestando-se com ardor e patriotismo pelo rádio e imprensa.

Eleito deputado federal pela Chapa Única "Por São Paulo Unido", é convidado pelo dr. Armando de Sales Oliveira para secretário da Educação e da Saúde Pública do seu querido Estado de São Paulo. Passa depois para Secretaria de Justiça e da Segurança Pública. Por fim, pede demissão desse alto cargo e ocupa a cadeira de deputado à Assembleia Constituinte de São Paulo. Foi vice-presidente e presidente da Assembleia Legislativa.

Sobrevém o novo golpe da ditadura, em 1937. Falecendo em 1941, não chegou a ver a alvorada da libertação...

IX - Valdomiro Silveira publicou quatro livros. Os Caboclos, com que estreou. Nas Serras e nas Furnas, vinte e quatro contos em que não entra amor nem mulher, e são, no entanto, cheios de ternura humana. Com esse título quis o autor englobar tudo o que vai na nossa vida rústica, tanto o que se pode ver claramente (nas serras), quanto quilo que se oculta (nas furnas). Seu terceiro livro intitulou-se Mixuangos, que quer dizer também caboclos. Quanto ao quarto volume, Leréias, histórias contadas por eles mesmos, foi talvez o predileto do escritor de Cachoeira Paulista. É todo saborosamente narrado pelo próprio caipira.

X - Valdomiro Silveira teve uma legião de amigos e de admiradores que lhe fizeram justiça. Vicente de Carvalho, na Carta a V. S. dos Poemas e Canções chama-lhe "o príncipe da prosa". E Monteiro Lobato assim lhe oferece os seus Urupês: "Ao Valdomiro, mestre, um mau aluno, muito vexado". Coelho Neto refere-se em A Notícia a Valdomiro Silveira, esse narrador extraordinário que nos traz, com a fidelidade do desenho de um Maupassant, toda a vida sertaneja: "paisagens e almas, os dramas e a linguagem". Humberto de Campos, Plínio Barreto, João Luso, Menotti del Picchia, deixaram belas e comoventes páginas sobre o autor cachoeirense, dizendo-lhe do caráter íntegro, da bondade, da acolhida que reservava aos seus confrades nas letras, estimulando-os e empurrando-os para frente, ao passo que se mantinha na sua habitual simplicidade e modéstia.

Tristão de Ataíde, em memorável estudo sobre regionalismo literário em O Jornal do Rio de Janeiro, assim se refere a Valdomiro Silveira: "Pode-se afirmar, desde logo, que ninguém até hoje o ultrapassou na perfeição do gênero".

E o prestigioso e implacável Agrippino Grieco teve para com Valdomiro as seguintes palavras: "Grande é o mérito regional e dialetal da obra do autor dos Caboclos. Sem comichão de glória, sem procurar gerir comercialmente a sua fama, sem fátua arrogância intelectual, simples, modesto e avesso à ruidosa publicidade, satura-se ele da realidade próxima e vivente e, com um admirável talento narrativo, sempre conciso e preciso, faz-nos ver, claramente vistas, a sua terra e a sua gente".

Muita tinta e muito papel de imprensa foram empregados em referências àquele rapazinho de Senhor Bom Jesus da Cachoeira.

"Referências", e estas palavras são agora do escritor paulista Rubens do Amaral, "como ninguém as mereceu maiores no Brasil. Não são palavras de benevolência. Não são gestos de cortesia. Não são expressões de camaradagem. São afirmações de uma admiração férvida que, vindo de onde vieram, bastam a consagrar a reputação de um escritor".

E o crítico Rubens do Amaral assim se exprime, em julgamento definitivo: "Os contos de Valdomiro Silveira são lavores pensados, sentidos e trabalhados com zelo e honestidade, com talento e amor, para que fiquem. E ficarão, como monumentos da literatura paulista, plantados na rocha de Piratininga, sólidos na sua estrutura, luminosos na sua beleza e na sua espiritualidade".

