I – CAVALEIRO DO AMOR
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Martins Fontes floriu ao sol de Santos a vinte e três de junho de 1884, à direita do atual Teatro Coliseu,
em frente à Matriz, na casa dos seus avós, prédio hoje desfeito onde os pais viveram. Esse puro e feliz recanto era a Chácara dos Martins – um bosque impenetrável, cheio de
sombras de araçás, cambucás, amarantos, na Praça José Bonifácio de Andrada.
Adorando o passado e idolatrando os parentes, sentia prazer ao evocar a infância. A Casa dos Martins estava sempre cheia de convidados e comensais; até raiar a madrugada esplendecia iluminada como palácio solarengo, onde, na sala de jantar, nunca
se retirava a toalha da mesa.
No tumulto das palestras, tratavam de revoluções, planejavam as campanhas da Abolição e da República, estudavam-se os problemas do socialismo com o altruístico pensamento de construir e de praticar o bem, defendiam a verdade e a justiça, criticavam
os governos sem medo ou temor do dinheiro ou do poder.
Os Martins tinham uma divisa que certa vez o pai de Martins Fontes disse a um régulo: "Nunca pedir e sempre recusar". Sacrificava-se tudo por uma ideia, falando-se claro, alto, de fronte erguida e coração aberto.
Com estas qualidades se completava o caráter do povo de Santos que, desde Braz Cubas ao fundar a Santa Casa da Misericórdia, mantém a tradição de generoso, franco, gastador,
perdulário, mas nativamente bondoso, proverbialmente bom. O santista é na generalidade sanguíneo, corajoso, libertário, sonhador, vivacíssimo, sincero, exagerado por excesso de fantasia, de poder criador, brioso e inteligente.
Lembrava-se Martins Fontes com saudades das noites felizes na Chácara, quando havia celebrações e festejos ou quando a sua avó, no dia do seu aniversário, dedilhava ao piano a Dalila, enquanto se recitava o Navio Negreiro de Castro
Alves. O pai de Martins Fontes lia durante os serões a Imitação de Cristo, em latim, comentando o texto e observando os erros de quem escreveu o livro, embevecido na pureza das ideias; e José Baptista Coelho (João
Foca) contava histórias caiçaras com fidelidade de tipos e de paisagens, como os quadros de Benedito Calixto, tocava bem violão e fazia serenatas, representava monólogos e comédias chistosas, pois era amador
dramático no Teatro Guarani.
E vinham as recordações dos tempos de garoto quando, com os seus companheiros, Heitor de Morais, Abraão Ribeiro, Chico Carvalhal, Manduca, Joãozinho Carvalhal e Samuel Ribeiro, iam ao matagal e brejo do Campo Grande ver dançar os tangarás, e caçar
passarinhos com gaiola de alçapão que se enchia de gaturamos, saíras, curiós, pintassilgos, sanhaços, azulões e canários que tanto se pareciam com eles. No decorrer dos anos, o grupo foi rareando até que restaram quatro somente.
Outra recordação da meninice foi o Clube XV, casa venerável da galanteria, cofre de prata das tradições santistas, vaso argênteo da Cidade Ninfeia. No Clube XV, guardam-se todas as ilusões da adolescência e muitas
lembranças dos primeiros poemas de amor de Martins Fontes.
O Clube XV nasceu na Chácara dos Martins, e foi o ninho de todos os afetos da família santista, porque aí se realizavam todos os consórcios, todas as celebrações da cidade e onde se cultivava a educação comunicativa.
Notabilizaram-se as deslumbrantes festas no prédio do Clube XV, solar de Noémio da Silveira, à Rua Amador Bueno, as quais principiavam pela valsa de Oscar Ferreira
obrigatoriamente; o Carnaval, nessa época, festejou-se com magnificente baile a Luís XV e representações artísticas em que tomavam parte como diretores de cerimônias: Gastão Bousquet, Baptista Coelho, Artur Azevedo,
Isidoro Campos, Heitor Peixoto.
Ficaram famosas as finezas de Sua Alteza Firmina: o chocolate suculento e as ceias fartas do Clube XV com doces caprichosamente arranjados, pratos piramidais de verdadeiro engenho, torres de fios de ovos emperolados de confeitilhos prateados, como
nos contos de fadas, fitas de coco afeiçoadas em laço e em desenhos curiosos, colchões de noiva, bem casados, pudins, bolos de amêndoas e de cacau, manjares brancos, queijadinhas, beijos do céu…
Tudo que Martins Fontes foi devia à sua mãe, como tudo que sabia devia a seu pai. Sentia no sangue florações radiosas, e arderem em si clarores de faróis, quando glorificava a Mulher Paulista, simbolizada em sua mãe, louvando-lhe a formosura, a
virtude e a divindade.
