Vicente de Carvalho: poeta do mar e cidadão da República
Ana Luiza Martins (*)
Há poetas que são lembrados pela temática da obra, com
suas biografias circunscritas a ela. Castro Alves, o poeta dos
escravos, seria um exemplo. Outros, não obstante vasta e diversificada coletânea de versos, são reverenciados apenas por um poema e através dele
entronizados e perpetuados. É o que ocorre com Raimundo Correa, autor de "As Pombas", rasgo poético que se agregou à sua produção,
aprisionando-o àqueles versos no imaginário popular.
Em Vicente de Carvalho, poeta santista, ambas as associações - da temática e do
poema - vincaram sua biografia, tornaram-se indeléveis. A simples menção de seu nome evoca, de pronto, o Poeta do Mar, epíteto cunhado por
Euclydes da Cunha ao prefaciar-lhe a obra Poemas e Canções, em 1908.
Para muitos, contudo, a referência mais forte é aquela do autor de um só poema,
O Pequenino Morto, reiteradamente declamado ao seu tempo, figurando indefectível nas antologias poéticas de nosso cancioneiro literário. Para
outros, aficionados, Vicente de Carvalho ainda é o Poeta do Amor e, por vezes, inspirado autor de Fugindo ao Cativeiro, o consagrado
poema épico abolicionista.
Esta fulgurante aura lírica que o envolve e a persistente associação e
confinamento de seu nome a uma só temática ou a um só poema acabaram por subtrair para as gerações posteriores as tantas dimensões de sua atuação
múltipla, encobrindo o acadêmico militante, o jornalista, o político, o advogado, o fazendeiro, o empresário, o chefe de família com numerosa prole,
enfim o personagem que foi poeta mas, sobretudo, amou e atuou fecundamente na vida.
Vicente de Carvalho, jovem advogado, por volta de 1890
Foto: Arquivo O Estado de S. Paulo, publicada com o texto
Sua filha, a historiadora Maria Conceição de
Carvalho, guardou do pai a imagem do magistrado e o apresentou nesta ordem: "Cultivou as leis e foi poeta"
[1]. Roquete Pinto, sensível à militância de sua
geração, o viu como "(...) grande cidadão (...) sempre interessado nas questões difíceis da
república, juiz de peregrinas virtudes, exemplar representante dos melhores aspectos da sociedade que se formou"[2].
Brasílio Machado, conterrâneo santista, presidente
da Academia Paulista de Letras, valeu-se da imagem de seu cotidiano para a saudação de ingresso: "Não fosseis vós um
impenitente pescador de... peixes, de quando em vez, e sempre um pescador de pérolas"
[3]. O engenheiro Euclydes da Cunha o tinha no mais alto
conceito, afirmando no prefácio de Poemas e Canções: "(...) nobilita o nosso tempo e a
nossa terra" [4].
A despeito destes registros e do empenho das biografias em elencar suas
tantas atividades profissionais, a consagração do Poeta do Mar veio em detrimento do agente social polivalente, o cidadão republicano de seu
tempo, o exemplar de homem público [5].
Certo que não se costumava ver poetas como homens de negócios, traço correntemente
eliminado de suas biografias, eram festejados pela poesia e só existiam em função dela. Todavia, o bacharel Vicente de Carvalho inaugurou nova
conduta do homem de letras, prefigurando postura incomum de literato em seu tempo, balizando a profissionalização da geração parnasiana. Eram
jornalistas que não se limitavam tão só ao cultivo das musas, pálidos poetas de rotos andrajos. Ganhavam com a pena e colocavam-se com ela a serviço
do mercado.
Foi assim com Olavo Bilac, Bastos Tigre, Vicente de
Carvalho e tantos, que atuaram na grande imprensa, não obstante este último prescindir dela como fonte de renda, dada a diversificação de seus
negócios. E aí estaria um traço peculiar, só explicável, em parte, no poeta que cresceu junto ao mar, mas, sobretudo, na cidade em que o capital
comercial e o mundo dos negócios definiram seu destino.
Oportuno, pois, neste espaço, desvendar um pouco mais de sua trajetória, como
resultado de espaço e momento histórico específicos, isto é, a cidade de Santos em vésperas de se transformar no
maior porto de café do mundo. Ali, a força do mercado e a dinâmica da economia pulsaram mais forte,
interferindo na formação e no cotidiano de sua população. O Poeta do Mar foi também o cidadão do espaço urbano que se construía como cenário
moderno da Primeira República, aberto ao Progresso que sua posterior filiação positivista confirmou, mas regido pela Tradição, para a qual suas
origens atavicamente o conduziam. Homem de ação que só poderia existir fruto de um contexto como aquele, engendrado pela cidade portuária de Santos.
Vivendo os dilemas de seu tempo e de sua geração de transição, foi personagem de
tempos definidos e de lutas precisas: quando estudante, a campanha abolicionista; recém-formado, a propaganda republicana e a construção da
República; na idade madura, o empenho sanitarista, a luta nacionalista, a defesa do café das perversas injunções
do mercado, a extemporânea e então moderna defesa de nosso patrimônio natural. Acima de tudo, Vicente de Carvalho, cidadão, converte-se em ícone da
cidade natal, a Santos que cresceu e se fez junto com o poeta, quase como num jogo de espelhos, em que um reflete e explica o outro, completando-se.