XI - Bráulio Sánchez-Sáez, jornalista e escritor argentino, adverte-nos em artigo publicado em O Estado de São Paulo, quatro dias após o falecimento do autor de Leréias, sobre a influência que Valdomiro exerceu na literatura de sua pátria, a Argentina. Além de nossas fronteiras "abriu caminho a poetas e escritores como Fausto Burgos e Juan Carlos Dávalos", sendo que o primeiro "seguiu passo a passo a lição de Valdomiro idêntica os costumes e as características do caboclo, seus sofrimentos, suas alegrias, suas esperanças na própria língua em que eles se entendiam".

E, rematando o extenso artigo: "A morte dessa singular figura foi sentida dentro de seu positivo valor, não somente na terra paulista, como também por todos nós", jovens de 1924 "que aprendemos uma lição de patriotismo ao nos familiarizarmos com a vida e os homens do campo argentino".

XII - O poeta santista Martins Fontes, ao passar para o verso um conto de Valdomiro Silveira, assim se manifestou, com aquela sinceridade muito do seu feitio:

"Valdomiro Silveira a paisagem nos pinta

Do sertão paulistano. A vividez da tinta,

A forma de dizer, límpida, modelar,

Na língua portuguesa, em seu novo falar,

A perspectiva exala, o vocábulo justo,

Se um pássaro retrata ou se evoca um arbusto,

Faz-nos grande-louvar o incomparável dom

Desse Artista de fror, Mestre do claro tom,

Que é, no imenso Brasil, da maneira mais pura,

Criador imortal de uma literatura!

Sua estilização tanto brilho contém,

Que o desenho colore e é música também!

Lêde-o, e olhai nossa terra!..."

XIII - Valdomiro Silveira provém de ilustre ascendência. Pedro Taques, na sua Nobiliarquia Paulistana, refere-se, com grandes elogios, ao antepassado do autor de Os Caboclos, o bandeirante Carlos Pedroso da Silveira, que "herdou com desvelado empenho o serviço do rei". Penetrou no vasto sertão dos bárbaros índios Cataguazes, de lá trazendo riquezas incalculáveis.

Este brasileiro amoroso de sua terra, o escritor cachoeirense Valdomiro Silveira, repete a façanha do seu quinto avô dois séculos mais tarde. Penetra nas serras e nas furnas do nosso interior paulista, lá descobrindo e pesquisando as riquezas da nossa língua, do nosso folclore, das nossas tradições. E as transmite aos seus contemporâneos, criando um gênero literário inteiramente novo entre nós.

Ele "é", como diz Balzac referindo-se a Walter Scott, "um desses homens fortes que abrem por si mesmos o próprio caminho; outros se atiram na trilha que ele franqueou e respigam nas suas pegadas".

(FONTE: Valdomiro Silveira. Pequena bio-bibliografia comemorativa do centenário do escritor. Homenagem da Livraria São José. Rio De Janeiro, Livraria São José, 1973).

Valdomiro Silveira, desenhado pelo caricaturista Belmonte

Imagem: Acervo Dainis Karepovs, publicada com a matéria

Discurso pronunciado pelo deputado Valdomiro Silveira na 37ª Sessão Ordinária da Assembleia Constituinte do Estado de São Paulo, realizada em 28 de maio de 1935, por ocasião da apresentação do Projeto de Constituição do Estado de São Paulo, elaborado pela Comissão de Constituição, por ele presidida:

"O SR. VALDOMIRO SILVEIRA - Sr. presidente, havendo concluído a tarefa que se lhe incumbiu, tem a Comissão de Constituição a honra de apresentar à Mesa o projeto da Carta Política de S. Paulo. Se tal tarefa, em verdade, não foi por demais penosa, porque os operários que serviam na fábrica do edifício andavam apostados a servir a tempo e hora, não pequenas dificuldades surgiam, de quando em quando, tendo-se em consideração e pondo-se em confronto as superiores conveniências da terra bandeirante e os moldes e preceitos da Constituição Federal.

