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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (2-B)

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A vida e a obra de Vicente de Carvalho foram tema de monografia publicada na RevistaUSP nº 41, de março a maio de 1999, edição da Universidade de São Paulo (USP)/Coordenadoria de Comunicação Social, da capital paulista, cuja reprodução integral continua:
 
Vicente de Carvalho: poeta do mar e cidadão da República

Ana Luiza Martins (*)

Tempo de estudante: "Um bando de idéias novas"

Todavia, não só as transformações materiais presidiram o tempo de sua infância e adolescência. Em 1868, "um bando de idéias novas esvoaçavam sobre nós de todos os pontos do horizonte" [10], no registro de Sílvio Romero, marcando o tempo mental do adolescente, quando se acirram o avanço do liberalismo e a voga anticlerical. A queda do ministério Zacarias de Góes e Vasconcelos, em 1868, definirá a radicalização liberal no país e na sua esteira, em 1870, o lançamento do Manifesto Republicano, que daria origem à ostensiva campanha republicana, sacudindo o nosso quadro mental.

Esse confronto, o jovem Vicente de Carvalho viverá em São Paulo, quando, valendo-se da ferrovia, subiu a serra para estudar na capital. Novamente se depara com o ambiente convulsionado em nome do progresso, quando a cidade desmontava seu cenário colonial e se transformava em canteiro de obras, reedificando-se sob o crivo do figurino francês.

Já o circuito escolar revelou os questionamentos de sua geração, dividida entre a tutela da Igreja e a busca da laicização. A passagem pelo internato do Seminário Episcopal, tradicional reduto ultramontano das famílias de elite, foi rápida, optando pelos Colégios Norton e Mamede, onde concluiu os preparatórios com apenas dezesseis anos. Passo seguinte, a entrada na Faculdade de Direito, para o que solicitou licença de idade legal, concedida pela Assembléia Geral do Império, a 17 de julho de 1882, pelo decreto nº 3.075.

De 1882 a 1886, Vicente de Carvalho seria o estudante de Direito do Largo de São Francisco, caminho natural trilhado pelos jovens de sua classe, com todas as implicações que este título trazia: boêmio, abolicionista, republicano, versejador. Contudo, também nesse espaço ocorria transformação de monta, com a recém-implantada Reforma de Ensino, de Leôncio de Carvalho, que entre outras providências admitia a freqüência livre dos alunos ao curso. O vetusto casarão franciscano esvazia-se de estudantes e até mesmo dos principais lentes. Aqueles voltam-se para o jornalismo, para as caçadas, as viagens, as temporadas do Lírico; os lentes, requisitados para altos cargos do Império. e mais. As dependências físicas da Escola estão em estado deplorável, conseqüência do incêndio que a comprometera em 1880.

A Memória Histórica do prof. Vicente Mamede, de 1882, fixa o seu aspecto exatamente no ano de ingresso de Vicente de Carvalho: "[...] Acha-se no seu exterior em estado medonho, pelos estragos e sujeira, que ostenta, e, no seu interior, não reúne as acomodações, indispensáveis e conveniência à seriedade e regularidade do ensino" [11].

Não obstante, a mística das Arcadas, a aura do espírito liberal, o ardor das campanhas sociais em curso estavam mais presentes do que nunca para aquela geração de 80, na esteira da atuação pregressa de Álvares de Azevedo, Castro Alves, Fagundes Varela, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e tantos... [12].

A seu tempo, a despeito de turmas separadas, seria contemporâneo de Raul Pompéia, Estevão de Almeida, José Manoel de Azevedo Marques, Juvenal Malheiros, Primitivo Sete, Borges de Medeiros, Cincinato Braga, momento em que a campanha abolicionista deslanchou, arrebatando todo o país. Vicente de Carvalho coloca-se no jornalismo, escreve nos periódicos e granjeia fama de literato. Spencer Vampré, ao referir-se à sua turma acadêmica, aquela que ingressara em 1882, dá-lhe destaque. Relaciona "Pedro Augusto Gomes Cardim, Wenceslau José de Oliveira Queiróz e Vicente de Carvalho, três poetas, dos maiores da Academia"[13].