O Poeta beijava-lhe a mão, para que o abençoasse e protegesse. O seu amor puro lhe acalmava o coração, provando a doçura do seu bem querer. Olhava, analisava, linha a linha, a palma da mão e descobria o M gravado que quer dizer Mãe, e foi
feito na mão do Poeta para pensar nela quando ele fosse bom.
Beijava-lhe o nome quando o lia, quando o escutava, e com os olhos ouvia a sílaba cantando, ou pelo ouvido a via iluminante. Sentia, ao seu murmúrio, qual coisa ideal, como a chuva de pétalas brancas de milhares de pombas voando. Beijava-lhe a
face, mas sem a amar quanto ela o amava. Tinha a ilusão de que era o próprio beijo dela que beijasse o beijo dele, beijando-se no beijo dela.
No final da existência, o Cavaleiro do Amor, depois de percorrer todo o mundo da sua fantasia, constituiu o lar onde se recolheu para trabalhar como artista e para meditar como filósofo. Construiu o primeiro ninho elegante e florido, cercado de
árvores frondosas, à Avenida Pinheiro Machado, onde eu e Galeão Coutinho o visitávamos assiduamente. Dali, mais tarde, mudou-se para o seu novo bangalô da Rua Joaquim Távora.
Pertenciam ambos a Rosinha, sua companheira querida e desvelada há mais de vinte anos, que lhe mantinha o lar fagueiro em ordem e brancura. É uma casa baixa em estilo comum, onde as janelas sempre se mantinham abertas à fresta aragem do mar
longínquo, mas interceptadas pelas redes de malha metálica que impediam a entrada de moscas e mosquitos.
Tem jardinzinho à frente para as roseiras, com lampião de globo ao centro do canteiro. À direita, abre-se largo portão para a entrada de veículos em ruazinha de pedra britada. Um passeio de cimento circunda a casa. Entra-se no alpendre que nos leva
ao corredor interno, subindo-se a escadinha de mármore, sob rara e triunfal ipomeia de flores vermelhas, e folhas verde-escuras, ao lado da árvore do vento, cujo crescimento, diz a lenda, acima do telhado da casa, sempre anuncia a morte do
proprietário.
No interior da casa, à esquerda, ficava o gabinete de trabalho de Martins Fontes. As estantes onde os livros se encostavam uns aos outros encobriam larga porta que se fechava para a sala de jantar. Próximo, via-se a mesa de trabalho do Poeta, largo
tabulão de imbuia que serviu durante muitos anos para o estudo e os trabalhos literários, assistindo à luta em prol do amor, em busca da beleza. Em cima da mesa havia uma lâmpada francesa de porcelana e cobre.
Ao surgir da madrugada, Martins Fontes vinha à mesa meditar os seus versos, na paz da biblioteca, como um místico oficiando na "Capela" junto a esse altar sagrado. Perto da lâmpada, descansava floreada e velha taça de prata batida em Badajós, em
que outrora beberam os avoengos e era agora sagrada relíquia que lhe restava do solar paterno.
Entre outros, havia na mesa um retrato, cercado de flores constantemente. Martins Fontes, muitas vezes, o erguia nas mãos e o beijava na face – era o retrato de seu pai, dr. Silvério Fontes.
Na sala de jantar, ampla, quadrada, onde o rádio punha Martins Fontes em contato com o mundo musical, literário, artístico e político, ele passava algumas horas do serão ao lado de Rosinha. Ali, viam juntos livros de gravuras, encontrando preceitos
de arte japonesa de bem dispor flores num vaso, como as vi sobre todos os móveis e no centro da mesa.
Do lado direito, os quartos de dormir, seguindo-se o banheiro, a copa e a cozinha de ladrilhos e azulejos brancos em paredes brancas, imaculada brancura. No banheiro, havia os maquinismos completos e indispensáveis da higiene moderna para um banho
geral e saboroso com sabonetes espumosos de essências finas.