Sabem hoje quase todos, até os que menos tratam letras jurídicas, de quanto se vai ampliando a esfera das Constituições nacionais, e como, portanto, se restringe, dia a dia, a das estaduais,nos países sujeitos ao regime de federação. Cânones da legislação ordinária, em muitos deles, deslocam-se, por motivos acidentais que a história dos povos registrará oportunamente, e magnificam-se em postulados da lei básica.

Não estamos em tempo e em lugar de discutir o bem ou o mal da vertiginosa mudança. Cumpre-nos, apenas, registrar o fato, porque é a direta explicação da deficiência ou acréscimo da matéria constitucional, que acaso se queira encontrar no projeto.

O esquema de distribuição é, como nos parece deveria ser, idêntico ao da Constituição Federal: guarda a espécie, as linhas do gênero. São dez os títulos, partindo-se o primeiro em quatro capítulos; por sua vez, o segundo e o terceiro capítulos cindem-se em várias seções.

Esse primeiro título é o que trata da organização dos poderes; donde, antes de mais nada, a precisão técnica de declarar quais sejam, em disposições preliminares.

Adotou-se, no legislativo, o sistema de uma câmara somente. Compô-la-ão 68 deputados: 60 eleitos pelo povo; 8 pelas classes profissionais. Cada grupo desses terá dois representantes; mas no último, que se forma de duas classes díspares, como sejam a dos funcionários públicos e a das profissões liberais, corresponderá um deputado a estas, outro àqueles.

Definiram-se as condições de elegibilidade. Fixaram-se as datas de abertura e encerramento dos trabalhos parlamentares. Assegurou-se, nas comissões, a representação legal das correntes partidárias. Estabeleceu-se a disciplina da imunidade. Preceituaram-se as possibilidades de atuar o deputado em ouros misteres ou profissões, Instituíram-se as maneiras de substituição e de votar.

Enumeraram-se as atribuições; ordenou-se o processo parlamentar de formação das leis, vetos, sanções e promulgações; firmou-se a competência para as iniciativas, declarando-se quando poderá haver cooperação e quando exclusividade.

Criou-se uma comissão permanente, com a quarta parte da assembleia, escolhida por voto secreto e sistema proporcional, que velará pela observância da Constituição, no que respeita às prerrogativas do poder legislativo, e tomará todas as medidas e providências de caráter urgente.

Elaboraram-se as regras para a confecção do orçamento. Marcaram-se os prazos da proposta e do projeto final, de modo a não haver lentidões nem atropelos.

Fixou-se, para o executivo, em quatro anos o prazo do mandato do governador, concomitante com o da Assembleia. Taxaram-se as condições de elegibilidade e inelegibilidade, os casos e o modo de substituição, a fórmula de compromisso para a posse, as atribuições e as responsabilidades, os ritos de julgamento.

Declarou-se como seriam escolhidos os secretários de Estado, quais as suas atribuições e responsabilidades, e de que maneira se substituirão.

Deram-se, como órgãos do judiciário, a Corte de Apelação, os juízes de direito, os pretores e juízes substitutos, os juízes de paz, os tribunais do júri, e outros juízes e tribunais que a lei criar.

Especificaram-se as condições de ingresso, exercício, responsabilidade, vencimentos e aposentadoria, remoção e promoção. Traçaram-se as linhas mestras de jurisdição e competência.

O título segundo, que se refere ao ministério público, assegura estabilidade aos respectivos membros e estabelece regras de ingresso, idênticas às que se firmaram para a magistratura.