A despeito do envolvimento com as letras, Vicente de Carvalho é um jovem pragmático e de posses modestas. Ressente-se do marasmo da Academia naquele momento, seja pela ausência dos alunos, pelo desfalque do corpo docente e pela decadência física do próprio edifício [14].

No terceiro ano solicita permissão para fazer o curso livre e retorna a Santos, não exatamente para pescar e caçar, mas para organizar um negócio em sociedade com o amigo e padrinho de casamento Luís Suplicy - uma sacaria de aniagem - de duração efêmera, empregando-se em seguida numa firma comercial no efervescente cotidiano santista.

É nessa ponte, entre Santos e São Paulo, que exercita a militância abolicionista, tornando-se o elo entre a cidade de tradição libertária, que abrigava os maiores quilombos, e a ação abolicionista vivenciada nas Arcadas. Privando com o grupo dos caifases, de Antonio Bento, junto de seus amigos Guilherme e Pedro de Melo, Arthur Andrade, Rubim César e Alberto de Sousa, encaminha os negros fugidos para o Jabaquara, o quilombo que mais tarde cantaria no épico Fugindo ao Cativeiro. Sobrevinha uma primeira vitória: na cidade aberta à liberdade, tinha o poeta vinte anos quando a 14 de março de 1886, em sessão solene no Teatro Guarani, reunidas mais de duas mil pessoas, foram alforriados todos os escravos de Santos.

A camaradagem com militantes de causas afins foi traço recorrente de sua atuação. É essa solidariedade de princípios que o ligará ao polêmico escritor Júlio Ribeiro, então morando em Santos, a quem vai assistir até à morte, defendendo seu ateísmo, assim como, em 1895, protege e esconde de perseguição descabida o já envelhecido general Couto de Magalhães, a quem se ligava por admiração intelectual.

Às vésperas da Proclamação da República estava formado o agente social da geração que pensou o Brasil, aberto à sua construção. Está no entrelaçamento das temáticas que presidiram aquela transição, pontuada pela discussão ideológica entre progressistas e conservadores, divididos entre o ingresso na modernidade e a guarda da tradição.


Vicente de Carvalho, declamando para Judith Fomm Mangin da Cunha, 
no Horto Botânico, em 1916
Foto: Coleção Marily da Cunha Bezerra, publicada com o texto

O homem público

Os passos iniciais da carreira do bacharel foram cumpridos à risca: o envolvimento com a política, a banca de advogado conceituada, a ligação por casamento com família de prestígio da elite paulistana, proprietária do jornal A Província de S. Paulo, futuro O Estado de S. Paulo. Em outras palavras: membro do Diretório Republicano de Santos, antes mesmo de formar-se, em 1885, com dezenove anos; no ano seguinte, recém-formado, trabalha no escritório de Martim Francisco e Silva Jardim; em 1886, com vinte e dois anos, casa-se com d. Maria da Conceição Ferreira de Mesquita, irmã do jornalista Júlio de Mesquita.

Entre os amigos, a brilhante plêiade de sua geração: Joaquim Dias da Rocha Jr., José Francisco de Paula Novais, Rodrigo Octávio de Langaard Menezes, Alfredo Olímpio de Oliveira Duarte, João Marcondes dos Santos, João Ribeiro de Oliveira e Souza. Em Santos, sua roda é aquela de Inglês de Souza, Assis Pacheco Neto, Carlos Afonseca, Eduardo Salamonde, João Pereira J. de Menezes, Gastão Bousquet e Adolfo Assis. Estava alicerçada a carreira do homem público, pois o literato já se colocara com duas publicações, muito bem recebidas pela crítica: Ardentias e Relicário, em 1885 e 1888, respectivamente.

Mais tarde, o também bacharel pelo Largo, Valdomiro Silveira, advogado em Santos, seria o interlocutor constante, afinado com a temática nacionalista, que fez de ambos autores inaugurais. Valdomiro lançava o conto caipira regional; Vicente de Carvalho elegia o "seu mar", para cantar a paisagem nacional. Privaria ainda com Martins Fontes, igualmente santista, egresso das Arcadas e poeta.