Para Martins Fontes, o prazer do banho em água aromal e tépida era a delícia das delícias. Fazia-lhe sonhar que a gente, através de mornezas e molícias, se emaranha entre ninfeias,esquece trabalhos e sente a bênção e o suspiro do corpo consolado. O
alquebramento que produz o banho de imersão na água, seguindo-se-lhe reparadora sonolência, compara-se ao gemer ou ao sorriso dum lamento, sonhando-se nesse bem estar que não há nada na vida de tão sensual efeito, e exalando-se, sofreando o riso e
o queixume da carne satisfeita. Era a mesma sensação que sentia quando se banhava nas águas sulfúreas das suas prediletas termas de São Pedro de Piracicaba, onde costumava ir todos os anos, ultimamente, e donde voltava remoçado, revivido.
No quintal, sobre a garagem em que se depositavam peças de mobília sem uso e onde o Poeta se escondia para datilografar os seus trabalhos literários urgentes, construiu, nos últimos tempos, espaçoso compartimento, para o qual mudou a biblioteca e o
gabinete de trabalho, deixando o da frente para sala de visitas. Chamava-lhe a "Capela", ao novo retiro do estudo e da meditação, onde se recolhia o artista e o filósofo, agora mais paciente em longos e acurados trabalhos.
Nesta sala, entrava-se subindo a escadaria alta até a varanda coberta de trepadeira de mimoso jasmim. Na parede Norte, abria-se outra porta de persiana para um balcão romântico que abrange toda a largura desta parede. Daqui, vê-se o restante do
pomar ajardinado e um lagozinho debaixo de um caramanchão, todo florido.
A laranjeira do pomar perfumava o seu tugúrio, como se fosse a irmã gêmea da companheira que lhe tornou tão doce a vida amarga. Abençoava-a pela felicidade que lhe trouxe, enclausurando-o na redoma da "Capela".
Lá fora, a paisagem é obstruída pelo Morro dos Limas, outrora um bosque impenetrável de árvores gigantescas, que estão desmontando a picareta e a dinamite. Dum e doutro lado,
casario e um campo de futebol.
Na parede interna da "Capela", ao poente, repousavam as estantes abertas, extensas, com os livros colocados a esmo, aguardando sempre o momento de necessária catalogação que, dizia-me, lhe facilitaria a pesquisa dos seus assuntos em ordem do dia,
tal como se fez na Biblioteca da Humanitária, cuja reorganização orientou.
Na mesa de trabalho sobressaía um altivo retrato de Goulart de Andrade, coevamente falecido, com chapéu na cabeça e sorriso melancólico. Por cima, na parede, os retratos de Augusto Comte e de Clotilde de Vaux que pertenceram a seu ilustre pai.
Junto à escrivaninha, a poltrona giratória, a cadeira de balanço, a sua máquina de escrever e a rede de dormir suspensa, atravessando um canto da sala, ao lado da janela, onde se aninhava durante as tormentosas noites de verão ou depois de exausto
na lida profissional, enfiado num pijama branco de seda.
Cedinho, de manhã, Martins Fontes, depois de barbeado e penteado, passeava pelo jardim dos fundos da casa a examinar as flores dos canteiros e os peixes do lago, sob a latada de Antígona. Com as mãos acarinhava a hera do muro, arrancava folhas do
limonete português e triturava-as para aspirar-lhes o perfume. Sentava-se, no largo banco de jardim público, contemplando o céu a se ruborizar ao surgir da aurora, para conversar com o palrador papagaio e com os seus passarinhos, todos em
desordenado chilreio matutino, enquanto o Tatu e a Perereca, muito peludos e miúdos, latiam de ciúmes aos pés do Poeta.
Os pássaros de Martins Fontes vivem soltos, alegres, aos milhares, e trabalham desde que o dia rompe.
Entre eles, o Poeta passava horas "ouvindo estrelas, cultivando rosas". Sempre desejou que uma pomba lhe pousasse na mão. Sempre buscou dar de comer aos passarinhos e tê-los, afetuoso e zeloso, entre os dedos.
Martins Fontes, amando a infância, adorava os passarinhos. Condoia-se ao vê-los em gaiolas, sem liberdade de construir os seus ninhos. Incitava as crianças a protegerem os passarinhos, dando-lhes daquelas migalhas de pão que ele lhes atirava,
quando pelo caminho fossem à escola, porque os passarinhos são os herdeiros da Esperança. O nosso amor fraternal é desconhecido dos gaturamos, dos canários e das patativas que vivem felizes e livres…
Assim amou o Cavaleiro do Amor. |