Enfrenta o título terceiro a organização municipal, assegurando a autonomia dos municípios e deferindo à lei ordinária as condições de criação, desmembramento e supressão dos mesmos. Dá como órgão legislativo a Câmara Municipal e, como executivo, o prefeito, este e aquela eleitos por três anos, exceto na capital e nas estâncias hidrominerais, onde a investidura no cargo de prefeito se fará por nomeação direta do governador. Não sendo iguais os territórios e a importância econômica dos municípios, só a lei orgânica fixará o número de vereadores, que oscilará entre sete e quinze, com exceção da capital, em que será de vinte. Assegura-se à Câmara Municipal a competência para decretar impostos e o modo de se formar o orçamento. Circunscreve-se a dois casos a intervenção do Estado nos municípios. Cria-se, obedecendo à Constituição Federal, um departamento que prestará, quando solicitado, assistência técnica aos governos municipais e lhes fiscalizará as finanças na forma que a lei prescrever. Enumeram-se os casos em que podem, pela Assembleia, ser anulados os atos, leis e resoluções municipais.

Faz-se, nos demais títulos, a declaração de direitos a nacionais e estrangeiros; assentam-se as bases para a assistência social e a educação; estabelecem-se os princípios garantidores do direito dos funcionários públicos, incluindo-se nestes os estaduais e os municipais; preveem-se os termos de reforma da Constituição; preceituam-se disposições gerais, sobressaindo delas a que veda a criação de encargos ao tesouro, sem atribuição de recursos suficientes, a que veda a atribuição de produto das multas aos funcionários ou a outrem, a que concerne ao aumento de imposto e à percentagem das multas moratórias.

Nas disposições transitórias, estabeleceram-se, entre outras, as que se referem ao mandato do atual governador e ao prazo da atual legislatura, bem como à discriminação das rendas. Não se fez aumento algum de subsídio.

Sr. Presidente, é essa a estrutura geral do nosso projeto.

Bem é de ver que não apresentamos uma obra perfeita. Asseguramos, entretanto, a v. excia. e aos nossos companheiros que, apenas, tivemos a perfeição de desejar a perfeição (Muito bem, muito bem.) Se não a atingimos, é porque, naturalmente, ela nem sempre é acessível aos homens, argila fraca e frágil. Esforçamo-nos, no entanto, por atingir o máximo das possibilidades. Posso assegurar a v. excia., como já o fiz uma vez, que a cooperação das bancadas foi a mais perfeita e elegante que se possa imaginar. (Muito bem.) Não tivemos a menor divergência, senão quando se discutiram dois ou três pontos doutrinários, apenas. Asseguro, sem receio algum da menor contestação, que nem um princípio partidário impediu, por um instante, o prosseguimento dos nossos trabalhos. Afirmo, ainda, que a calma e a cordialidade foram sempre iguais e uniformes. Se a mais não chegamos, sr. presidente, é porque realmente não pudemos chegar a mais. Entretanto, quem quer que leia esse projeto, verá que as disposições aí estatuídas são suficientemente claras. Tanto quanto possível, elas fogem ao perigo e à armadilha das interpretações; tanto quanto possível, elas aparecem e se apresentam, ao espírito de quem as ler, imediatamente digeridas e assimiladas, e isso porque, dentro dessas disposições, não há nada oculto. (Muito bem.)

A clareza, sr. presidente, é uma virtude paulista.

O sr. Alfredo Ellis - Muito bem.

O SR. VALDOMIRO SILVEIRA - Toda lei feita em S. Paulo deve ser clara, porque clareza significa sinceridade, tanto quanto sinceridade significa clareza.

Nessas condições, sr. presidente, o mais que podíamos fazer, e fizemos com os corações elevados, foi apresentar um projeto que se não ressentisse de sentimentos subalternos e que se mostrasse, diante dos olhos de todos, como um trabalho sem obscuridades.

Vozes - Muito bem! Muito bem! (Palmas. O orador é cumprimentado.)".

(FONTE: SÃO PAULO. Assembleia Constituinte. Anais da Assembléia Constituinte de 1935. Volume I. São Paulo. Sociedade Impressora Paulista, 1935, p. 444-446.)