O figurino do bacharel fin-de-siécle, republicano de primeira hora, assentou-lhe com perfeição, ao cumprir as clássicas etapas daquele percurso: participação no Congresso Republicano de São Paulo em 1887, chefia da imprensa republicana local, deputado ao Congresso Constituinte do Estado, membro da Comissão de Redação da Constituição Paulista, secretário do Interior do primeiro Governo Constitucional do Estado, na administração de Cerqueira César, nomeado em 26 de fevereiro de 1892.

Percorreu o roteiro de sua utopia até atingir o clássico desfecho da desilusão, comum a seus pares de militância, confirmando que aquela também não era a República de seus sonhos e concluindo: "O país aderiu, não à República, mas ao Governo". Em 30 de setembro de 1892 afastava-se definitivamente da política, para nunca mais voltar, nem mesmo como eleitor. Tinha Vicente de Carvalho vinte e seis anos e cinco meses de idade.

À saída, um gesto surpreendente vindo de um poeta, mas previsível pelo rígido temperamento: uma bofetada em público em seu desafeto imediato, o secretário da Agricultura, dr. Alfredo Maia, que insinuara falta de lisura nas transações de sua pasta. O local? Durante a solenidade de posse da Câmara Municipal, repleta de fraques e cartolas. "O Sr. insultou-me em ofício: eis a resposta!", a que se ouviu o estalo da bofetada [15].

Não obstante tão fugaz passagem pela vida pública, deixou a marca de administrador de largas vistas, premido pela solução dos problemas candentes de seu tempo. Uma vez no poder, procurou avidamente cumprir seu papel naquela geração, ansiosa por construir o país moderno, de elevar o Brasil "ao nível dos países cultos", conforme jargão reverberativo entre seus pares.

Investiu na reforma da instrução pública do Estado, através da lei nº 88, de 8 de setembro de 1892, com vistas à ampla disseminação da alfabetização; criou a Seção das Caixas Escolares, embrião das Caixas Econômicas, sancionadas pela lei nº 117, de 1º de outubro de 1892; autorizou a fundação de uma Escola Superior de Agricultura e outra de Engenharia, em São Paulo, pela lei nº 26, de 11 de maio de 1892, ambas pensadas em caráter técnico-profissionalizante; determinou a instalação de dez estações agronômicas em lugares apropriados, voltadas para alunos pobres; cuidou ainda de organizar a Repartição da Estatística e do Arquivo do Estado, imperativo para a boa organização do serviço público.

Todavia, foi no âmbito da moderna política urbana que se empenhou e obteve resultados imediatos. Vivenciara os flagelos da febre amarela e da varíola; assistira à demolição agressiva do cenário de sua infância, quando se eliminaram gradativamente os marcos históricos da cidade colonial para rasgar novas avenidas, contemporâneas de sua mocidade. Tinha vinte e um anos em 1887 quando se iniciou a abertura das avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias. Com vinte e três anos assistiu à demolição da ponte do trapiche Brazil, na curva do Paquetá, em fevereiro de 1889, fato considerado tão importante que um fotógrafo foi chamado para documentá-lo [16].

Em face dos problemas candentes do saneamento e higiene urbanos, estudou a matéria e lançou as bases do Hospital de Isolamento do Instituto Bacteriológico e do Instituto Vacinogênico, enquanto montava os quadros de cientistas estrangeiros, responsáveis pelo programa sanitário então implantado. Em carta de próprio punho se dirigiu a Pasteur, solicitando-lhe que "desse ao Brasil a glória de sua visita, a honra máxima de sua presença, e viesse, entre nós, como hóspede, como salvador, médico de todos os doentes do planeta, de tudo quanto vive e sofre, criar o nosso serviço sanitário, estudar a febre amarela, erigir o Instituto bacteriológico"[17]. Não conseguiu a vinda do mestre, até pela sua idade avançada, mas obteve a indicação do discípulo Felix Le Dantec, biólogo renomado que, junto com o prof. Lachaud, respondeu pelo Laboratório de Análise e de Bromatologia do Estado de São Paulo.

Apontado como precursor da obra de Cesário Motta, na Higiene, organizou o Serviço Sanitário do Estado, através da lei nº 43, sancionada a 18 de julho de 1892. Determinou a inspeção sanitária de escolas, fábricas, oficinas, hospitais, quartéis, prisões, asilos e a fiscalização da alimentação pública, do fabrico de bebidas nacionais e estrangeiras, naturais e artificiais, do comércio e exploração de águas minerais. Prescreveu a realização anual de Congressos de Higiene e dividiu o Estado em quatro seções distintas para a execução do serviço sanitário: Capital; Santos e Campinas; demais cidades; vilas.