Vicente de Carvalho e família na Bélgica
Foto: In Octavio d'Azevedo, Vicente de Carvalho e os Poemas e Canções, Rio
de Janeiro,
José Olympio, 1970 - acervo da Biblioteca Guita e José Mindlin, publicada com o texto
Santos: um ensaio da Modernidade
Inicialmente, uma estatística, documento estranho para falar de poetas... Mas ele
próprio até que gostava delas, conforme demonstrou em seu alentado estudo sobre o café, tendo criado, em 1892, uma Repartição de Estatística do
Estado. Aqui, ela se refere à população de Santos, em dilatada amostragem de seu crescimento, ilustrativa da transformação vivenciada pelas balizas
de seu nascimento e morte, 1866 e 1924, respectivamente.
Ano |
População |
1872 |
9.151 |
1885 |
15.605 |
1900 |
50.389 |
1913 |
88.967 |
1935 |
142.059 |
Fonte: IBGE |
O salto brutal de crescimento da população, entre 1885 e 1913, transcorreu entre os 19
e 34 anos de idade do poeta, quando, em meio às sucessivas demolições e reconstruções do cenário urbano, o mar se constituiu no refúgio inalterado,
na paisagem irretocável que o confortava e alargava seus horizontes até o infinito. A recuperação de dois instantâneos de imagens da cidade,
delimitadores de sua trajetória, melhor ilustra a grande mudança ambiental que se operou ao seu redor: na infância, a cidade colonial, o porto de
trapiches; na mocidade e idade adulta, a cidade republicana, o
moderno cais. Quanto à atmosfera dos primeiros anos, será mais seguro dar a palavra ao poeta, que a rememorou
em versos de alegria:
Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flores pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro [...]
[6]
Era 5 de abril de 1866. Vicente Augusto de Carvalho nascia de tradicional família
santista, onde o capital social dava o tom. Pelo lado paterno predominava a linhagem militar, com avô capitão de milícias e pai major - Higino José
Botelho de Carvalho, dono de modesta loja de ferragens. Pela mãe, d. Augusta Carolina Bueno de Carvalho,consta nas genealogias que descendia em
linha reta de Amador Bueno, com bisavô materno capitão-mor. Troncos remanescentes da colônia, afeitos ao cotidiano do Império e despreparados para o
ingresso abrupto nas lides mercantis que a cidade demandou. Daí sua exclusão econômica, tanto dos quadros dos barões do café como da subseqüente
burguesia cafeeira.
Mais do que recuperar a infância economicamente difícil, que obrigou a família a
deixar o aprazível bairro dos Quatro Cantos (exatamente no local onde hoje está a
Bolsa do Café) para fixar-se na zona denominada Quartéis (hoje Rua Xavier
da Silveira), alternando meios para o sustento, importa sublinhar o espaço geográfico e o tempo histórico peculiares que presidiram seu
nascimento, infância e adolescência, conjuntura decisiva para sua formação.
A começar pelo seu nascimento em Santos, cidade de cotidiano singular no quadro da
província. Fundada em 1545 por Braz Cubas, guardava forte apelo de lugar onde se estabeleceram as bases da nação,
a barra por onde entrara Martim Afonso para iniciar a colonização, a terra de tradição libertária dos
Andradas.
Antigo "porto de sal", tornou-se a partir
de 1854 "porto do café", com quase 80% da movimentação exportadora total brasileira. Marcada pela expressiva presença
estrangeira, população típica das cidades portuárias, era a porta de chegada das mais ricas culturas, ficando uma nova mentalidade presidida
pelo capital comercial e pelo trabalho livre. Ali a associação liberalismo e laicização se deu de forma extremada quando, por seu porto, entrou
celeremente o discurso do progresso e da modernidade [7].
Contudo, ao tempo do nascimento do poeta, em 1866, a cidade ainda guardava a feição
colonial, amontoado de toscas pontes e trapiches, assombrada periodicamente pelo flagelo das epidemias. Em 1844 registrara-se o primeiro surto de
febre amarela, vinda do Rio de Janeiro, que reapareceu quatro vezes na década de 50, retornando subseqüentemente, mesmo quando a cidade já se
constituíra em importante praça do café. Em 1889 foi avassaladora, com envolvimento direto de Vicente de Carvalho em seu combate.
Bastante significativo, o fato de o poeta ter nascido junto com a
inauguração da São Paulo Railway, a primeira estrada de ferro paulista, iniciada em 1860 e inaugurada em 16 de
fevereiro de 1867, a então vencer a Serra do Mar em pouco mais de quatro horas, tornando obsoleta a antiga Estrada do
Vergueiro com suas tropas de muares, carroças e diligências. Com ela, Santos assenhoreou-se do mercado paulista, ultrapassando definitivamente
os outros portos litorâneos, formalizando o binômio São Paulo-Santos, estabelecendo uma infra-estrutura decisiva para o comércio cafeeiro
[8].