Apresentando o Projeto da Constituição Paulista,

em imagem publicada no Diario da Noite de 28 de maio de 1935

Imagem: Acervo Ana Maria Melo, publicada com a matéria

 

Estudantes e professores dos Estados e do Distrito Federal visitaram a Assembleia Legislativa em 31 de junho de 1937. Na ocasião, Valdomiro Silveira presidia a Casa

Imagem: Acervo Ana Maria Melo, publicada com a matériaxxx

Resignado

Ansim que dobrei o morro e caí naquela meia chapada (o sol já 'tava esmorecendo, a sombra vinha resbalando p'ro morro abaixo), topei c'uma coisa à toa, uma coisa de nada, mas porém que me fez o coiração dar um balanço forte.

Ora o que não havéra de ser? Um passarinho, o pobre dum tietê, que parava entre as folhas duma embaúva e cantava suzinho a sua cantoria meia chiada, que em tal hora me pareceu muito triste. Reparei em roda de mim umas duzentas braças, não vi ninguém, ninguém: inté penso que, afora eu e a avinha, faz muito tempo que não hai quem tenha corage' de se aventurar p'r aqueles ermos.

Sentei numa pedra escura, que tinha limo esverdeado e feio, e peguei a 'maginar neste mundo de barafunda que tem sido a minha vida, de certos meses p'ra cá: alegria não me chegou nem uma, tristeza não me tem fartado, trabalho tenho tido em demasia… e arriba de tudo, p'ra me deixar nas toeiras d'uma vez, a lembrança d'aquela tirana, que não me larga um instante.

O tietê a mó' que troceu a língua, ou não sei o que: ficou mudo de repente, virou a cabeça p'ra baixo, quaji que rodou da arv'e, e enrufou o corpo inteiro, de repente, como quem 'garrou a pensar amargurado e não tem ânimo de tirar mais o sentido d'aquele pensamento de tanta malinconia.

"Uiai! Tietê cantador (foi o que me veiu na mente, aí nessa hora), pois você também 'tá vendido desse feitio? Você também tem seu rabicho? Você também 'tá só e desamparado? Não seje bobo: si uma não quis ouvir a sua cantiga, hai outra, e hai outras ainda, a terra anda cheia de amor e tem que sobejar argum p'ra você, como p'ra tudo o resto dos que vévé espalhados p'r esses centros de chão! Arvóre o voo, enquanto a noite não fecha, campeie o seu fado, que o seu fado com certeza não é ficar aqui pinchado nessa folha, suzinho e Deus, ver eu que só tenho por mim a minha sombra, e isso mesmo mal e mal!"

Passou uma arage', não houve ramo que não bulisse. A embaúva estremeceu, de alto a baixo, e a coitada da avinha sumiu entre meio das folhas, quando as folhas se ajuntaram; despois alevantou a cabeça, empapuçou o pescoço e cantou outra vez uma temporada; a arage' foi-se embora, a noite veiu chegando; e umas par' de estrelas já 'tava mexe-mexendo no fundo craro do céu.

Estudei aquela avinha, enquanto o dia foi dia; vi bem que não saiu do canto onde 'teve cantando; achei que a parage' era soturna de mais, não tinha uma risada de fonte que se esborrifa, nem a boniteza de uma flor que cheira no entrançado da cipoama; tirei de mim p'ra mim que o passarinho inda era mais desinfeliz do que eu.

Quem eu queria não me quis mais, isso é verdade, andou-me armando a ingratidão mais negra que eu tenho visto; não piso num palmo de terra meu, isso é verdade; não encontro na minha estrada uma cara que sirra p'ra mim com amizade verdadeira, isso é verdade: mas porém quando eu quero, enrólo os meus tilangues, vou fazer o meu empreito lá da outra banda do rio, lá da outra banda do morro, afundo no mato velho, derreto no sertão, fico morto p'ra quem fica e vivo só pr'a mim mesmo.