Formulou, sem obter seu cumprimento, a lei que previa a construção de fornos crematórios nas cidades de São Paulo, Santos e Campinas, exatamente aquelas mais atingidas pelas epidemias.

Inferindo de forma arguta os problemas de Santos, a sua cidade, dispensou-lhe total desvelo, empenhando-se na vinda do engenheiro sanitário dr. A. Fuertes, responsável pelo bem-sucedido saneamento da cidade de Nova Orleans, nos EUA. Em meio à renovação urbana, já encetada na década anterior, forças antagônicas se digladiavam, divididas entre sua demolição e/ou preservação, vale dizer, entre o que se considerava, na época, Progresso e/ou Tradição. O secretário do Interior e santista Vicente de Carvalho ponderava:

"Com relação a essa cidade, a situação é extrema e só dois alvitres extremos se nos oferecem à escolha: ou o Estado cria outro porto que lhe permita dispensar para as suas relações comerciais com o exterior o de Santos e abandona, no interesse da sua própria segurança, aquele foco de infecção; ou enfrenta energicamente com saneamento definitivo da nossa principal cidade marítima. Entre as duas soluções, não parece suscetível de dúvidas a preferência. O abandono do porto de Santos seria um desastre sob todos os pontos de vista..." [18].

Seu alvitre foi levado avante. A acelerada reforma do porto de Santos transformou o palco de sua infância em cenário da modernidade.


Primeira edição da primeira obra de poesias Ardentias, de 1885
Foto: Biblioteca Guita e José Mindlin, publicada com o texto


(*) Ana Luiza Martins é historiadora do Condephaat, co-autora de Arcadas, História da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Alternativa) e autora de Império do Café. A Grande Lavoura do Brasil (Atual).


NOTAS:
 

[10] Sílvio Romero, Explicações Indispensáveis, prefácio aos Vários Escritos de Tobias Barreto de Menezes, in Obras Completas, Sergipe, 1926, t. X, p. XXVI.


[11] Vicente Mamede, Memória Histórica para o Ano de 1882, São Paulo, s/3, 1883, p.14.


[12] Ana Luiza Martins; Heloisa Barbuy, Arcadas. História da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, São Paulo, Alternativa, 1998.


[13] Cf. Spencer Vampré, Memórias para a História da Academia de São Paulo. São Paulo, Livraria Acadêmica, Sariava Editores, 1924, v. II, pp. 441-2.


[14] Foram seus colegas de turma: Luís B. Gama Cerqueira, Ernesto Moura, Manoel Pacheco Prates, que se tornaram lentes da faculdade; Augusto Meirelles Reis, Firmino Antonio da S. Whitacker Filho, Eliseu Guilherme Cristiano, mais tarde ministros do Tribunal de Justiça de São Paulo; Pedro Affonso Mibielli, ministro do Supremo Tribunal Federal; Alberto de Seixas Martins Torres, filósofo e sociólogo; Custódio J. Coelho de Almeida, conceituado financista: Álvaro Augusto da Costa Carvalho, parlamentar e político paulista; Antonio Victor de Macedo, talento literário precocemente falecido. Cf. Spencer Vampré, op. cit.


[15] O episódio foi transcrito por Hermes Vieira, a partir das edições de O Estado de S. Paulo, de 1 e 2/10/1892. Hermes Vieira, op. cit., pp. 131-2.


[16] Hermes Vieira, op. cit. p. 108.


[17] Martins Fontes, Santos, suprema glória da Pátria, conferência realizada no Coliseu Santista, em 13 de maio de 1925. Apud Hermes Vieira, op. cit., p. 118.


[18] Cf. Relatório do Secretário dos Negócios do Interior, Vicente de Carvalho, 7 de abril de 1892, in Wilson R. Gambeta, Desacumular a Pobreza. Santos no Limiar do Século, p. 4. Apud Wilma Therezinha F. de Andrade, op. cit., p. 121.

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