E mais: data de sua infância o encetar da discussão sobre a expansão urbana, iniciada
na década de 1870, suscitando todo tipo de debate em torno das questões de habitação, saneamento e um novo porto. Junto com ela adveio a força do
progresso, destruidora de referências ancestrais, que ali se expressou na demolição do marco fundante da povoação de Braz Cubas, o
Outeiro de Santa Catarina, autorizada pela Câmara Municipal em 1869.
Isso posto, sem se esquecer da vasta presença do mar, acentuada quando da mudança para
os Quartéis - que lhe permitia longas tardes de pescaria -, tem-se parte significativa do quadro de sua infância, cenário onde tudo se
transformava em face das exigências do café. Desencadeava-se a otimização das comunicações gerada pela ferrovia e a intensificação do comércio
exportador, determinantes da inserção de Santos no processo de modernização material.
Como decorrência, sobrevieram o novo cais, a construção de armazéns, o proliferar de
firmas comerciais - da casa comissária à casa exportadora, em geral de capital estrangeiro -, a instalação de bancos, a construção de abrigos para a
população imigrante e, também, a multiplicação dos cortiços.
O escritor Júlio Ribeiro, que faleceu em Santos e teve em Vicente de Carvalho o melhor
amigo, que o assistiu na hora da morte, legou um dos mais irrepreensíveis retratos da cidade portuária, por volta de 1888, a Santos que crescera com
o poeta:
"É curiosa Santos como cidade, tem cor sua, inteiramente sua. [...] Vista do mar, do
estuário, a cidade é negra: black town lhe chamam os ingleses. Os enormes vapores transatlânticos alemães, os esquisitos e bojudos
carregadores austríacos, as feias barcas inglesas e americanas de costado branco, os mil transportes de todas as nações, entram pela ria,
encostam-se à praia, varam quase em terra, afundam as quilhas no lodo negro [...].
"Pelas ruas vai e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classes
e de todas as cores, conduzindo notas de consignação, contas comerciais, cheques bancários, maços de cédulas do tesouro, latinhas chatas com
amostras de mercadorias. Enormes carroções articulados, de quatro rodas, tirados por muares possantes,
transportam da estação do caminho de ferro para os armazéns, e deles para as pontes, para o embarcadouro, os
sacos de loura aniagem, empanturrados, regurgitando de café. [...]
"Às três horas começa a cessar o movimento: a população imigra para
São Vicente e para a Barra. À tarde a cidade está silenciosa, deserta e morta. Há
todos os dias uma transição crua, brusca, da agitação para o marasmo, que dá tristeza"[9].
Nesse contexto, de predomínio do capital comercial,
povos de todo o mundo e ensaio de uma mentalidade cosmopolita - e só nesse contexto -, era possível ao menino de onze anos, de respeitável família
local, abandonar os estudos com primário concluído e trabalhar no consulado alemão. A experiência era precoce e inusitada para um jovem daquela
faixa etária e de sua classe social.
(*) Ana
Luiza Martins é historiadora do Condephaat, co-autora de Arcadas, História da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Alternativa) e autora de Império do Café. A Grande Lavoura do Brasil (Atual).
NOTAS:
[1] Maria da Conceição
Carvalho; Alfredo Vicente de Carvalho. Bio-Bibliografia de Vicente de Carvalho, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, Academia Brasileira de
Letras, 1943.
[2] E. Roquete Pinto,
Prefácio, in Maria da Conceição Carvalho; Alfredo Vicente de Carvalho, op. cit., p. 6.
[3] Vicente de Carvalho;
Brasílio Machado, Uma Recepção Acadêmica. Discursos de Vicente de Carvalho e Brasílio Machado, São Paulo, Escolas Profissionais Salesianas,
1912, p. 72.
[4] Euclydes da Cunha,
Prefácio, in Vicente Augusto de Carvalho, Poemas e Canções. São Paulo, Cardozo, 1908.
[5] A biografia mais
divulgada é de autoria de seus filhos: Maria da Conceição Carvalho; Alfredo Vicente de Carvalho, op. cit. Ver ainda: Vicente de Carvalho,
Autobiografia, in Revista da Academia Brasileira de Letras, São Paulo, v. XVI, ano XV, nº 35, nov. 1924; Hernâni Donato, Vicente de
Carvalho, São Paulo, Melhoramentos, 1955; Hermes Vieira, Vicente de Carvalho, O Sabiá da Ilha do Sol, 1943.
[6] Vicente de Carvalho,
Palavras ao Mar, in Poemas e Canções, Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmãos Editores, 1909, p. 73.
[7] Wilma Therezinha
Fernandes de Andrade, O Discurso do Progresso: a Evolução Urbana de Santos, 1870-1930, São Paulo, tese de doutorado do Departamento de
História da USP, 1989.
[8] Idem, Ibidem, pp. 97-8.
[9] Júlio Ribeiro, A
Carne, Rio de Janeiro. Livraria Francisco Alves, 1917, pp. 135-6. |