Agora a noite já tapou de tudo, a única luzinha que me alumeia é a craridade das estrelas e um pouco do branco do crescente; não me chegou alegria nem uma, não me farta tristeza, 'tou como dante' ou quaji: mas 'o menos vou rompendo, vou seguindo, levo o meu coiração amargurado p'ra lavar noutros ares, e pode bem que os outros ares um dia me lave' dereito o meu coiração…

E o pobre do tietê? Ficou trancado porque quis e foi seu gosto, naquela folhage', naquela arv'e sem alegria, naquela chapada temerosa. Tem muita dor, e não abre; desesperou, e não foge; 'tá morre-não-morre, e não percura a vida. Si é certo que eu carrego comigo a minha malinconia, ela vai arejando e mudando de figura, p'ro sol e p'ra chuva, p'ro vento e p'ras tempestades; talvez inda vire nalguma coisa bem deferente, de menos tristura e de mais consolo, alguma coisa ansim como uma sodade bem antiga, de bem longe, de muito bem.

Eu, antão, hei de sentir alivio de coiração, sussego de alma, felicidade… Felicidade, pode ser que não, mas contanto que o sussego e o alívio eu hei de ter, tão certo como sem dúvida: e um filho de Deus, que já viu o inferno de perto, como eu ando vendo, inda é tão ambicioneiro que queira mais? O mais é à toa, não vale muito p'ra quem já não espera nada - e sabe que esperar por arguma coisa é ter o desengano como fim de tudo…

(FONTE: VALDOMIRO SILVEIRA. Leréias: histórias contadas por eles mesmos. São Paulo, Martins, 1945, pp. 165-168)

Vocabulário

a cipoama - o cipoal

a mó' - de modo que.

alevantou - levantou.

ambicioneiro - ambicioso.

arage' - brisa

arriba - para cima.

arvorar, v. tr. e intr. - levantar; levantar-se.

avinha - avezinha.

barafunda - situação em que não há controle ou ordem, na qual um grupo de pessoas produz tumulto, balbúrdia, pandemônio.

bulisse - mexesse.

campear - procurar (algo que desapareceu).

coiração - coração.

dereito, qualificativo - direito. A forma corrente era dereito, representada hoje na voz do povo em algumas regiões por dreito (Amadeu Amaral, O dialeto caipira).

desinfeliz - infeliz.

desmasia - demasia.

empapuçou - fazer inchar ou inchar; opar(-se).

empreito - ato de empreitar (contratar ou executar por empreitada).

enrufou - tornar(-se) crespo, arrepiado; ouriçar.

fado - destino.

hai - há.

havéra - houvera.

inté - até (a forma regular é menos usada).

leréia, s. f. - léria, história complicada ou enrolada; divertimento; simulação.

limo - mistura viscosa, pegajosa, de argila, matéria orgânica e água; barro, lama, lodo.

malinconia - melancolia.

mexe-mexe, s.m. - movimento contínuo, andar sem parada.

morre-não-morre - moribundo.

nas toeiras - muito apertado, em apuros.

nem uma - nenhuma.

parage' - paragem.

percura - procura.

quaji - quase.

rabicho - amor intenso; paixão.

resbalar - resvalar.

seje - seja.

sirrir, v. refl.- rir-se.

sobejar - sobrar.

sodade - saudade.

sussego - sossego.

suzinho - sozinho.

suzinho e Deus - só com Deus.

temporada - período mais ou menos longo de tempo.

tilangue, s.m. - roupa velha. Mais usado no plural.

tristura - tristeza.

troceu - torceu.

veiu - veio.

véve' - vivem.

As obras de Valdomiro Silveira: Os Caboclos (1920), Nas Serras e Nas Furnas (1931), Mixuangos (1937), Leréias (1945)

Imagem: Acervo Ana Maria Melo, publicada com a matéria

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